Ramona Harper: "Para o meu marido só podia haver um doutor em casa"

Foi diplomata dos Estados Unidos, modelo reconhecida, divorciou-se aos 31 anos porque o marido não queria que ela fizesse o doutoramento. Uma mulher de garra que fintou o destino e o racismo na América dos anos 50 e 60.

O sonho da pequena Ramona era fazer uma revista para mulheres negras porque, em criança, não via uma única pessoa com a cor dela nas fotografias. "Folheava as revistas e questionava-me: será que há algum coisa de errado connosco? Será que não somos bonitos? Porque é que somos invisíveis?". A revista não se concretizou, mas concretizaram-se várias carreiras, inclusive uma das mais prestigiadas na United States Information Agency (USIA).

Na verdade, o destino mais natural desta mulher que cresceu em Filadélfia seria aliar-se aos gangues violentos e por ali ficar. Viu muitos colegas morrerem de overdose, viu a segregação racial, viu o seu bairro ficar despovoado de brancos e passar a ser um bairro só de negros. A menina e adolescente Ramona tinha boas notas, necessidades financeiras e, de bolsa de estudo em bolsa de estudo, tornou-se diplomata dos EUA. Esteve no Senegal, no Zimbabué, no Uganda, no Panamá, na Alemanha. Chegou a um nível em que podia ser embaixadora. Tudo divorciada e mãe solteira. O casamento terminou aos 31 anos porque Ramona tinha acabado de ganhar uma bolsa para fazer o doutormento e o marido só queria "um doutor em casa". 

Hoje, aos 69 anos, já está reformada mas não parada porque "há muito tempo para preencher". Vive em Washington e trabalha agora como responsável nos programas de intercâmbio dos EUA. Na história dela cabem muitas vidas - inclusive uma como modelo profissional que correu Itália, Paris e que foi muito requisitada por Valentino.

Ramona Harper quando era modelo profissional.

Qual acha que é a sua maior qualidade?

Tenho um grande sentido de responsabilidade. Levo os meus compromissos muito a sério, seja um programa com os amigos, trabalho, qualquer compromisso. Apareço, não chego atrasada, faço o que tenho de fazer, trabalho muito. 

O que é que significa “trabalhar muito”? 

Cumprir o que está estipulado e ir ainda além disso. Estar-se preparado. Saber tudo o que é preciso saber antes de chegar à reunião.

De onde vem essa disciplina?

Estudei numa escola católica e as freiras deram-me um sentido de disciplina e de ordem. Se começo um projeto, acabo esse projeto. Não deixo nada por acabar. Não me permito distrair-me. Um prazo é algo extremamente importante para mim. Não concebo a hipótese de não pagar as minhas contas, não quero ser uma devedora. É uma forma de encarar a vida. 

Onde passou a sua infância?

Nasci em Filadélfia, na Pensilvânia. Eu e os meus dois irmãos fomos criados pela minha avó materna porque os meus pais divorciaram-se quando eu tinha 7 anos e a minha mãe tinha de trabalhar muito. Naquela altura não havia creches (risos), então ficávamos com a minha avó que cuidava de nós quando chegávamos da escola. Víamos a minha mãe ao fim de semana, porque ela trabalhava na cidade. 

E o seu pai?

O meu pai desapareceu pouco depois do divórcio. Só o vi uma vez depois disso. Eu venho de uma família pobre. Cresci num bairro de negros. 

Havia segregação racial?

Quando eu era muito pequena, o bairro ainda tinha brancos e negros. Mas depois deu-se o white flight, um fenómeno que se viu nos anos 50 e 60 em várias cidades americanas: as pessoas brancas saíram daquela zona à medida que os negros começaram a subir de nível de vida. 

Como assim?

Quando os negros começam a ter empregos, atingiram um tal nível de vida que começaram a ter dinheiro para comprar casas nos bairros dos brancos. Aí os brancos fizeram o white flight: começaram a sair daquele bairro porque achavam que o preço das suas casas ia desvalorizar por haver negros no bairro. "Agora temos negros no bairro, a minha casa já não vai valer tanto dinheiro, é melhor pôr à venda". E os brancos todos saíram. Ficou um bairro só de negros. 

Ramona em Filadélfia em frente ao liceu onde estudou no 50º aniversário da instituição.

Os seus colegas de infância também tiveram depois uma carreira? 

A maioria foi para escolas públicas, eu fui para a católica que era privada. Tive uma educação melhor, valores diferentes. Em Filadélfia havia gangues muito perigosos, drogas duras, os jovens morriam de overdose. Os gangues são tipo famílias, dão a sensação de comunidade, de pertença a algo. Vivi lá em Filadélfia até ir para a faculdade aos 18 anos. 

Mas começou a trabalhar antes, certo?

Com 12 anos, a fazer baby sitting. Como eu era muito alta, mentia e dizia que era mais velha do que era. Dizia que tinha 16 anos e tinha 13 (risos). Trabalhei como assistente num teatro e como vendedora, sempre aos fins de semana e nos verões. 

E o dinheiro que ganhava gastava-o onde? 

Para ir ao cinema, para comprar um ou outro livro. Abri uma conta bancária assim que pude. Consegui uma bolsa de estudo para ir para o liceu, porque eu tinha boas notas e necessidades financeiras. 

O que queria ser quando era pequena? 

Quando estava no liceu queria muito começar uma revista para mulheres negras. Era a minha paixão. Naquele tempo não havia pessoas negras nas revistas. Eu folheava e questionava-me: Ninguém aqui se parece comigo! Porque é que ninguém mostra fotografias de pessoas com a nossa cor? Se ninguém mostra fotografias nossas, nós não existimos. Somos invisíveis. E porque é que somos invisíveis? Há algo de errado connosco? Não somos bonitos? Porque é que ninguem nos vê? 

Isto foi em 1967. Como eu queria começar esta revista, fui para o liceu estudar Moda. Péssima escolha. Devia ter estudado negócios ou algo sobre a indústria da imprensa. 
Não fui bem aconselhada. Mas acabei por começar a trabalhar como modelo para os estudantes de design e comecei a fazer desfiles dos alunos. Depois tirei uma licenciatura em Trabalho Social, para trabalhar com crianças em casas de acolhimento e em situções de adoção, e fiz um mestrado em Aconselhamento e Orientação, para trabalhar em escolas.  


Ramona mais tarde com Colin Powell no Departamento de Estado dos EUA

Pelo meio, casou-se... 

Fui casada durante dez anos, dos 21 aos 31 anos. Era muito nova para casar. Conheci-o na universidade. Eu estudava à noite, já trabalhava durante o dia no Governo, ele estava a fazer o Doutoramento na universidade. Eu era responsável por um Programa de profissões no Centro para Oportunidades e Emprego de Filadélfia, que ajuda pessoas pobres a sair da pobreza através da passagem de competências para conseguirem um emprego. 

O que é que aprendeu com essa experiência?

Que há uma parte da vida que vem da auto-motivação. Podes levá-los até à beira da água, mas não os podes obrigar a beber. 

E depois?

Depois dei aulas de Psicologia de Carreira num liceu em Miami e, entretanto, consegui uma bolsa para fazer o doutoramento na área da Educação. Deixei o trabalho no liceu para me dedicar ao doutoramento, fiz um ano do curso e tive de divorciar-me.

Porquê?

O meu marido não queria que eu fosse doutorada como ele. Ele tinha o doutoramento, mas quando fui eu a querer tirar o meu... Entrámos em rutura. 

Só podia haver um doutor em casa.

Só podia haver um doutor em casa. Tinha deixado o trabalho no liceu para fazer o doutoramento, de repente estava divorciada e já não tinha dinheiro para pagar as minhas contas. Tive de desistir do doutoramento e voltar a trabalhar. A bolsa só dava mesmo para estudar, eu nem tinha dinheiro para me deslocar até à faculdade. Custou-me muito mas tive de deixar. 

Ramona na sua experiência como modelo.

Como foi a experiência como modelo?  

Foi espetacular. Com vinte e tal anos fui à Europa pela primeira vez. Fiz desfiles em Itália, trabalhei para o Valentino, fiz várias semanas de moda de Paris. Aí apercebi-me que gostava de ter um trabalho que desse para viver uns tempos fora e conhecer outras culturas. Há um mundo tão grande lá fora, porquê ficar só nos EUA? Um dia estava a ler a revista Essence e estava lá um pequeno anúncio que dizia: "Venha conhecer o mundo. Junte-se aos Foreign Services (Negócios estrangeiros)". Eu recortei o anúncio, pus o meu nome, mandei para o Departamento de Estado e candidatei-me para ser diplomata. Até ali não sabia nada sobre os Foreign Services. Tive de passar num grande exame com muitas questões sobre a história e o governo dos EUA, economia, ciência política, sociologia, cultura, eventos importantes. 

Teve de estudar antes, certo?

Estudei intensamente durante três meses. Recolhi tudo o que era livros de liceu e mergulhei naquilo. Já não estudava há 10 anos! Já tinha 35 anos nessa altura. Passei no exame escrito e oral, passei na entrevista e consegui. Foi muito difícil! Só 3% das pessoas conseguem. Depois vim pela primeira vez a Washington DC para completar a formação no Departamento de Estado. E assim me tornei diplomata. O meu primeiro posto foi em Dakar, no Senegal. 

Como correu lá?

Tive de aprender francês porque no Senegal fala-se francês. Nunca tinha ido a África e fiquei lá um ano. Foi lá que conheci um homem, senegalês, que viria a ser o pai da minha filha. Conhecemo-nos, apaixonei-me, casei com ele mas não informei antes os responsáveis do meu Governo. Devia ter avisado antes. Quando descobriram, não acharam piada nenhuma e não me deixaram ficar com ele no Senegal.

Mas ele podia ter saído do Senegal e ido consigo para Washington?

Podia, mas ele nunca esteve disposto a sair de lá. Eu pedi-lhe para ele ir comigo várias vezes e ele dizia que não ia. Aí percebi: pronto, isto não vai resultar, porque eu também não vou ficar aqui. Voltei grávida do Senegal e a minha filha já 
nasceu em Washington. A minha filha tinha 3 meses e o Governo mandou-me para um posto no Zimbabué e lá fomos nós as duas. A minha filha tinha 18 meses e eu ainda estava casada com aquele homem! Pensei: isto não pode ficar assim. Nós não temos casamento nenhum. Não vou continuar casada se isto não é um casamento. Então apanhei um voo do Zimbabué até ao Senegal só para me divorciar dele.

E ele aceitou?

Ele não queria o divórcio mas também não tinha uma solução e eu tinha de seguir com a minha vida. Mas foi muito difícil. Chorei o voo inteiro de volta, do Senegal para o Zimbabue. O voo inteiro.

E acabou por ser mãe solteira. 

Totalmente. Criei-a completamente sozinha. Nunca estivemos juntos. Ele veio vê-la quando ela nasceu e depois só o vi mais duas vezes na vida. E uma foi para nos divorciarmos.
 Mas tudo bem, resolveu-se. 

Ramona com a filha Sarah.

E depois ficaram quanto tempo no Zimbabué?

Dois anos. Depois fui enviada para o Uganda mais dois anos, depois voltei para Washington aprender espanhol porque depois fui três anos para o Panamá, depois mais uns tempos em Washington para estudar alemão porque depois ia para um posto na Alemanha, depois voltei para Washington mais uns anos e reformei-me.

Sempre com a sua filha atrás.

Sempre. Sempre a mudar de escola, de casa, de amigos, de cidade, tudo novo. 
Foram 21 anos disto. Estava farta de andar sempre de um lado para o outro. Estou reformada desde os 56 anos, tenho 69 anos mas nunca parei de trabalhar. Trabalhei na universidade de Maryland e no Departamento de Estado mais uns 8 anos já na condição de reformada. 

Mas porquê? Podia reformar-se e ficar por aí.

Sim mas eu era muito nova para parar de trabalhar. Eu quando me reformei não queria parar de trabalhar, só queria deixar aquela vida de andar sempre de um lado para o outro.

E a sua filha?

Tem 33 anos agora, ganhou uma bolsa para ir para a universidade. Ela é advogada, trabalha para uma firma de advogados aqui em D.C e, aos 30 anos, tornou-se juíza federal. 


Ramona com a filha na Alemanha, durante o posto como diplomata.

Ela voltou a ver o pai?

Viu-o quando tinha seis anos, oito anos, 15 anos, e depois decidiu que não o queria ver mais. Ele nunca a criou e estava demasiado longe.

O que é um bom companheiro?

Tu é que tens de ser o "bom companheiro" de ti própria. Tens de estar feliz contigo própria, porque se não estiveres feliz contigo própria não estás feliz com mais ninguém. Começa por trabalhar em ti e contigo. Só aí é que vais atrair um "bom parceiro". É um 'inside job'.

Um segredo de carreira?

Continuar sempre. Comigo era assim: eu era promovida, e era promovida outra vez, e outra vez, e consegui ser uma senior foreign service. É o último nível, no qual podes por exemplo ser embaixadora. Nunca parar.

O que é que tem feito nos últimos anos?

Agora, nos meus tempos livres, escrevo críticas de teatro para o site DC Metro Theater Arts. É divertido e desafia-me. Também me envolvo nas atividades da minha igreja e até fui ordenada reverenda. Posso dar sermões ao domingo nas igrejas.

Quando é que vai parar a sério?

Não sei. Quero estar sempre a aprender, por isso é que gosto de estar envolvida nestes programas de intercâmbio porque aprendo imenso e posso conhecer pessoas de todo o mundo. Aprendemos muito a falar com pessoas diferentes e de países diferentes. Tenho muito tempo para preencher. Há muita coisa para fazer.

*A jornalista viajou para Washington a convite do Departamento de Estado dos EUA