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Paradise Papers, o mundo que foge aos impostos

por Andreia Martins - RTP
São cerca de 13,4 milhões de ficheiros, obtidos pelo jornal alemão Süddeutcsche Zeitung numa nova fuga de informação sobre paraísos fiscais com foco em duas empresas EPA

Quase dois anos após a revelação dos Panama Papers, o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ) traz a público novos documentos que visam as mais altas figuras mundiais, desde nomes próximos do Presidente norte-americano à rainha de Inglaterra, passando por várias multinacionais de peso, incluindo a Apple, Nike e Uber. Há mais de 70 cidadãos nacionais mencionados nestes documentos, incluindo antigos administradores do GES e do BPN. E as revelações só agora começaram.

O que liga o secretário de Estado do Comércio norte-americano ao responsável de angariação de fundos do primeiro-ministro canadiano e à rainha Isabel II? Estes e outros nomes surgem na mais recente investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas (ICIJ, na sigla em inglês), que junta quase 100 órgãos de comunicação de todo o mundo.

Este consórcio começou a revelar no domingo um novo dossier que reúne mais de 70 anos de investigação, entre 1950 e 2016, e que envolve nada menos que 127 personalidades, entre líderes políticos de todo o mundo, mas também realeza ou estrelas da música e do desporto. As conclusões desta investigação vão continuar a ser divulgadas no site do ICIJ nos próximos dias, bem como nos vários órgãos de comunicação social que integram a organização.

São cerca de 13,4 milhões de ficheiros, obtidos pelo jornal alemão Süddeutcsche Zeitung  numa nova fuga de informação sobre paraísos fiscais com foco em duas empresas: a Appleby, um escritório de advogados com sede nas Bermudas, e ainda a Asiaciti, sediada em Singapura e especializada na gestão de offshores. A estas empresas juntam-se ainda 19 entidades sigilosas, registadas em vários paraísos fiscais.

O nome, Paradise Papers, diz tudo. As ilhas idílicas servem de esconderijo perfeito sobretudo para fugir a impostos, esconder investimentos, ou até mesmo transferir dinheiro para um destino duvidoso. Tal como nos Panama Papers, grandes empresas e figuras de renome mundial recorrem a este tipo de manobras “cada vez mais imaginativas”, como refere o próprio consórcio.
Empresas fantasma
Esses esquemas engenhosos envolvem muitas vezes as chamadas shell companies. A operação consiste no aproveitamento de uma empresa fantasma, sem funcionários ou produção própria, ou mesmo sem escritório. Em alguns casos, estas empresas têm usos legais e legítimos, mas podem de igual forma ajudar a esconder propriedade de ativos ou a evitar taxas e impostos.  

Este tipo de secretismo é atrativo quem procura fazer “branqueamento de capitais, traficantes de droga, cleptocratas e para quem procura atuar na sombra”, refere a investigação. 

Ao consórcio de jornalistas, Brooke Harrington, professor na Copenhagen Business School e especialista na área de gestão de riqueza, refere que estes esquemas “tornam os pobres mais pobres” e “aprofundam desigualdades”. 

“Existe um pequeno grupo de pessoas que não são sujeitas de forma igualitária às leis, e isso é de propósito”, acrescenta Harrington. 

Em abril de 2016, o consórcio tinha revelado a última grande investigação, com cerca de 11,5 milhões de documentos provenientes da sociedade de advogados Mossack Fonseca. A fuga de informação levou à demissão do primeiro-ministro islandês, Sigmundur David Gunnlaugsson, e de José Manuel Soria, um ex-ministro espanhol. 

Ainda no passado dia 16 de outubro, Daphne Caruana Galizia, jornalista maltesa envolvida na mega investigação, morreu em circunstâncias duvidosas na sequência da explosão de uma bomba que se encontrava no seu carro.
 
Mais de ano e meio depois, quando os contornos, revelações e efeitos dos Panama Papers ainda são palpáveis, o Consórcio Internacional de Jornalistas vem sublinhar que este caso, revelado no domingo, é “ainda mais importante” que o anterior. Analisamos com pormenor alguns dos principais nomes e empresas que são mencionados.
A ligação Washington-Kremlin
Wilbur Ross, secretário do Comércio da Administração Trump, também é mencionado nestes documentos escrutinados pelo ICIJ, e que revelam que é detentor de uma participação numa empresa de transporte marítimo, a Navigator, através de uma cadeia de investimentos offshore.

Esta empresa é parceira da Sibur, uma companhia russa de gás natural em que 20 por cento pertence a Kirill Shamalov, marido de Katerina Tikhonova – uma das filhas de Vladimir Putin. 

Wilbur Ross é multimilionário e amigo próximo de Trump. Desde o início do ano em funções, o responsável manteve as participações na Navigator, continuando a beneficiar das operações realizadas em conluio com uma empresa controlada pela família do Presidente russo e por aliados do Kremlin. 

O jornal The Guardian refere que a Navigator intensificou relações comerciais desde 2014, quando vários países ocidentais iniciaram a imposição de sanções a Moscovo na sequência da anexação da Crimeia, num total de 68 milhões de dólares de lucros para a Sibur desde esse ano. No entanto, segundo os documentos reunidos nos Paradise Papers, os primeiros registos de ligações entre o atual responsável pela pasta do Comércio norte-americano e o genro de Putin datam de 2011.
 
Em declarações ao diário britânico, Daniel Fried, secretário de Estado adjunto para assuntos europeus e asiáticos durante a presidência de George W. Bush, considera que estas conexões tiram força e ameaçam mesmo a aplicação de sanções à Rússia pelos Estados Unidos. 

“Não percebo como é que alguém decide manter este tipo de relações quando chega a uma posição de topo no governo. Em que estava ele a pensar?”, questionou o antigo responsável.  

Peter Harrell, um antigo responsável da Administração Obama que trabalhou especificamente na aplicação de sanções contra a Rússia, admite ter ficado surpreendido com esta revelação. 

“Estou francamente surpreendido. Talvez não devesse estar, visto que esta administração parece ter um russo em todos os armários”, referiu. 

Estas revelações sobre Wilbur Ross chegam a público num momento em que as investigações acerca da alegada ligação e interferência de Moscovo à campanha presidencial de Trump.

Em reação à divulgação destes dados, o secretário do Comércio emitiu um comunicado onde refere que a sua participação na Navigator não interfere com as suas funções governativas no comércio e indústria e que as acusações de alegada colusão não passa de “rumores e insinuações”. O Partido Democrata já veio exigir uma investigação ao secretário de Estado do Comércio.
Dedo russo no Facebook e Twitter
As ligações entre a Rússia e a Administração Trump até agora desvendadas pelos Paradise Parpers não ficam por aqui. Segundo os documentos a que o consórcio teve acesso, duas instituições próximas de Moscovo e com vínculos ao Presidente russo financiaram investimentos importantes tendo como destino o Twitter e o Facebook. Esses investimentos foram realizados através de um sócio de Jared Kushner, genro e conselheiro de Donald Trump. 

O investimento nas duas empresas de Sillicon Valley foi realizado através de Yuri Milner, um magnata russo ligado à tecnologia, que é também detentor de uma participação na Cadre, uma start up fundada pelo genro do Presidente dos Estados Unidos.   
Segundo os documentos analisados, Twitter e Facebook foram objeto de investimentos indiretos com origem na Gazprom Investholding e no VTB Bank, por sua vez subsidiários do Estado russo. No caso do Twitter, estes investimentos remontam a 2011. 

Estas revelações prometem dar força à investigação em curso sobre a ingerência russa nas eleições presidenciais nos Estados Unidos, em 2016, onde as redes sociais desempenharam um papel determinante. 

Ao jornal The Guardian, Alexander Vershbow, antigo Embaixador dos Estados Unidos na Rússia e representante norte-americano na NATO durante a presidência de Bill Clinton, lembra que as instituições ligadas ao Estado eram frequentemente usadas como “ferramentas” para os projetos políticos de Putin. 

“Claramente havia um plano mais amplo, apesar de Putin afirmar o contrário”, refere o antigo diplomata, à luz das recentes revelações de tentativa de interferência da Rússia na política interna norte-americana. 
Os negócios da Rainha
De acordo com os ficheiros da empresa Appleby, a Rainha Isabel II investiu milhões de dólares em empresas médicas e de crédito ao consumo. O ducado de Lancaster, que concentra e gere os ativos pessoais da rainha, forneceu anteriormente alguns detalhes sobre os seus investimentos imobiliários no Reino Unido, mas nunca tinha revelado detalhes sobre os seus investimentos offshore.

O jornal The Guardian, que integra este consórcio de jornalistas, acrescenta que este investimento foi realizado num fundo das ilhas Caimão em offshore projetado para proteger investidores do Reino Unido do pagamento de impostos nos Estados Unidos.  

Segundo os registos, os gestores do património pessoal da rainha investiram desde 2007 num fundo das Ilhas Caimão que, por sua vez, canalizou dinheiro para uma empresa de capitais de investimento que controlava uma locadora no Reino Unido, a BrightHouse, uma empresa polémica que é acusada de se aproveitar dos cidadãos mais pobres na venda de eletrodomésticos e móveis, exigindo-lhes planos de pagamento com taxas de juro exorbitantes. 

Em reação a estas revelações, um porta-voz do Buckingham Palace recusou-se a comentar. Já a porta-voz do ducado de Lancaster garante que a rainha paga todas as taxas referentes a todos os rendimentos. O ducado assume ainda que opera em fundos estrangeiros, mas que todos “são totalmente auditados e legítimos”. 
Império Apple em Jersey
Depois de no domingo terem sido divulgadas as primeiras conclusões da investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas, soube-se esta segunda-feira novos pormenores das operações da Apple neste contexto. 

Segundo os documentos do Paradise Papers, a empresa norte-americana, uma das mais ricas e poderosas do mundo, montou um esquema que lhe permite o pagamento de impostos a níveis mínimos com a deslocação de peças-chave do império para a pequena ilha de Jersey. A mudança engloba duas das subsidiárias mais importantes da empresa fora do território norte-americano.

Não é a primeira polémica a envolver a empresa e o pagamento de impostos. Até agora, já se sabia que a Apple tinha pago taxas de impostos relativamente baixas nos lucros obtidos fora dos Estados Unidos. 

Embora a Apple não tenha feito nada de ilegal, a divulgação destes dados poderá suscitar novos desafios para a empresa de tecnologia, vendo-se forçada a defender perante o público a forma como planeia o pagamento de impostos. 

Em declarações ao consórcio de jornalistas envolvido nesta investigação, Edward Kleinbard, professor de Direito Fiscal na Universidade do Sul da Califórnia, lembra que “as empresas multinacionais dos Estados Unidos são mestres em grandes esquemas globais de evasão fiscal, que esgotam não apenas a recolha de impostos nos Estados Unidos, mas também em praticamente todas as grandes economias mundiais”. 

Ao jornal The Guardian, a Apple recusou-se a detalhar o esquema desvendado pelo consórcio de jornalistas, mas defende que o mesmo não diminui o pagamento de impostos por parte da empresa em qualquer mercado. 

“Acreditamos que todas as empresas têm a responsabilidade de pagar os impostos que devem e nós estamos orgulhosos das contribuições económicas que fazemos nos países e comunidades onde desenvolvemos negócios”, refere a empresa. 
Lewis Hamilton, Nike... e portugueses
Os nomes visados percorrem várias áreas, desde o desporto, música, política, setor empresarial, entre outros. Destaque para os negócios de Juan Manuel Santos, presidente da Colômbia ou Gerhard Schroeder, antigo chanceler alemão, ou dois atuais ministros do Governo de Michel Temer, no Brasil, mas também para Madonna ou Bono, vocalista do grupo U2, ou ainda Lewis Hamilton.

O caso do piloto de Fórmula 1 merece especial atenção do consórcio nas revelações feitas esta segunda-feira. Segundo os Paradise Papers, Hamilton evitou o pagamento de impostos na Europa na compra de um jato privado através de um esquema que envolve um paraíso fiscal, a pequena Ilha de Man. 

Segundo os Paradise Papers, o campeão de F1 e várias dezenas de outros clientes foram ajudados na compra de jatos e iates particulares através da criação de negócios de leasing, aparentemente artificiais. A compra envolveu ainda companhias concha, que também passou pelas Ilhas Virgens Britânicas e Guernsey na compra de uma aeronave da Bombardier. 

Em resposta à polémica, Lewis Hamilton esclarece que procurou a ajuda de um advogado, que lhe garantiu que todos os negócios estavam dentro da legalidade. Referiu ainda que este tipo de compras é feito com base no aconselhamento profissional daquela área e que o desportista apenas seguiu as diretrizes que lhe foram dadas. De facto, os documentos não demonstram qualquer ligação direta entre Hamilton e a criação do esquema para a compra do jato.

Também a Nike é mencionada nestes documentos agora revelados. Os Paradise Papers revelam que a marca escapou ao pagamento de várias taxas e impostos ao longo da última década. 

O jornal Le Monde explica que a Nike encontrou na Holanda uma “lacuna fiscal”, que permite à empresa fazer o pagamento de taxas e impostas bastante reduzidas, tendo em conta o lucro alcançado. Essa estratégia partiu a apenas da atribuição de um status especial à subsidiária localizada na Holanda que, recorrendo a paraísos fiscais, lhe permite escapar às autoridades fiscais dos Estados Unidos e Holanda. 

O Expresso, que está a investigar a parte sobre Portugal no âmbito desta operação, não constam nestes documentos grandes figuras políticas a nível nacional. No entanto. os ficheiros mencionam mais de 70 cidadãos nacionais, sendo que a maioria nasceu ou vive noutros países há muitos anos. 

Surgem, nesta lista, 17 nomes  de antigos administradores do Grupo Espírito Santo e de cinco ex-responsáveis do BPN antes da nacionalização.
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