"Pesadelo" da ditadura militar une geração que sonha com democracia

Em Myanmar (antiga Birmânia), a maioria da população uniu-se em protesto contra o golpe de Estado, lutando para resgatar o sonho da democracia, apesar da violenta repressão militar contra manifestantes que já fez mais de 700 mortos.

Lusa /
Than Lwin Times via REUTERS

"A maioria dos jovens querem democracia, não querem regressar à situação anterior. Antes de 2015, o país esteve sob uma ditadura militar durante mais de 50 anos, e ninguém quer voltar a isso: querem justiça, liberdade e igualdade", disse à Lusa o jornalista `freelance` birmanês Kyaw Hsan Hlaing, que cobriu muitos dos protestos em Rangum, a antiga capital, para a imprensa internacional.

"As pessoas temem ser presas ou torturadas pelos militares, mas sentem que não têm alternativa", explicou.

Desde o golpe militar que depôs o Governo eleito de Aung San Suu Kyi, em 1 de fevereiro, o jovem estudante de 23 anos tem estado a documentar a situação no país, em colaboração com uma jornalista norte-americana, e já publicou na revista Time, no jornal canadiano Globe and Mail ou no portal VICE News, não sem enfrentar muitos riscos.

Durante um dos muitos protestos que levaram milhares de pessoas às ruas de Rangum, em 27 de fevereiro, um soldado apontou-lhe uma arma.

"Ele disse-me: `Não te quero dar um tiro, sai daqui`", recordou o jornalista, que testemunhou a violência das forças de segurança durante os protestos.

"A polícia e os soldados não respeitam as regras. Agora, começam logo a disparar contra manifestantes pacíficos", contou à Lusa.

"Os militares tentam dividir para reinar, mas as pessoas estão a juntar-se para lutar", disse.

Um dos grupos mais destacados por detrás das manifestações é o comité que organizou uma greve geral (General Strike Committee of Nationalities), mas os protestos não têm líder, unindo vários grupos sociais e profissionais, da classe médica aos estudantes, disse à Lusa o conselheiro para Myanmar do Grupo Internacional de Crise, um `think tank` fundado em 1995 para prevenir conflitos, com sede em Bruxelas.

"O movimento de protesto está bem coordenado, `online` e fora da internet, mas não tem na maior parte liderança. Há pessoas proeminentes que participam, mas não há uma organização estrutural fixa", explicou Richard Horsey, que foi funcionário da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em Myanmar e viveu entre Inglaterra e o país asiático nos últimos 30 anos.

O perito do Grupo Internacional de Crise, que apresentou um `briefing` ao Conselho de Segurança da ONU em 9 de abril, alertando que o país está à beira do colapso, estava em Rangum durante o golpe militar e testemunhou o início dos protestos.

"A maioria dos manifestantes são da geração mais jovem, que viveu os últimos dez anos com relativa liberdade e oportunidade. Eles sentem que o regresso da ditadura militar vai roubar-lhes o futuro e que todas as suas esperanças e sonhos estão em risco, e estão determinados em impedir o golpe e o regresso aos dias negros da ditadura", contou, em resposta por escrito a questões enviadas pela Lusa.

A especialista em assuntos constitucionais Kimana Zulueta-Fülscher, do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA), também viveu até há poucos meses em Rangum, onde durante dois anos foi responsável pelo programa "A Minha Constituição", para promover a discussão sobre boas práticas constitucionais.

Deixou Myanmar em setembro de 2020, e o golpe de Estado, cinco meses depois, apanhou-a de surpresa.

"Não esperava que acontecesse", contou à Lusa, recordando a vida antes do golpe dos militares, que detiveram mais de três mil pessoas, incluindo a Nobel da Paz e líder de facto do Governo civil, Aung San Suu Kyi, impuseram o estado de emergência e cortaram o acesso à internet durante vários dias.

"Rangum era uma cidade muito animada, havia vida cultural, era um sítio agradável para viver", contou. "Tenho muitos amigos que continuam em Myanmar e a situação [agora] é horrível", disse a perita da IDEA.

"Estão muito frustrados, com medo e zangados. Dizem-me que acordam todas as manhãs esperando que tudo não tenha passado de um pesadelo e que possam voltar para as suas vidas [antes do golpe]", contou.

Para a responsável do programa constitucional da organização que promove a democracia, com sede em Estocolmo, na Suécia, o país pode estar na iminência de uma guerra civil.

"O Tatmadaw [militares] já mostrou que é capaz de usar violência contra a própria população", apesar de "a maioria dos manifestantes serem pacíficos", e "os ataques estenderam-se aos estados étnicos", disse.

"É claro que já havia conflitos violentos [em vários estados] antes, mas a situação é cada vez mais volátil", alertou.

Para a doutorada em Ciência Política de origem espanhola e alemã, o gosto pela relativa democracia antes do golpe criou no entanto raízes em Myanmar, após "dez anos de reformas progressivas e da abertura do país ao mundo".

"Acho que é aí que [os manifestantes] vão buscar a coragem e a determinação para lutar pela democracia e a liberdade", defendeu.

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