"Outubro": a epopeia segundo Eisenstein

por RTP

Não teve, nem por sombras, o sucesso do "Couraçado Potemkine". Devia comemorar os dez anos da revolução de Outubro, mas foi rodado sob o signo da decepção e do refluxo. O filme é, mesmo assim, de Eisenstein, e portanto uma referência inevitável.



O filme do famoso realizador soviético Sergei Eisenstein foi-lhe comissionado, a ele e a Grigori Aleksandrov, no âmbito das comemorações do décimo aniversário da revolução. Baseava-se largamente na reportagem escrita por um jornalista norte-americano, John Reed, imortalizada com o nome "Os dez dias que abalaram o mundo". Inicialmente, o filme teve mesmo como título de trabalho o título do livro.

Mas o filme era rodado em plena campanha antitrotskista. O excesso de cenas em que Trotsky intervinha foi logo exprobado ao realizador, que se inclinou perante as pressões, retirou as cenas quase todas e deixou uma referência a Trotsky, errada, dando-o como adversário de Lenine no Comité Central que decidiu sobre a tomada do poder.

Trotsky é apresentado a opor-se à insistência de Lenine para que se passe imediatamente à insurreição. Na cena em causa, recomenda: "Esperemos". Com esse protagonismo imaginário, eclipsa a tenaz resistência que Zinoviev e Kamenev opuseram à insurreição.

Mas o real protagonismo de Trotsky era outro, como dirigente do soviete de Petrogrado e principal responsável do Comité Militar Revolucionário. Para falar dos "dez dias que abalaram o mundo", John Reed não podia senão fazê-lo aparecer uma e outra vez na narrativa, afinal como grande impulsionador dessa insurreição que o "Outubro" de Eisenstein, "amadurecido" às mãos dos censores, o mostra a querer adiar.

Ora, a omnipresença de Trotsky na narrativa de Reed tornava o título do livro indesejável para título do filme. Provavelmente por esse motivo, Eisenstein mudou o título inicial para "Outubro".

Na verdade, nem um título nem o outro dariam plenamente conta da ambição do filme. Ele cobre um período muito mais amplo que o instantâneo da tomada do Palácio de Inverno, e mesmo mais amplo do que os dez dias decisivos. Nele se encontra uma notável reconstituição das Jornadas de Julho, com a vaga repressiva que lhe sucedeu.

Nele se encontra também um olhar lançado sobre os estados de alma do chefe do Governo provisório, Alexander Kerensky, a quem são atribuídas tentações ditatoriais e mesmo fantasias de restauração monárquica. Esta é certamente a parte menos convincente do filme, que passa da habitual materialidade das criações de Einsenstein para o sarcasmo psicologista.

Em todo o caso, as veleidades ditatoriais de Kerensky constituem parte da verdade histórica e explicam por que tentou a certa altura instrumentalizar o golpista Kornilov contra a revolução. Mas, quando percebeu que o golpe ganhara uma vida própria e iria derrubá-lo também a ele, Kerensky já se tornara dependente dos sovietes para barrar o caminho ao general.

Reforçados pelo seu papel na derrota do golpe, os sovietes tinham tudo para aceitarem substituir o Governo provisório e assumir, eles próprios, a responsabilidade da governação. Os dirigentes bolcheviques saem da cadeia para combater o golpe e ficam depois em liberdade. Outros, como sucede com Lenine, emergem da clandestinidade. A relação de forças que conquistaram é tão favorável que a tomada do Palácio de Inverno e a detenção dos ministros se limita a um incruento golpe de bisturi.

Também nesse ponto o filme de Eisenstein se afasta da verdade histórica, ao apresentar o assalto ao Palácio de Inverno como uma avalanche de massas, escassamente enquadradas por alguns destacados bolcheviques, como Antonov-Ovseenko. Segundo uma das anedotas que corriam após as primeiras exibições do filme, houvera mais feridos em acidentes na rodagem daquelas cenas épicas do que na original insurreição de outubro, feita com precisão cirúrgica e com notável economia de vidas humanas.

Ao contrário da versão de Eisenstein, Trotsky sublinhava na sua História da Revolução Russa que a revolução de outubro se distinguira da de fevereiro pela ausência de grandes manifestações de massas. Mas explicava, ao mesmo tempo, que essa ausência nada retirava ao protagonismo das massas operárias de Petrogrado na tomada do poder. A metáfora que utiliza para explicar o facto é a do jogo de xadrez: nas fábricas, nos bairros operários, nas trincheiras, por todo o lado fora necessário criar a rede de condições logísticas e de assistência para que o bisturi insurreccional desse o xeque-mate ao adversário, apenas com uma ou duas peças visíveis na finalização.

O filme de Eisenstein sobre o grande acontecimento revolucionário decepcionou, principalmente em comparação com o seu clássico "Couraçado Potemkine". Mesmo depois de ter revisto o tratamento dado à figura de Trotsky, Eisenstein continuou a ser alvo de críticas oficiais, pelo "formalismo" que se considerava presente na obra.

Outras críticas provinham de um público exigente, que vivera os acontecimentos e conhecera as personagens retratadas. Segundo Maiakovsky, o actor "não se parecia com Lenine, e sim com uma estátua dele". Mais matizada foi a crítica doutro grande nome do cinema soviético, o realizador Vsevolod Pudovkin: "Como eu gostaria de fazer um fracasso grandioso como este!"
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