Reinado continua em fuga, Díli recompõe-se de noite violenta

Benjamin Marty não esperava que a sua noite de sábado incluísse uma ameaça de assalto à casa e escritório, evacuação debaixo de tiro dentro de um blindado da GNR e, por fim, um magnífico naco de vaca assada no espeto.

Pedro Rosa Mendes - Agência LUSA /

Foi a tudo isso que Marty teve direito na madrugada de domingo, à mesma hora em que o major Alfredo Reinado conseguia iludir o cerco das tropas australianas em Same, em Timor-Leste, e fugia "a pé" das Forças de Estabilização Internacionais (ISF).

Cerca da 01:00 de domingo (16:00 de sábado em Lisboa), tropas das ISF apoiadas por helicópteros lançaram o ataque contra as posições do grupo de Alfredo Reinado, usando reforços de tropas de elite chegadas da Austrália nas últimas 48 horas.

No ataque, considerado "um sucesso" pelo brigadeiro- general Mal Rerden, comandante das ISF, foram mortos quatro "timorenses armados" e feridos outros dois.

As ISF fizeram um número ainda indeterminado de detenções.

Pouco depois, numa questão de minutos, vários incidentes estalaram em simultâneo em diferentes bairros de Díli, com estradas cortadas por pneus em fogo, pedras ou árvores abatidas, apedrejamento de viaturas, casas incendiadas e combates de rua entre grupos rivais.

O bairro de Vila Verde, em pleno centro da cidade, foi um dos mais afectados, com instalações do ministério da Educação (um auditório e o armazém) a serem consumidas pelas chamas até ao amanhecer, sem que ninguém acudisse.

Benjamin Marty, gestor financeiro do Conselho Norueguês dos Refugiados em Timor-Leste, vive e trabalha em Vila Verde, na rua que liga o Bairro da Cooperação Portuguesa ao quartel-general da missão internacional das Nações Unidas (UNMIT).

"Quando vi uma multidão começar a bater no portão, não fiquei muito preocupado mas liguei ao meu chefe, que me disse para me manter calmo", contou horas depois à Lusa.

"Dez minutos depois, vejo chegar a GNR, a disparar munições de borracha à esquerda e à direita", recorda o financeiro do NRC.

"Gritaram e pediram-me para abrir o portão, mas de início nem percebi o que queriam, porque não falo português. Em poucos minutos, já estava dentro de um blindado, a Guarda saiu dali com a mesma velocidade com que tinha entrado, sempre a disparar, com um tipo a desviar-se das barricadas com muita perícia", acrescentou Benjamin Marty.

Benjamim Marty afirmou-se "espantado com o profissionalismo" com que a GNR agiu, mostrando-se descontente com a inacção dos elementos da Polícia das Nações Unidas (UNPol).

"Há UNPol à frente a ao lado da minha casa, os carros-patrulha estiveram sempre parados e os polícias não fizeram nada", criticou o gestor da NRC, adiantando que os elementos da Polícia das Nações Unidas também não reagiram "horas antes quando algumas pessoas começaram a queimar dois ou três pneus, a bater o metal para chamar os outros e a `aquecer` com bebida".

"Nem sequer se mexeram quando um tipo bêbedo passou a correr todo nu e começou a partir coisas", acrescentou Marty.

Um oficial da GNR declarou à Lusa que, numa situação excepcional e num cenário inverosímil, "o subagrupamento Bravo teve na rua os seus três pelotões operacionais em permanência, durante sete horas".

Os incidentes, com disparos de armas de fogo em diferentes locais, foram mais graves em Taibessi, em redor do Cemitério Chinês, Bairro Pité, Vila Verde e à entrada do quartel-general da UNMIT, o perímetro de casernas e escritórios conhecidos como Obrigado Barracks.

Cerca das 07:00, quando se tornou possível efectuar uma ronda de carro pela cidade, Díli revelava as sequelas da madrugada violenta, com muitas ruas da periferia intransitáveis com os restos das barricadas.

Em Banana Road, uma das principais artérias que atravessa a cidade, um grupo de jovens fazia guarda a uma grande retrato de Alfredo Reinado, "pinado em Ermera", segundo explicou à Lusa um homem que disse estar disposto a defender o seu "herói".

"Nós somos defensores do major Alfredo, herói da justiça. Estamos prontos a morrer para o defender", declarou o homem.

Em áreas como Taibessi, há vários dias que os postes de iluminação e algumas árvores ostentam cartazes e faixas que glorificam Alfredo Reinado.

Foi para esta juventude que cultiva a figura de Reinado que o Presidente Xanana Gusmão dirigiu uma comunicação gravada a meio do dia no Palácio das Cinzas.

Xanana Gusmão, num discurso ríspido e com expressão muito dura, comparou o seu percurso com o de Reinado, recordando a sua luta na Resistência e a curta carreira do jovem major e interrogando a qualidade de "aswain" (herói, bravo) atribuída a Reinado.

"Esta biografia não demonstra que Alfredo é o `aswain` e eu, Xanana, sou o grande traidor do povo ou do Rai Lulik Timor Lorosa`e", a terra sagrada de Timor-Leste.

O presidente sublinhou que "o Estado não volta atrás nas suas decisões" e dirigiu-se ao militar fugitivo:

"O caminho é só um, entregar as armas e entregarem-se todos", disse.

De outros episódios se fez a madrugada de domingo, como a resposta dos 15 oficiais da PSP que, instalados no Hotel Elizabeth 2000, se organizaram informalmente sem esperar ordens da UNPol, que não viriam.

Durante três horas, os 15 elementos da PSP, organizados pelo segundo comandante do distrito de Díli da UNPol, o subintendente português Leitão da Silva, enfrentaram sucessivos ataques de um grupo que descia de Bairro Pité, um dos bairros mais perigosos da cidade.

"Uma pequena unidade de polícia formada", ironizou um dos oficiais quando descreveu à Lusa o episódio.

Cerca das 05:00 (20:00 em Lisboa), Alfredo Reinado escapou do cerco de Same "depois de dividir os seus homens em três grupos e ter feito avançar dois deles, saindo pela retaguarda", contou à Lusa uma fonte que acompanha a operação de captura.

A essa hora, Benjamin Marty recuperava ainda da maior surpresa da noite.

"Sabes como acabam as histórias do Astérix e do Obélix?", questionou.

No quartel do subagrupamento Bravo não havia javali, como na aldeia dos gauleses, "mas uma vaca no espeto".

Os pelotões da GNR saíram directamente da sua festa mensal para as ruas em brasa de Díli.

"Finalmente a evacuação foi óptima", concluiu Benjamin Marty.

"Cheguei atordoado ao quartel e pouco depois puseram-me um prato de carne assada à frente".


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