A subida de Gorbachov ao poder, nos anos 1980, trouxe a Glasnost (transparência). O fim da URSS em 1991 trouxe, supostamente, uma abertura de arquivos até então guardados a sete chaves. Mas as inegáveis vantagens desta mudança não foram garantia bastante para uma compreensão mais certeira dos processos históricos.
Assim, a História da Revolução Russa de Leon Trotsky ficou para a posteridade como obra de testemunha, participante activo e dirigente, historiador da revolução e observador perspicaz do processo revolucionário. Posteriormente, a trilogia biográfica de Isaac Deutscher sobre o próprio Trotsky (O profeta armado; O profeta desarmado; O profeta banido) viria a constituir uma outra referência incontornável da historiografia relativa à revolução russa.
Outras obras menos abrangentes deram uma visão que rapidamente foi varrida para baixo do tapete, ou mesmo explicitamente proscrita, pela propaganda oficial soviética. Entre elas conta-se o livro autobiográfico de Victor Serge traduzido em português com o título Ofício de revolucionário, ou o de Alfred Rosmer que testemunha as suas vivências em Moscou sous Lénine.
As revelações sobre os crimes de Estaline foram o golpe de teatro do XX Congresso do PCUS, mas logo os opositores de longa data ao estalinismo observaram que essas "revelações" só o eram para quem durante décadas não quis ver a realidade dos gulags, a mortandade de camponeses esfaimados, as purgas sangrentas no partido e no exército.
E observaram também que as revelações brilhavam sobretudo por serem parciais e incompletas. Muito mais do que era revelado, era o que ficava por revelar e permanecia escondido no silêncio de arquivos inacessíveis.
Ainda assim, alguns dossiers escaldantes vieram na altura à superfície. Um deles dizia respeito àquilo que o historiador lituano Moshe Lewin chamou O último combate de Lenine. Num livro com esse nome, Lewin relatou a luta tenaz do líder bolchevique para impor uma radical mudança de rumo à revolução.
Nesse mudança de rumo incluía-se a observância estrita do direito de autodeterminação das pequenas nações, esmagadas pelo chauvinismo grão-russo; o combate à burocracia, com uma ampla renovação dos escalões dirigentes de partido e Estado; e, last but not least, a destituição do secretário-geral, Estaline, considerado brutal, grosseiro e desleal.
Os escritos de Lenine não publicados na altura, ditados às suas secretárias, constituíam o seu testamento político e, como ele próprio lhes chamou, "uma bomba" que tinha preparado para o Congresso do partido. A sua morte política em Março de 1923 e o controlo crescente de Estaline sobre o partido permitiram o silenciamento desses textos essenciais.
Com o advento do kruschevismo, passou a interessar à direcção do PCUS promover um limitado ajuste de contas com a figura de Estaline e o seu culto da personalidade. O testamento de Lenine, cuja citação durante três décadas podia equivaler a uma passagem para a Sibéria, passou subitamente a ser citado com certo à-vontade.
Mas globalmente os arquivos soviéticos continuavam a ser inacessíveis. Várias investigações de referência levadas a cabo nos anos do kruschevismo e da regressão brejneviana tiveram de continuar a basear-se em fontes fragmentárias, a que se ia sempre acrescentando algum depoimento de testemunhas da época, ainda assim condicionado pela subsistência de um regime policial.
Em todo o caso, continuou sempre a haver investigações notáveis, apesar dessas limitações. E foi precisamente nos anos dessa penúria arquivística que viram a luz do dia obras tão notáveis como as várias do já citado Moshe Lewin, ou as do britânico E. H. Carr, ou as dos franceses Pierre Broué e Jean-Jacues Marie.
Uma época cinzenta, apesar da abertura parcial de arquivos
Após o fim da URSS, começaram a tornar-se acessíveis a historiadores soviéticos e ocidentais fragmentos de arquivos até então guardados a sete chaves. Alguns dos guardadores foram os primeiros a aproveitar-se da translucidez que ia invadindo, paulatinamente, a sociedade soviética. Se antes podiam ver o que não via mais ninguém, agora passaram a poder publicar o que viam.
Um dos primeiros foi o general do KGB, Dimitri Volkogonov, estalinista que subitamente surgiu em pose de iconoclasta, mas mantendo duas coerências entre todas as que deitou borda fora: a de postular uma absoluta identidade Lenine-Estaline, e a de invectivar Trotsky como um Estaline que não chegou a ser.
Mas também no ocidente viram a luz do dia várias obras num espírito que se diria de regresso à Guerra Fria, quando esta precisamente se encontrava concluída. Entre elas, destaca-se a do historiador britânico Orlando Figes, recentemente publicada em português (A tragédia de um povo), ou as várias do norte-americano Robert Service.
Este tem em comum com Volkogonov uma irresistível atracção pelo género biográfico, e uma irresistível atracção pelas mesmas personalidades, redundantemente biografadas por ambos (Lenine, Trotsky e Estaline). O mesmo interesse é também partilhado pela historiadora francesa Hélène-Carrère d'Encausse, uma sovietóloga de autoridade estabelecida desde há longos anos, e que em 1998 publicou também uma biografia de Lenine.
Se se pode detectar uma tendência comum nestas obras recentes e em muitas outras, essa será a de explicar o estalinismo - com os seus gulags, as suas purgas sangrentas e as mortandades devidas à fome e à doença - como um resultado inevitável da democracia directa e do élan sovietista dos primeiros anos da revolução.
Convém recordar que a clássica objecção da historiografia positivista contra o marxismo atribuía-lhe um determinismo mecânico, segundo o qual a História estaria destinada a concluir-se com uma grande revolução, devida às contradições insanáveis contidas na base económica do capitalismo.
Paradoxalmente, a objecção mais frequente na historiografia actual contra a revolução russa consiste em explicá-la precisamente com um determinismo rígido: o que começou assim não podia acabar de outro modo. A democracia directa dos sovietes só podia acabar nas masmorras da Lubianka e o leninismo só podia desembocar no estalinismo. O processo histórico como encruzilhada de possibilidades, concretizáveis em função da intervenção de sujeitos actuantes, é inteiramente evacuado em grande parte das obras recentes, que têm acesso a documentos desconhecidos até aqui, mas que os analisam com uma grelha de leitura em grande parte determinista.
Um ponto de situação sobre a "revolução arquivística"
Uma visão de conjunto sobre os arquivos do comunismo é apresentada pelo investigador alemão Bernhard Bayerlein, que admite ter havido uma "revolução arquivística", sublinhando que ela tornou acessíveis dezenas de milhões de documentos - só na Federação Russa mais de 500 milhões de documentos de arquivo.
E isto não se refere apenas a documentos de países do Leste europeu, especialmente a Rússia, mas também aos de países ocidentais, que se tornaram acessíveis devido ao fim de constrangimentos inerentes à Guerra Fria.
Mais do que a Glasnost soviética, gorbachoviana, a Glasnost pós-soviética é comparada por Bayerlein à abertura dos arquivos do Vaticano no final do século XIX. Tal como esta abriu a história da Idade Média e da Igreja, diz-nos, "os arquivos do comunismo abrem o século XX. Por isso, a minha convicção é de que esses arquivos alcançam a categoria de património da humanidade".
O historiador sublinha, nomeadamente, que num primeiro balanço desta revolução arquivística surge reforçada a imagem revolucionária do regime soviético dos primeiros anos, "muito mais radicais no sentido político de um internacionalismo revolucionário do que se supunha até então".
Isto vale em especial para o empenhamento de Lenine em fazer tudo para que triunfasse a revolução alemã, na altura em curso, mas também para o seu "antirracismo incondicional baseado na multietnicidade, no 'affirmative empire' da jovem União Soviética", e para a importância atribuída aos movimentos anticoloniais e aos movimentos de solidariedade.
Por contraste, acrescenta, "os anos seguintes aparecem como muito mais radicalmente nacionalistas num sentido grão-russo (...) do que se sabia até agora, orientados nitidamente contra a eclosão e organização de qualquer revolução de tipo socialista tanto na metrópole como na periferia". Nos antípodas do internacionalismo dos primeiros anos, apostado em promover a revolução alemã, situa-se, por exemplo, o Pacto Hitler-Estaline de 1939.
Ainda assim, Bayerlein lembra que esta "revolução" tem repercussões desiguais, porque "estamos falando de acervos muito diversos que incluem, numa visão transnacional, documentos dos partidos políticos comunistas e outros, dos Estados e países do 'socialismo real', os arquivos da Internacional Comunista, do Kominform, das organizações transnacionais de solidariedade, dos movimentos sociais, políticos e culturais, além dos partidos políticos".
E, para quem se aventure nos arquivos tornados acessíveis, lembra que não basta poder olhar documentos que antes estavam escondidos. Especialmente em casos como o dos arquivos do Comintern, é indispensável ter presente que "os processos de ordenamento, seleção e descrição foram efetuados no auge do poder do império de Stalin. O pesquisador precisa de uma espécie de chave para situar os documentos no seu contexto".
Por outro lado, é preciso ter presente que o processo de desclassificação tem sido muito lento (num total de milhões de documentos, houve apenas 43.257 desclassificados no quinquénio 2011-2015).
Além disso, a abertura dos arquivos nunca foi total e dela foram excluídos, logo sob a presidência de Ieltsin, nos anos 1990, o Arquivo Presidencial (antigo Arquivo do Politburo), o arquivo da KGB, o arquivo da Agência de Informações Externas, e o Arquivo Militar de Informações.
Onde essa abertura se verificou, houve acervos que depois voltaram a ser retirados do alcance do público e da comunidade científica. Bayerlein sublinha a título de exemplo que os arquivos do Exército Vermelho voltam a estar sujeitos a um controlo apertado, desde que a sua abertura desmascarou a lenda dos soldados da Divisão Panfilov, a quem se atribuía falsamente um feito decisivo na batalha de Moscovo, em 1941.
Sob a presidência de Putin, voltaram a ser fechados os acervos Molotov, Dimitrov, Manuil'skij e outros, documentos sobre a fome na Ucrânia e muitos referentes aos antecedentes da Segunda Guerra Mundial e ao período de guerra propriamente dito. No que diz respeito aos arquivos da KGB de 1917-1991, está previsto permanecerem completamente fechados até 2044.