Relator da ONU acusa junta militar de Myanmar de tornar sismo em catástrofe humanitária
O relator especial da ONU para os direitos humanos em Myanmar (antiga Birmânia) acusou esta quarta-feira a junta militar no poder de transformar o forte sismo no país em março numa catástrofe humanitária ao tentar tirar partido da situação.
Numa conferência de imprensa na sede da ONU, em Nova Iorque, Tom Andrews frisou que as condições humanitárias em Myanmar estão significativamente piores este ano do que em 2024 e afirmou que a comunidade internacional falhou em dar resposta a esta "crise invisível".
"Quase 22 milhões de pessoas em Myanmar precisam agora de ajuda humanitária. Cerca de 16,7 milhões de pessoas enfrentam insegurança alimentar aguda. Ora, tudo isto piorou muito no dia 28 de março, quando um sismo de magnitude 7,7 atingiu o centro de Myanmar", relatou.
O sismo afetou cerca de 17 milhões de pessoas, danificou 157 mil edifícios e deixou cerca de 200 mil pessoas sem casa.
O Banco Mundial estimou os danos causados pelo sismo em 11 mil milhões de dólares (9,48 mil milhões de euros).
Contudo, apesar do cenário de destruição, a junta militar de Myanmar transformou este desastre natural numa catástrofe humanitária, declarou o relator.
"Fizeram-no tentando transformar esse desastre em vantagem própria. Bloquearam sistematicamente a entrega de ajuda humanitária a muitas áreas devastadas em Myanmar. Empregaram táticas como ameaçar, assediar, interrogar e extorquir trabalhadores humanitários. Confiscaram abastecimentos médicos", denunciou.
"Os seus soldados saquearam as casas daqueles que foram deslocados pelo terramoto. Prenderam jovens envolvidos nos esforços de ajuda, recrutando-os à força para o Exército para servirem de escudos humanos ou para mão-de-obra forçada", acrescentou Tom Andrews.
Os ataques aéreos contra alvos civis aumentaram consideravelmente após o sismo, ultrapassando os níveis anteriores ao desastre.
"O que é incrível no que está a acontecer em Myanmar é que as coisas continuam a piorar e a junta militar continua a intensificar os seus ataques, utilizando armas de guerra sofisticadas para atacar alvos civis", lamentou o relator especial da ONU.
O sistema de saúde também foi alvo, com 169 ataques a instalações e profissionais médicos nos primeiros oito meses de 2025, enquanto a escassez de alimentos no estado central de Rakhine se agravou drasticamente, deixando 58% das famílias sem condições de suprir as suas necessidades básicas.
"Esta não é apenas uma tragédia nacional. Está a afetar toda a região e mais além", garantiu, indicando que milhões de pessoas têm fugido através da fronteira para o Bangladesh, Tailândia, Malásia e muitos outros locais.
Myanmar tem sido assolado pela violência desde que, em fevereiro de 2021, os militares derrubaram o Governo eleito de Aung San Suu Kyi, durante anos líder da oposição, e reprimiram brutalmente protestos não violentos.
Essa situação desencadeou resistência em todo o país de grupos armados pró-democracia e de minorias étnicas que tentam derrubar a junta militar, incluindo no estado de Rakhine (oeste), onde dezenas de milhares de muçulmanos rohingya ainda vivem, muitos confinados em acampamentos.
"Estou aqui para implorar aos membros das Nações Unidas que intensifiquem os seus esforços e tomem medidas, algo que simplesmente não conseguiram fazer", instou Tom Andrews, garantindo que esta é uma mensagem que continuará a transmitir nas próximas semanas e meses, porque a situação "precisa de mudar de rumo".
A junta militar, que detém o poder em Myanmar desde o golpe de fevereiro de 2021, anunciou em julho passado que iria realizar eleições em dezembro, mas a falta de oposição real, com muitos políticos pró-democracia no exílio ou na prisão, incluindo a Prémio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, faz com que grande parte da comunidade internacional considere que o escrutínio vai ser uma farsa.
Na conferência de imprensa de hoje, o relator reiterou a posição de que essas "eleições são uma farsa, uma fraude".
"Não se pode ter uma eleição livre e justa quando se prendem, detêm, encarceram e torturam os líderes da oposição política, quando se dissolvem dezenas de partidos políticos, (...) quando é ilegal para os jornalistas relatarem a verdade sobre a situação em Myanmar, quando é ilegal criticar a junta e, de facto, criticar estas eleições", reforçou.