Outubro e a História. Os arquivos não são tudo

por RTP
Reuters

A subida de Gorbachov ao poder, nos anos 1980, trouxe a Glasnost (transparência). O fim da URSS em 1991 trouxe, supostamente, uma abertura de arquivos até então guardados a sete chaves. Mas as inegáveis vantagens desta mudança não foram garantia bastante para uma compreensão mais certeira dos processos históricos.

Antes da Glasnost, antes mesmo da desestalinização parcial anunciada pelo XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), várias obras importantes tinham visto a luz do dia sem obedecerem aos preceitos daquilo que George Orwell chamou o "Ministério da Verdade" estalinista.Uma época de ouro com arquivos fechados
Assim, a História da Revolução Russa de Leon Trotsky ficou para a posteridade como obra de testemunha, participante activo e dirigente, historiador da revolução e observador perspicaz do processo revolucionário. Posteriormente, a trilogia biográfica de Isaac Deutscher sobre o próprio Trotsky (O profeta armado; O profeta desarmado; O profeta banido) viria a constituir uma outra referência incontornável da historiografia relativa à revolução russa.

Outras obras menos abrangentes deram uma visão que rapidamente foi varrida para baixo do tapete, ou mesmo explicitamente proscrita, pela propaganda oficial soviética. Entre elas conta-se o livro autobiográfico de Victor Serge traduzido em português com o título Ofício de revolucionário, ou o de Alfred Rosmer que testemunha as suas vivências em Moscou sous Lénine.

As revelações sobre os crimes de Estaline foram o golpe de teatro do XX Congresso do PCUS, mas logo os opositores de longa data ao estalinismo observaram que essas "revelações" só o eram para quem durante décadas não quis ver a realidade dos gulags, a mortandade de camponeses esfaimados, as purgas sangrentas no partido e no exército.

E observaram também que as revelações brilhavam sobretudo por serem parciais e incompletas. Muito mais do que era revelado, era o que ficava por revelar e permanecia escondido no silêncio de arquivos inacessíveis.

Ainda assim, alguns dossiers escaldantes vieram na altura à superfície. Um deles dizia respeito àquilo que o historiador lituano Moshe Lewin chamou O último combate de Lenine. Num livro com esse nome, Lewin relatou a luta tenaz do líder bolchevique para impor uma radical mudança de rumo à revolução.

Nesse mudança de rumo incluía-se a observância estrita do direito de autodeterminação das pequenas nações, esmagadas pelo chauvinismo grão-russo; o combate à burocracia, com uma ampla renovação dos escalões dirigentes de partido e Estado; e, last but not least, a destituição do secretário-geral, Estaline, considerado brutal, grosseiro e desleal.

Os escritos de Lenine não publicados na altura, ditados às suas secretárias, constituíam o seu testamento político e, como ele próprio lhes chamou, "uma bomba" que tinha preparado para o Congresso do partido. A sua morte política em Março de 1923 e o controlo crescente de Estaline sobre o partido permitiram o silenciamento desses textos essenciais.

Com o advento do kruschevismo, passou a interessar à direcção do PCUS promover um limitado ajuste de contas com a figura de Estaline e o seu culto da personalidade. O testamento de Lenine, cuja citação durante três décadas podia equivaler a uma passagem para a Sibéria, passou subitamente a ser citado com certo à-vontade.

Mas globalmente os arquivos soviéticos continuavam a ser inacessíveis. Várias investigações de referência levadas a cabo nos anos do kruschevismo e da regressão brejneviana tiveram de continuar a basear-se em fontes fragmentárias, a que se ia sempre acrescentando algum depoimento de testemunhas da época, ainda assim condicionado pela subsistência de um regime policial.

Em todo o caso, continuou sempre a haver investigações notáveis, apesar dessas limitações. E foi precisamente nos anos dessa penúria arquivística que viram a luz do dia obras tão notáveis como as várias do já citado Moshe Lewin, ou as do britânico E. H. Carr, ou as dos franceses Pierre Broué e Jean-Jacues Marie.
Uma época cinzenta, apesar da abertura parcial de arquivos
Após o fim da URSS, começaram a tornar-se acessíveis a historiadores soviéticos e ocidentais fragmentos de arquivos até então guardados a sete chaves. Alguns dos guardadores foram os primeiros a aproveitar-se da translucidez que ia invadindo, paulatinamente, a sociedade soviética. Se antes podiam ver o que não via mais ninguém, agora passaram a poder publicar o que viam.

Um dos primeiros foi o general do KGB, Dimitri Volkogonov, estalinista que subitamente surgiu em pose de iconoclasta, mas mantendo duas coerências entre todas as que deitou borda fora: a de postular uma absoluta identidade Lenine-Estaline, e a de invectivar Trotsky como um Estaline que não chegou a ser.

Mas também no ocidente viram a luz do dia várias obras num espírito que se diria de regresso à Guerra Fria, quando esta precisamente se encontrava concluída. Entre elas, destaca-se a do historiador britânico Orlando Figes, recentemente publicada em português (A tragédia de um povo), ou as várias do norte-americano Robert Service.

Este tem em comum com Volkogonov uma irresistível atracção pelo género biográfico, e uma irresistível atracção pelas mesmas personalidades, redundantemente biografadas por ambos (Lenine, Trotsky e Estaline). O mesmo interesse é também partilhado pela historiadora francesa Hélène-Carrère d'Encausse, uma sovietóloga de autoridade estabelecida desde há longos anos, e que em 1998 publicou também uma biografia de Lenine.

Se se pode detectar uma tendência comum nestas obras recentes e em muitas outras, essa será a de explicar o estalinismo - com os seus gulags, as suas purgas sangrentas e as mortandades devidas à fome e à doença - como um resultado inevitável da democracia directa e do élan sovietista dos primeiros anos da revolução.

Convém recordar que a clássica objecção da historiografia positivista contra o marxismo atribuía-lhe um determinismo mecânico, segundo o qual a História estaria destinada a concluir-se com uma grande revolução, devida às contradições insanáveis contidas na base económica do capitalismo.

Paradoxalmente, a objecção mais frequente na historiografia actual contra a revolução russa consiste em explicá-la precisamente com um determinismo rígido: o que começou assim não podia acabar de outro modo. A democracia directa dos sovietes só podia acabar nas masmorras da Lubianka e o leninismo só podia desembocar no estalinismo. O processo histórico como encruzilhada de possibilidades, concretizáveis em função da intervenção de sujeitos actuantes, é inteiramente evacuado em grande parte das obras recentes, que têm acesso a documentos desconhecidos até aqui, mas que os analisam com uma grelha de leitura em grande parte determinista.
Um ponto de situação sobre a "revolução arquivística"
Uma visão de conjunto sobre os arquivos do comunismo é apresentada pelo investigador alemão Bernhard Bayerlein, que admite ter havido uma "revolução arquivística", sublinhando que ela tornou acessíveis dezenas de milhões de documentos -  só na Federação Russa mais de 500 milhões de documentos de arquivo.

E isto não se refere apenas a documentos de países do Leste europeu, especialmente a Rússia, mas também aos de países ocidentais, que se tornaram acessíveis devido ao fim de constrangimentos inerentes à Guerra Fria.

Mais do que a Glasnost soviética, gorbachoviana, a Glasnost pós-soviética é comparada por Bayerlein à abertura dos arquivos do Vaticano no final do século XIX. Tal como esta abriu a história da Idade Média e da Igreja, diz-nos, "os arquivos do comunismo abrem o século XX. Por isso, a minha convicção é de que esses arquivos alcançam a categoria de património da humanidade".

O historiador sublinha, nomeadamente, que num primeiro balanço desta revolução arquivística surge reforçada a imagem revolucionária do regime soviético dos primeiros anos, "muito mais radicais no sentido político de um internacionalismo revolucionário do que se supunha até então".

Isto vale em especial para o empenhamento de Lenine em fazer tudo para que triunfasse a revolução alemã, na altura em curso, mas também para o seu "antirracismo incondicional baseado na multietnicidade, no 'affirmative empire' da jovem União Soviética", e para a importância atribuída aos movimentos anticoloniais e aos movimentos de solidariedade.

Por contraste, acrescenta, "os anos seguintes aparecem como muito mais radicalmente nacionalistas num sentido grão-russo (...) do que se sabia até agora, orientados nitidamente contra a eclosão e organização de qualquer revolução de tipo socialista tanto na metrópole como na periferia". Nos antípodas do internacionalismo dos primeiros anos, apostado em promover a revolução alemã, situa-se, por exemplo, o Pacto Hitler-Estaline de 1939.

Ainda assim, Bayerlein lembra que esta "revolução" tem repercussões desiguais, porque "estamos falando de acervos muito diversos que incluem, numa visão transnacional, documentos dos partidos políticos comunistas e outros, dos Estados e países do 'socialismo real', os arquivos da Internacional Comunista, do Kominform, das organizações transnacionais de solidariedade, dos movimentos sociais, políticos e culturais, além dos partidos políticos".

E, para quem se aventure nos arquivos tornados acessíveis, lembra que não basta poder olhar documentos que antes estavam escondidos. Especialmente em casos como o dos arquivos do Comintern, é indispensável ter presente que "os processos de ordenamento, seleção e descrição foram efetuados no auge do poder do império de Stalin. O pesquisador precisa de uma espécie de chave para situar os documentos no seu contexto".

Por outro lado, é preciso ter presente que o processo de desclassificação tem sido muito lento (num total de milhões de documentos, houve apenas 43.257 desclassificados no quinquénio 2011-2015).

Além disso, a abertura dos arquivos nunca foi total e dela foram excluídos, logo sob a presidência de Ieltsin, nos anos 1990, o Arquivo Presidencial (antigo Arquivo do Politburo), o arquivo da KGB, o arquivo da Agência de Informações Externas, e o Arquivo Militar de Informações.

Onde essa abertura se verificou, houve acervos que depois voltaram a ser retirados do alcance do público e da comunidade científica. Bayerlein sublinha a título de exemplo que os arquivos do Exército Vermelho voltam a estar sujeitos a um controlo apertado, desde que a sua abertura desmascarou a lenda dos soldados da Divisão Panfilov, a quem se atribuía falsamente um feito decisivo na batalha de Moscovo, em 1941.

Sob a presidência de Putin, voltaram a ser fechados os acervos Molotov, Dimitrov, Manuil'skij e outros, documentos sobre a fome na Ucrânia e muitos referentes aos antecedentes da Segunda Guerra Mundial e ao período de guerra propriamente dito. No que diz respeito aos  arquivos da KGB de 1917-1991, está previsto permanecerem completamente fechados até 2044.
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