Pode haver incêndios em florestas tropicais?

Sim, até mesmo nas florestas tropicais, húmidas, densas, vivas, onde a natureza parece inquebrantável. Mas a realidade revela-se mais complexa do que o imaginado. A Amazónia, o pulmão do mundo, está sob ameaça. Não apenas por um desmatamento incessante, mas pelas chamas que rasgam a sua imensidão verde, deixando um rasto de destruição em ecossistemas que não toleram os efeitos do fogo.

Mas como lidar com uma ameaça tão inesperada? Foi com esta pergunta que iniciei a minha jornada até Santarém, no Estado do Pará, Brasil, onde a Brigada de Incêndio Florestal de Alter do Chão realiza um trabalho que transcende fronteiras e nos transporta para a essência mais pura do ser humano, servir causas nobres, para benefício de todos, sacrificando um bem precioso, o tempo que cada brigadista de dica à causa, sem qualquer remuneração monetária.


Foto: João Romano | Brigada de Alter do Chão

A missão era clara: levar conhecimento, partilhar experiências e aprender, num intercâmbio que mostrou que a luta pela Amazónia é uma causa comum. Esta formação, uma iniciativa visionária, foi generosamente financiada pela Fundação ITURRI e operacionalizada pela Fundação Pau Costa, através do seu responsável de formação Juan Caamaño e eu, um privilegiado, que aprendeu mais do que alguma vez poderia partilhar. Desta forma, unindo esforços internacionais numa resposta que alia técnica, paixão e a urgência de proteger o pulmão verde do mundo.


Foto: André Noboa
As lições por detrás da missão na Amazónia
A minha viagem começou com uma mistura de entusiasmo e inquietação. Como europeu, a Amazónia sempre foi um símbolo de mistério, riqueza natural e resistência. Ao chegar, porém, deparei-me com uma realidade contrastante: as paisagens de beleza intocável convivem com áreas marcadas por queimadas, um testemunho de como a pressão humana e as alterações climáticas estão a mudar o equilíbrio de um dos ecossistemas mais importantes e biodiversos do planeta.

Mesmo já tendo muitas milhas na bagagem e ter combatido incêndios em sitios como o Quebec (Canadá) ou Tierra Del Fuego (Antártida Chilena/Patagónia, Chile), ouvi pela primeira vez, de forma direta e sem filtros, a expressão "Homem Branco". Naquele momento, soou-me estranha, distante, desconfortável. Com o passar dos dias, o peso por detrás dessas palavras consumiu o meu pensamento, dia após dia. Na verdade é algo que nunca mais esquecerei, foi marcante para toda a minha vida. Era mais do que uma referência ou estereótipo; era um reflexo de uma opressão histórica, de uma relação desigual entre quem habita estas terras há séculos e faz referência a quem se tornou o seu invasor.

Os povos indígenas vivem uma luta silenciosa e incessante, para simplesmente existir nas terras que os viram nascer, mas que, ironicamente, lhes são tantas vezes negadas. Dependem delas para subsistir e o impacto dos incêndios é uma ferida aberta nesta relação: as chamas não só devastam as florestas, mas também eliminam a água potável dos seus “igarapés”, os pequenos cursos de água que são a fonte de vida destas comunidades. É uma tragédia que não se vê nos grandes números, mas que se sente na escassez de um copo de água ou na perda de um lugar sagrado. Não se vê na TV, pois, como em todos os lugares do mundo, depois do fumo, pouco se vê da destruição e recuperação. Ainda assim, acolheram-me.

Participar nos seus rituais espirituais foi mais do que uma receção; foi uma lição de humildade. Ali, senti que me davam as boas-vindas a uma terra que pertence a todos, mas que apenas é cuidada por poucos – aqueles que ali vivem e que, mesmo sob pressão, mantêm um respeito ancestral pela floresta que nós, tantas vezes, não conseguimos compreender.


Foto: Elder Stefanno

Pela primeira vez, deparei-me com brigadas de combate a incêndios que ostentam o título de “Guardião”. Foi um momento de profunda reflexão. Aquelas pessoas não arriscam a vida por um salário – porque não o têm. Arriscam-se por um propósito maior, por uma causa que transcende o individual: proteger a floresta amazónica. Não os ouvi dizer: “vida por vida” ou aprender para servir, mas vi com clareza que o praticam com a mais profunda dedicação. Organizam-se como verdadeiras comunidades, uma palavra que parece esvanecer-se nas sociedades modernas e globalizadas, mas que aqui ainda pulsa, viva, entre eles, sob a forma de entreajuda. Nos seus combates, que muitas vezes se estendem por meses, enfrentam desafios imensos, desde o cansaço extenuante até aos perigos ocultos, como animais venenosos que espreitam entre as cinzas. E, no entanto, mesmo perdendo, por fatalidades, brigadistas ano após ano, não se permitem recuar ou descansar enquanto não sentem que cumpriram o seu dever.

Estar ao lado destas pessoas foi como entrar numa outra dimensão do que significa “trabalho”. Para eles, é mais do que uma tarefa; é uma missão de vida. Com os seus gestos, coragem e determinação, ensinaram-me, algo em que já acreditava, mas nunca vivi dessa forma, que a verdadeira recompensa não está nos bens materiais, mas na certeza de que se está a proteger algo que é vital para todos nós, uma causa comum e sem o foco na recompensa individual. Uma lição que levarei comigo para sempre.

Ao observar os participantes da formação, fui imediatamente confrontado com um contraste que me fez refletir. Apresentavam-se de forma descontraída, com roupas simples, chilenos nos pés ou mesmo descalços. Algumas vezes despadronizadas, algo que em muitas instituições europeias seria motivo de reprovação ou crítica. Mas ali, no coração da Amazónia, compreendi que a aparência é o que menos importa quando o espírito de missão fala mais alto. Por trás daquele visual descontraído, encontrei pessoas profundamente comprometidas, atentos a cada detalhe do que era partilhado, constantes questões pertinentes colocadas, entregues a um propósito maior.

Trabalharam com dedicação inabalável, mesmo depois do horário definido, como se o tempo não tivesse importância frente à causa que os unia. Ouvi histórias de quem abdicou de semanas de trabalho remunerado para estar ali, a aprender, de forma gratuita, como proteger a floresta. A lição que levei foi clara e poderosa: não é a formalidade exterior, uniformes bonitos, aberturas com politicos importantes, que define a eficiência de uma atividade formativa, mas a paixão, o sacrifício e a entrega com que os seus participantes abraçam essa (chamar-lhe-ei) causa. Na simplicidade, sem holofotes, descobri a essência do verdadeiro compromisso.
A Jornada da Formação: Técnica, Reflexão e Prática
A formação em Santarém foi uma experiência multifacetada e intensamente imersiva, composta por três dinâmicas distintas, cada uma com um foco específico, mas interligadas por um objetivo comum: capacitar os participantes para lidar com os desafios do fogo de maneira integrada, técnica e consciente.

Primeiro, explorámos a análise de incêndios; em seguida, aprofundámos a Gestão Integrada do Fogo num workshop colaborativo; e, por fim, concluímos com o curso prático de uso do fogo controlado. Cada etapa foi cuidadosamente estruturada para abordar as complexidades e peculiaridades do fogo na Amazónia, combinando conhecimento científico, práticas locais e uma abordagem reflexiva.
Curso de Análise de Incêndios: O pensar antes do agir

Iniciámos com um mergulho profundo na análise de incêndios, um elemento que, acredito, deve estar presente em todas as fases de intervenção operacional em incêndios florestais. Este curso abordou conceitos essenciais: desde a análise meteorológica e do estado dos solos, até ao teor de humidade da vegetação e a segurança no terreno. O foco culminou no comportamento do fogo, um fenómeno explorado detalhadamente através de estudos de caso da região, que destacaram as nuances e os desafios enfrentados pelos combatentes.

O mais marcante, contudo, foi a forma como este curso desafiou o pensamento tradicional. Propusemos um modelo que vai além do "treino padronizado", incentivando os participantes a desenvolverem um raciocínio analítico e adaptável.

A mensagem central foi clara: o combatente de incêndios não é apenas uma peça operacional; é um estratega, cuja capacidade de pensar criticamente pode transformar o resultado de uma operação.

Este esforço para “desprogramar” o automatismo e estimular a análise mostrou-se crucial para preparar equipas que operam em ambientes tão complexos como a Amazónia. É crucial desenvolver este tipo de abordagem, para preparar os agentes a adaptarem-se a cenários desconhecidos, pois é essa a realidade futuro em tudo o mundo e na Amazónia, mais ainda, pois este tipo de incêndios são recentes e a tendência não é animadora.
Workshop de Gestão Integrada do Fogo: o diálogo entre saberes
A segunda dinâmica foi um workshop participativo que trouxe um valor inestimável ao promover a interação entre os formandos e as comunidades locais. A ciência demosntrou poder ser complementar ao conhecimento empirico e não conflituante. Discutimos, de forma aprofundada, o papel ancestral do fogo na Amazónia e como, hoje, ele se divide entre o “fogo bom”(queimas) e o “fogo mau” (incêndios). A compreensão dessa dualidade é fundamental para lidar com o fogo de maneira sustentável: enquanto os incêndios destroem, o uso controlado do fogo pode regenerar, proteger e até prevenir destruições maiores.

Neste contexto, explorámos as dimensões ecológicas, sociais e culturais do fogo, abordando questões sensíveis como a relação das comunidades locais com os ciclos naturais da floresta. As discussões estenderam-se além do esperado, até o cair da noite, uma evidência do envolvimento genuíno de todos os participantes. Este diálogo foi uma ponte entre o conhecimento técnico e os saberes tradicionais, abrindo caminho para uma abordagem integrada e adaptada às realidades locais.
Curso de Uso do Fogo Controlado: a prática que protege
A etapa final foi talvez a mais prática e tecnicamente orientada: o curso de uso do fogo controlado. Esta formação foi direcionada para uma vertente específica da Gestão Integrada do Fogo, mostrando como o fogo pode ser uma ferramenta preventiva, quando usado de forma estratégica. No centro das atividades esteve a criação de mosaicos – áreas cuidadosamente queimadas que servem como barreiras naturais para conter a propagação de grandes incêndios.

A prática decorreu na savana amazónica, um terreno desafiador, onde foram abordadas duas dimensões cruciais: gerir a intensidade do fogo para garantir o controlo e ajustar a severidade para manter a harmonia com os ecossistemas e as comunidades. Este equilíbrio entre ciência e sensibilidade ecológica é vital para que o fogo, em vez de uma ameaça, se torne um aliado na proteção da floresta.


Foto: Elder Stefanno

As técnicas apresentadas também demonstraram como o fogo controlado pode reduzir o risco de ignições em áreas críticas, protegendo tanto a biodiversidade quanto as populações locais. Foi uma abordagem que destacou a importância de planeamento e monitorização, mas que também respeitou as realidades culturais e as necessidades imediatas das comunidades que dependem diretamente da floresta.
Tem o fogo lugar na Amazónia?

Sim, mas apenas onde ele faz parte da harmonia natural. Enquanto na savana amazónica o fogo é indispensável, essencial para prevenir grandes incêndios, conservar biodiversidade e controlar espécies invasoras, na floresta tropical ele é um intruso e um destruidor. A floresta, sem adaptação natural ao fogo, sofre danos irreparáveis quando as chamas a percorrem. E com as secas cada vez mais severas, estas áreas outrora húmidas, tornam-se vulneráveis, alimentando incêndios que devastam não só o ecossistema, mas também a subsistência das comunidades locais.


Foto: Elder Stefanno
O papel do fogo controlado
Na vegetação campestre que circunda as florestas tropicais, o fogo controlado é mais do que uma ferramenta de gestão: é uma necessidade ecológica. Utilizá-lo de forma estratégica previne grandes incêndios, protege espécies que dependem das chamas para completar os seus ciclos e ajuda a controlar invasões de plantas que ameaçam a biodiversidade. Contudo, este uso exige precisão, cada vez mais dificil de alcançar. Condições meteorológicas, estado dos solos e teor de humidade da vegetação precisam de ser rigorosamente avaliados.

A prescrição é o ponto central: sem ela, o fogo arrisca-se a ultrapassar o controlo e a causar danos irreparáveis.

Mais do que uma prática técnica, o uso do fogo é também um desafio de comunicação e integração. Durante a formação, percebi que as comunidades locais, que vivem em íntima conexão com a terra, clamam por parcerias reais com a ciência. Há um GAP comunicacional evidente: a produção científica nem sempre chega a quem mais precisa dela.

Muitos estudos ficam confinados a publicações académicas, com a sua característica linguagem codificada e raramente se traduzem em benefícios tangíveis para as populações que lidam diariamente com os desafios do território. Aquelas comunidades pedem uma ciência que se aproxime, que entenda as suas necessidades e que ajude a construir soluções em conjunto – não apenas recolhendo dados e partindo, mas formando alianças duradouras. Que a ciência se dedique à causa, com a mesma implicância…não apenas para cumprir métricas académicas.

O fogo na Amazónia é mais do que uma questão cultural, social, ecológica, técnica ou regional. É uma responsabilidade global que exige colaboração entre ciência e tradição, entre política e prática. Este equilíbrio, porém, só será alcançado se pontes forem construídas – e não barreiras – entre o conhecimento científico e os saberes locais.

A Amazónia, como herança universal, não pode ser negligenciada. Proteger esta floresta, encontrar harmonia no uso do fogo e assegurar o futuro da sua biodiversidade é, em última análise, cuidar do planeta e da nossa própria sobrevivência.Esperança pelos valores da VIDA
A formação em Santarém não foi apenas um evento técnico. Foi uma demonstração poderosa de como diferentes atores, unidos por um propósito maior, podem enfrentar desafios que vão além das fronteiras locais.

A Brigada de Alter do Chão, com a sua perseverança e profundo sentido de propósito comunitário, mostrou que proteger a Amazónia é mais do que uma missão; é um compromisso com a vida. Como associada fundadora da Rede Nacional de Brigadas Voluntárias e com a liderança ativa no Comité Nacional de Manejo Integrado do Fogo, no Brasil, a brigada é uma força motriz na luta por um futuro sustentável.

A participação de múltiplos agentes – desde a Rede de Brigadas do Baixo Tapajós até instituições parceiras como o Grupamento de Resposta de Animais em Desastres (GRAD), o Corpo de Bombeiros Militares do Estado do Pará e o ICMBio – foi uma prova concreta de que a sinergia é essencial para alcançar resultados duradouros. A integração de conhecimentos, o respeito pelos saberes locais e o compromisso coletivo criaram um ambiente de colaboração que servirá de modelo para outros territórios.


Foto: Elder Stefanno

A Brigada de Alter, ao promover esta formação, reforçou que a união de diferentes setores – voluntários, instituições públicas e comunidades locais – não é apenas desejável, mas indispensável para construir uma política sólida de proteção ao território amazónico. Este é o exemplo de como os esforços coordenados podem transcender barreiras, trazendo soluções reais para problemas complexos.

O que ficou desta experiência foi mais do que conhecimento técnico; foi uma mensagem de esperança. Esperança pelos valores da VIDA, pela luta por uma causa que supera todas as outras. Aqui, no coração da Amazónia, está o centro da vida no planeta – um lugar onde a ameaça à Humanidade é mais evidente e real. Mas também um lugar onde o esforço humano, guiado por um amor profundo pela natureza, ainda pode fazer a diferença.

Convido-vos a assistir a este vídeo inspirador que ilustra a grandeza desta causa e o impacto de cada ação tomada para proteger a Amazónia.


Que ele nos lembre que proteger a floresta não é apenas uma questão de preservação; é um compromisso com a sobrevivência do planeta e da nossa própria espécie. Porque cuidar da Amazónia é cuidar da essência da vida.