Revolta sangrenta no norte de Angola marcou início da guerra colonial

por Eduardo Caetano, RTP
As casas dos brancos (fazendeiros e comerciantes) ficaram completamente destruídas após os ataques DR

Muitas centenas de brancos e negros retalhados à catanada e muitas centenas de refugiados em fuga para a capital foram o resultado da revolta que assolou o norte de Angola nos primeiros meses de 1961. 50 anos depois o Presidente da República portuguesa insta a juventude a aplicar a sua determinação em “missões e causas essenciais ao futuro do país”.

Desde o ano de 1482 em que chegou à foz do Rio Congo uma frota portuguesa, comandada pelo navegador Diogo Cão que de imediato estabeleceu relações com o Reino do Congo, que Angola era uma colónia de Portugal. Vivia pacificamente e com relativamente pouca presença dos colonizadores se comparado com outras colónias de outros países.

Era a maior de todas as colónias de um país que "dera mundos ao mundo" e chegou a ter presença marcante em todos os continentes.

Vivia no início desse ano de 1961 a época das chuvas, e faltavam dois meses para se iniciar a tão conhecida época do “cacimbo” que faria desaparecer os lamaçais e alisaris os trilhos e as vias de comunicação, que, apesar de terem obrigado a um vultuoso investimento por parte das autoridades de Lisboa, não eram alcatroadas e ligavam o norte da colónia ao centro e ao sul.

Região de grandes fazendas, acordou de mais uma noite que mudaria a face da colónia para sempre. Em Quitexe, importante povoação da região dos Dembos na província do Quanza-Norte, grupos de negros acumulavam-se às primeiras horas do dia às portas das “cantinas”. Eram os contratados das fazendas.

Trabalhadores negros que eram arrabanhados nas suas aldeias e contratados pelos grandes fazendeiros para a labuta diária da unidade de produção, pagos  geralmente em produtos e que viviam e trabalhavam nessas grandes fazendas. Findo o período do contrato regressavam às aldeias de origem.

Às seis da madrugada desse 15 de março do longinquo ano de 1961, o gerente da fazenda Zalala arrancou da cama o chefe do posto (espécie de chefe da polícia) a quem comunicou um facto estranho. Durante a noite tinham desaparecida da fazenda cerca de cem homens. Ele não sabia explicar a razão, mas acrescentou que entre os que tinham permanecido notava grande agitação.

Nenhum dos dois sonhava sequer com a tormenta que se anunciava no horizonte da colónia e muito especialmente daquela região do norte de Angola. O chefe de posto, homem competente, não quis deixar de dar uma volta pelas roças da zona. Foi o que fez , e satisfeito por nada de anormal ter registado,  preparava-se para regressar ao posto, quando decidiu ir dar uma vista de olhos pela área de demarcação de um colono recém-chegado à região. Era a última da sua volta.

O terror alastrou pelo norte de Angola
Deparou-se então com um espetáculo dantesco. O colono, o empregado e a mulher deste jaziam num charco de sangue. Mas o mais arrepiante de tudo era que se encontravam totalmente retalhados à catanada.

Abandonou o local lívido com o que vira. Dirigiu-se apressadamente para o posto, não sem antes pretender avisar de passagem as outras fazendas do sucedido. Foi então que um branco vindo de Quitexe o informou que não regressasse ao posto. Ninguém tinha ficado vivo para contar como foi.

O coração do chefe de posto rebentou de angústia. Ninguém lhe conseguiu dizer como estava a sua mulher e os seus filhos.

O drama deste chefe de posto foi o de muitas centenas de pessoas, brancas e negras, da região. Fazendeiros e funcionários administrativos viveram então tempos de terror. Atacados por hordas de negros sucumbiram aos ataques à catana.

O nosso chefe de posto de Quitexe acabou por ter sorte. A sua mulher e os seus filhos foram salvos por um criado negro. Essa sorte, não tiveram outros colonos que foram degolados pelos próprios criados, alguns dos quais já os serviam há longos anos.

A horda avassaladora de negros revoltados estendeu a mancha do terror. Quitexe, Nuambuangongo, Quicabo, Zalala, Quimbunde, Aldeia Viçosa, Vista Alegre, foram povoações em que a revolta armada deixou um rasto de sangue e de corpos mutilados.

Homens, mulheres, bébes, velhos e novos, e calcule-se, brancos e negros, jaziam um pouco por todo o lado retalhados, cortados como peças de carne num qualquer talho europeu.

A revolta era programada e sistemática. Dembos e Uíge foram as zonas eleitas. O ataque era feito pela surpresa e pela calada. As hordas de negros apropriavam-se das armas que encontravam, arrancavam todas as canalizações - com as quais fariam os já célebres canhangulos - e retiravam em debandada geral para as densas e cerradas matas.

O ataque atinge também a zona norte fronteiriça com o Congo ex-Belga.

"Verirficaram-se no norte de Angola alguns incidentes..."
O governo português emitiu um comunicado lacónico que não dava conta da real tragédia que se abatera sobre o norte de Angola. «Verificaram-se na zona fronteiriça do Norte de Angola alguns incidentes a que deve atribuir-se gravidade por demonstrarem a veracidade de um plano destinado a promover atos de terrorismo que assegurem, a países bem conhecidos, um pretexto para continuarem a atacar Portugal perante a opinião pública internacional. ( … ). Chegaram a Luanda alguns feridos que foram carinhosamente recebidos, e toda a população de Angola demonstra a mais clara determinação em colaborar com as autoridades. ( … ).»

A autoridade colonial foi apanhada de surpresa. Teve de organizar serviços de socorro e de evacuação. Não foram poucos os brancos e negros que fugidos do terror procuraram a proteção da capital. Eram às centenas as mulheres e as crianças que chegavam a Luanda em busca de um manto protetor e em pânico.

Da região dos Dembos a evacuação era mais complicada uma vez que na região bnão havia pistas de aterragem para aviões. As próprias vias de comunicação eram ou inexistentes ou muito deficientes. Foi por isso mesmo a região de Angola mais atingida pelo autêntico flagelo que os atingiu. O alerta ou não chegou ou quando chegou já não vinha a tempo de os pôr a bom recato.

Norte de Angola a ferro e fogo
Em poucos dias o norte de Angola transformou-se num verdadeiro palco em que a morte e a violência eram os atores principais.

«Cerca de 200 000 negros cercam 50 000 brancos!. A polícia é mais do que exígua, os efetivos militares mais do que escassos, como ainda o poderia justificar um passado de sossego, mas já não um presente de anteriores e verificadas efervescências, que o caos em que entrara o Congo Belga só era susceptível de atear, como ateou”, contava Amândio César, no seu livro “Angola 1961”.

As poucas tropas portuguesas presentes então no território, cerca de 5.000 homens mais preparados e mal armados para o que se avizinhava, não chegavam para manter e garantir nem a paz no território nem repôr a confiança fortemente abalada dos colonos.

Foi a decisão do "em força e já para Angola" que Salazar tomou e anunciou na célebre comunicação que permitiu organizar batalhoes expedicionários que enviados para Angola conseguiram durante algum tempo repor a segurança pelo menos em grande parte do território.

Ação concertada pela UPA
A revolta negra no norte de Angola fora preparada no Congo mal tinha começado o ano de 1961 por um movimento que se apelidava de UPA (União das Populações de Angola) que nascera UPNA (União das Populações do Norte de Angola) mas que graças a acusações de tribalismo foi obrigado pelas forças das circunstâncias a deixar cair o Norte no nome.

Holden Roberto era o homem forte do movimento muito influente na tribo do Bakongos e tinha o apoio de militares do exército congolês.

Se é certo que a revolta marcou o início oficial da revolta armada contra o colonialismo português, - embora oficialmente tenha sido o ataque à prisão de São Paulo a 4 de Fevereiro do mesmo ano. Mas foi uma ação localizada destinada a libertar dirigentes nacionalistas presos pelos colonialistas – a verdade é que as características e a violência dos ataques ficam para sempre a manchar os seus autores e mentores e será sempre uma nódoa na longa luta que conduziu à independência em 1975.

Cavaco insta jovens a empenharem-se com coragem no futuro
O Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva presidiu às cerimónias que assinalaram em Lisboa o 50 aniversário do início da guerra colonial, guerra de África ou guerra de libertação.

Aos jovens de hoje, Cavaco apelou a que, à semelhança das juventudes que ao longo da guerra colonial se empenharam em ambos os lados ao que era então os desígnios nacionais da ocasião, se empenhem em causas e missões essenciais do futuro de Portugal.

"Importa que os jovens deste tempo se empenhem em missões e causas essenciais ao futuro do país com a mesma coragem, o mesmo desprendimento e a mesma determinação com que os jovens de há 50 anos assumiram a sua participação na guerra do Ultramar", afirmou o chefe de Estado, Aníbal Cavaco Silva.

Pois, acrescentou, enquanto portugueses, não haverá "causa maior" do que dedicar o esforço e a iniciativa "ao serviço da nação e dos combates que é necessário continuar a vencer, para promover um futuro mais justo, mais seguro e mais próspero".

"Para lá da memória, impõe-se o reconhecimento de todos os que, pela sua ação na defesa de Portugal, sofreram no corpo e na alma o preço do dever cumprido. São merecedores do nosso profundo respeito", sublinhou, saudando também "com especial apreço" os militares de etnia africana que de "forma valorosa" lutaram ao lado dos portugueses.

Sacríficio de gerações lançadas na guerra
Para a Liga dos Combatentes a data é assinalada para recordar todos os militares que ao longo dos anos defenderam a política colonial portuguesa, política que era a do regime que então vingava em Portugal, e para reclamar pela resolução dos problemas e dos anseios dos antigos combatentes.

"O 15 de março é uma data que marca o início da guerra colonial. Angola foi despertada no dia 15 de março por ações a que temos que chamar ações de terrorismo, que mataram centenas e centenas de habitantes do noroeste de Angola, brancos e negros. É o marco do sacrifício de muita gente, do sacrifício do próprio país que foi lançado numa guerra que durou anos demais", disse Chito Rodrigues, presidente da Liga dos Combatentes.

"Pretendemos que seja uma partilha de memórias 50 anos depois de acontecimentos que foram drásticos e uma homenagem a todos os vivos, a todos os mortos e a todas as vítimas envolvidas no conflito", disse.
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