Em direto
Portugal comemora 50 anos da Revolução dos Cravos. Acompanhe ao minuto

Perguntas e respostas sobre o referendo em Itália

O referendo às alterações constitucionais deste domingo pode constituir o terceiro abalo político de 2016, mesmo no centro da Europa, depois do Brexit e da eleição de Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos. Mas, no caso italiano, a instabilidade poderá chegar independentemente do voto pelo sim ou pelo não. O país vai a votos para aprovar as emendas promovidas por Matteo Renzi, que transformou esta consulta popular num teste de fogo à sua própria liderança.

As particularidades do sistema político italiano, a recente aprovação de uma nova lei eleitoral e a polémica impulsionada pelo próprio presidente do Conselho em volta deste referendo atrapalham uma leitura efetiva do que está realmente em causa no voto deste domingo. Importa perceber que mudanças podem acontecer em Itália depois do referendo, vença o sim ou o não


Na imprensa internacional, o referendo é mencionado como o “terceiro dominó” de 2016, depois do voto surpresa no referendo britânico e da eleição inesperada do novo Presidente norte-americano. 

Isto porque a vitória do não no referendo deste domingo poderá ditar a instabilidade política em Itália nos próximos anos e a subida ao poder de um Governo tecnocrático, mas a vitória do sim também poderá trazer alterações profundas num país que se mostra propenso a responder afirmativamente aos partidos populistas. Olhamos para os principais pontos que estão a marcar o debate em Itália.

Que pergunta é feita aos italianos?

Quando chegarem às urnas este domingo, os italianos vão encontrar no boletim de voto a seguinte pergunta:

«Aprova o texto da Lei Constitucional sobre a “disposição para superar o bicameralismo partidário, a redução do número de parlamentares, a supressão de custos de funcionamento da instituição, a supressão do CNEL, e a revisão do título V da II parte da Constituição”, aprovado no Parlamento e publicado em Diário Oficial nº88 de 15 de abril de 2016?»

(tradução livre da pergunta na língua original

A reforma constitucional italiana foi um dos pontos centrais na campanha de Matteo Renzi, secretário-geral do Partito Democratico, que chegou a presidente do Conselho de Ministros (primeiro-ministro) em fevereiro de 2014. Desde então, esta reforma constitucional foi a sua grande bandeira, tendo sido discutida entre as duas câmaras do Parlamento italiano ao longo de vários meses. 

No entanto, segundo o Artigo 138 da Constituição italiana, quaisquer alterações constitucionais devem merecer a aprovação do Senado e da Câmara dos Representantes com uma maioria absoluta, algo que a reforma de Renzi não conseguiu reunir na segunda votação. Para estes casos, o documento constitucional prevê que a possibilidade de um referendo popular, onde a lei necessita de uma aprovação por maioria absoluta para ser promulgada. 

O que mudaria com este referendo?

Os eleitores vão votar várias alterações à Constituição italiana, no sentido de reformar a balança de poderes no Parlamento. Em Itália, as duas câmaras (Senado e Câmara de Representantes), cumprem exatamente as mesmas funções e têm exatamente o mesmo poder.



Trata-se de um sistema único em toda a Europa, completamente simétrico, o chamado “bicameralismo perfeito”, em que as duas câmaras são eleitas simultaneamente por um período de cinco anos.

Todas as leis devem ser aprovadas de igual forma pelos dois órgãos legislativos, situação que muitas vezes resulta numa navetta parlamentare que se pode prolongar-se por décadas, até se conseguir passar a legislação. 

Desta forma, a alteração constitucional propõe retirar poderes ao Senado (a câmara alta do Parlamento), conferindo-lhe apenas um poder consultivo, como acontece em países como a Espanha e a Alemanha. As leis teriam de ser aprovadas apenas pela Câmara dos Representantes, a câmara baixa do Parlamento. Desapareceria também o Consiglio Nazionale dell'Economia e del Lavoro (CNEL), um órgão de cariz consultivo sobre assuntos económicos.

O Senado, uma nova assembleia consultiva, veria reduzido o número de deputados, passando de 315 para 100. Estes deputados deixariam de ser eleitos pelo povo e sairiam diretamente das Câmaras e Conselhos regionais de toda a Itália. No entanto, a forma de eleição dos membros do Senado continua incerta. 

A alteração que se propõe traduzir-se-ia também numa maior centralização do poder em Roma, nos termos do Título V da Constituição, submetendo as várias regiões a um poder central mais efetivo. Esta nova centralidade do Governo seria aplicada em matérias tão relevantes como a política energética e o sistema de proteção civil. 

Este ponto é crucial para os apoiantes e opositores da alteração. Os que defendem o sim remetem para a enorme redução de gastos com uma câmara considerada redundante.



Por sua vez, os maiores adversários da reforma constitucional advogam que é ao nível regional e municipal que se registam os casos mais graves de corrupção. A entrada no Senado seria uma carta-branca para estes políticos, que gozariam de imunidade nas investigações de que são alvo. 

O método para escolher o Presidente da República também sairia alterado. O chefe de Estado é escolhido, segundo a Constituição, numa sessão conjunta do Parlamento e por mais 58 representantes regionais.

Com as alterações propostas por este referendo, o Presidente passa a ser eleito apenas pelas Câmaras alta e baixa do Parlamento, contando com pelo menos dois terços dos votos nas primeiras três votações. Nas seguintes, são necessários três quintos do total dos eleitores. Se não tiver sido empossado, o Presidente proposto precisa apenas de reunir três quintos dos votos.

Também as regras de sucessão, em caso de morte ou doença, são alteradas. Deixa de ser o presidente do Senado a representar o Presidente em caso de morte ou de doença, passando esse papel a ser entregue ao presidente da Câmara dos Deputados. 

Vai ser votada uma nova lei eleitoral?

Não, apenas a reforma constitucional vai ser escrutinada pelos eleitores. No entanto, a nova lei eleitoral é amplamente citada no debate para este referendo. Aprovada em julho deste ano, a nova lei eleitoral procura garantir ao partido mais votado uma maioria simples na Câmara dos Representantes, o chamado sistema first-past-the-post que permite a constituição de um Governo mais forte e resiliente. 

A lei foi aprovada com o intuito de criar maior estabilidade governativa aos próximos executivos italianos. Desde 1945, o país já conta 65 diferentes Governos.



Substitui-se o sistema proporcional, idêntico ao português, visto como mais benéfico para os pequenos partidos, o que obrigava à composição de coligações para conseguir formar governo. No novo sistema, o partido que conseguir 40 por cento dos votos ganha a maioria. Se nenhuma força partidária conseguir chegar a este número, os dois partidos mais votados passam a uma segunda volta, com o vencedor a tomar a maioria. 
 
Mas como é que esta lei está relacionada com a reforma constitucional? 

O facto de serem retirados os poderes ao Senado faz com que todo o processo de decisão que realmente importa aconteça sobretudo na Câmara dos Representantes e fique muito mais simplificado. O Governo, que com a nova lei eleitoral passa a poder ser constituído por apenas um partido político, teria grandes facilidades em ver aprovadas as suas medidas e levar a respetiva legislatura até ao fim.

Com tantas alterações de fundo, Fabio Bordignon, da London School of Economics and Political Science, fala mesmo no início de uma “Terceira República” em Itália, com um reforço considerável do poder executivo. 
  
Matteo Renzi, primeiro-ministro italiano, diz que estas alterações na Constituição são essenciais para conseguir legislar e aprovar as reformas económicas que retomem o crescimento do país, que se mantém estagnado desde finais da década de 90. O governante diz mesmo que esta é uma “oportunidade única” para colocar o país no caminho de um futuro mais promissor em termos económicos. 

Com a crise económica na Zona Euro, o país do sul da Europa foi, a par da Grécia e de Portugal, um dos mais afetados. As dificuldades agravaram o clima de estagnação económica e a situação bancária é cada vez mais preocupante, no topo das inquietações o banco Monti dei Piaschi Di Sena, entre outras instituições.

"Este domingo pode mudar as vidas dos nossos filhos. Não é por nós, não é por um partido político, é por eles. Vamos escrever uma página na História. Se o sim vencer, seremos os líderes da Europa". referiu Matteo Renzi, no derradeiro comício antes do referendo, esta sexta-feira em Florença.



Parecendo um sistema ponderado e bastante semelhante ao que encontramos em vários países europeus, a questão muda de figura por estarmos a falar de Itália, um país com grande suscetibilidade aos movimentos populistas, como argumentam os apoiantes do não. Entre eles encontram-se publicações conceituadas como The Economist, Der Spiegel e o Financial Times. 

Os opositores da reforma constitucional argumentam que esta reforma não vai resolver os principais problemas ao nível administrativo e burocrático, estes sim, os verdadeiros impedimentos para uma legislação efetiva, e não é o bicameralismo que está a afetar a aprovação das leis. Em termos comparativos, a Itália aprovou um número superior de leis em relação ao Reino Unido ou à Alemanha desde o fim da II Guerra Mundial.

Com todos os dados sobre mesa, qual é o voto que vai trazer mais consequências?

O voto no não seria o mais pacífico e deixaria o sistema político exatamente na mesma. À partida, seria a alteração das regras do jogo o desfecho mais perigoso. Mas o primeiro-ministro Matteo Renzi apostou tudo no voto sim neste referendo e avisou por diversas ocasiões que se demitiria, caso a sua reforma constitucional fosse chumbada pelos eleitores.

A revista The Economist fala mesmo numa situação de “chantagem” do governante para com os italianos, com o primeiro-ministro a agitar o fantasma de um novo Governo tecnocrático, novas eleições, num período de enorme instabilidade financeira e económica para o país. O Movimento 5 Estrelas estaria à espreita, à espera de conquistar mais votos nas eleições legislativas, que com a demissão do Governo decorreriam antecipadamente. 

Em consequência da instabilidade provocada por este referendo, vários economistas, incluindo o Nobel Joseph Stiglitz, admitem mesmo a possibilidade de ver a Itália a sair do euro, o que poderia significar, no limite, o fim da moeda única ou da própria União Europeia.

Mas se o cataclismo não se verificar, pela vitória do sim no referendo, o não poderá trazer consequências ainda mais graves a longo prazo. Nos últimos anos, assistiu-se em Itália à rápida ascensão do Movimento 5 Estrelas, que se declara antieuropeísta, anti-euro e até já prometeu referendar a moeda única, caso consiga chegar ao poder.

Beppe Grillo, líder do M5E

Nas mais recentes sondagens, o movimento de Beppe Grillo aparece empatado nas intenções de voto com o partido de Matteo Renzi, o que corresponde à votação obtida nas eleições regionais de junho deste ano, onde os candidatos do movimento populista conquistaram as Câmaras de Roma e Turim.
 
Em 2013, nas eleições legislativas, o movimento alcançou um estrondoso resultado, conseguindo obter 109 deputados em 630 na Câmara dos Representantes e 54 em 215, no Senado, tornando-se na terceira força política mais votada. 

Numa tentativa de agilizar o Governo, a ação do primeiro-ministro e a aprovação das leis, a Itália poderia correr o risco de concentrar o poder em excesso. A consumação das alterações constitucionais, em conjunto com a lei eleitoral já aprovada, colocariam o Governo e o primeiro-ministro numa posição privilegiada para aplicar as suas reformas, fundamentais para revitalizar a economia definhante de Itália. Em outubro, durante o encontro com Matteo Renzi na Casa Branca, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, disse estar ao lado do primeiro-ministro italiano e apoiar o sim.
 


Mas o que aconteceria se esta extensão de poderes, vista como fulcral para o relançamento da economia italiana, caísse em mãos erradas? Um documento assinado por 57 professores de Direito alerta para os perigos do projeto constitucional de Matteo Renzi.

Ugo de Siervo, especialista em Direito Constitucional e um dos subscritores deste documento, disse recentemente que a aprovação das alterações constitucionais significaria “uma recentralização” do poder que a Itália já não conhece desde os anos 40 do século XX, altura em que era governada pelo regime fascista de Benito Mussolini. 

Qual é o desfecho mais provável?

As mais recentes sondagens junto da população italiana mostram uma trajetória ligeiramente favorável à vitória do não. Os números de novembro apontam para uma vitória por 53,1 por cento, contra os 46,9 por cento do sim.

Os últimos inquéritos oficiais publicados há duas semanas - visto que Itália tem um período de blackout nas sondagens com 15 dias de antecedência - apontavam para uma vantagem sólida do não.

Caso seja esse o desfecho das votações deste domingo, Matteo Renzi deverá dirigir-se ao Palácio Quirinale, a residência oficial do Presidente da República, para apresentar o pedido de demissão a Sergio Mattarella, tal como prometeu por diversas vezes. 

A partir daí, caberá ao chefe de Estado italiano tentar convencer o primeiro-ministro italiano a manter-se no poder e retirar o pedido de demissão. Os analistas políticos acreditam que essa será a posição tomada por Mattarella, visto que o vazio de poder no Governo de Roma poderia significar mais instabilidade política na Europa e nas praças financeiras.

Fotografias: Tony Gentile, Remo Casilli, Giampiero Sposito e Kevin Lamarque