Paulina Chiziane festeja Prémio Camões com o povo

por Lusa
Paulina Chiziane a escritora que se revê no povo Manuel de Almeida-Lusa

Paulina Chiziane, a primeira escritora africana a vencer o Prémio Camões, continua a celebrar este galardão junto do povo, mesmo dos que não sabem ler, ao mesmo tempo que os "que se acham mais sábios" ainda recuperaram do choque.

"Uma boa parte daqueles que se julgam os mais conhecedores, os mais sábios, sempre me olharam assim com aquele arzinho de doutor, eles no pedestal e eu sempre no chão - sempre gostei de pôr os pés no chão - e foi uma surpresa, um choque para alguns deles, mas ainda bem que foi assim, porque na verdade eu escrevo em português", disse, em entrevista à agência Lusa, em Lisboa, onde se encontra a realizar um conjunto de atividades sobre a sua obra.

A autora reconheceu que nunca imaginou existirem tantas pessoas tão interessadas em ouvi-la e em ler o que escreveu e só lamenta não ter braços para "os abraçar a todos", os que vivem em África, Portugal, Brasil e em outros países que não falam português.

O que mais a surpreendeu foi "a celebração popular" e até de pessoas que não sabem ler, "porque as pessoas sempre olharam para o Prémio Camões como uma coisa muito distante dos africanos, sobretudo das pessoas de raça negra".

"Sou a primeira pessoa de raça negra, negra bantu, a receber o prémio", disse, contando que "as pessoas sempre olharam para este prémio com uma distância", como "o prémio dos outros".

"Se (o vencedor) não é um branco, vai ser um mulato, mas negro e ainda por cima mulher...", afirmou, referindo-se à forma como o galardão era visto.

E prosseguiu: "Agora, em todas as caminhadas, nós encontramos aqueles durões que acham que são os donos da língua portuguesa e são os donos da sabedoria".

Paulina explica que, embora tenha estudado o português, que é a sua segunda língua, pertence a uma cultura bantu. "É lógico que a estrutura da língua portuguesa que eu falo vai ser uma mistura de duas culturas. E eu sempre defendi isto e muitas vezes os puristas da língua, moçambicanos, negros, académicos e alguns achavam que uma boa língua portuguesa tem que ser falada, mesmo à portuguesa".

"Deus é uma mulher, e negra"

As experiências que várias reclusas em Moçambique, algumas homicidas de companheiros agressores, partilharam com a escritora Paulina Chiziane vieram reforçar a sua ideia de que "Deus é uma mulher, e negra".

Em entrevista à agência Lusa, em Lisboa, a primeira escritora africana a vencer o Prémio Camões disse que gostaria de voltar a trabalhar com as pessoas nas prisões, ou que já estiveram na prisão, sobretudo mulheres, porque "é algo que nunca foi falado".

O primeiro contacto, em parceria com Dionísio Bahule, resultou no novo livre da galardoada escritora: A voz do cárcere.

"Uma das lições que eu aprendi das mulheres que estão nas prisões é que elas, primeiro, não são ouvidas; e nós, que não estamos na prisão, que estamos em liberdade, às vezes inventamos campanhas para sensibilização, para o combate à violência doméstica e outros males, mas nós não ouvimos quem sofreu de uma forma direta e quem sofreu uma prisão", contou.

A maior parte das mulheres, que Paulina ouviu, matou os maridos ou ex-companheiros. "Elas diziam: Eu sempre fui educada para ser fraca. Eu julgava que era frágil e eu julgava que era uma boa mulher, aquela mulher que não faz mal a ninguém. Fiquei surpreendida com meu poder e com a minha força. Mas descobri quem eu era no momento fatal? Meu marido é um homem forte, mas veio morrer nas minhas mãos".

A escritora defende que se ensine a mulher "a conhecer a sua verdadeira força, porque isso vai-lhe permitir gerir essa força e não esperar que essa força aflore no momento fatal".

"Dizia uma delas: Se eu soubesse que tenho mais força que o meu marido, hoje não estaria na prisão, teria tomado outro rumo para lutar pela vida dos meus filhos", prosseguiu.

África vive em pandemia desde os tempos coloniais

A pandemia de covid-19 não assustou Paulina Chiziane porque "África sempre viveu em pandemia, desde os tempos da penetração colonial".

"Se não foi a pandemia das guerras e dos terrores, dos horrores, foram as doenças. Nós, africanos, estivemos sempre num círculo de inferno. É por isso que esta pandemia a mim não me assustou", afirmou.

E acrescentou: "É preciso reconhecer que em África a morte é gratuita. Basta andar na rua. Basta nascer para morrer ou para sofrer. Embora estejamos independentes, ainda há muitos problemas para resolver. Somos este continente pobre, empobrecido".

"E no meio de tudo isso, se não é cólera no centro do país, é a peste no norte do país, e a malária em todo o país. Agora covid... covid é mais uma", declarou.

A escritora acredita que estas dificuldades históricas foram um dos aspetos que fez com que "a África estivesse muito tranquila. Não houve tanto pânico e nem houve assim aquele número de mortes que se diz que houve", diise a concluir.

 

 

 

 

pub