"Sal na Ferida". Médicos Sem Fronteiras denunciam perseguições e intimidação

por Graça Andrade Ramos - RTP
Reuters

Num balanço dos 20 anos da 'Guerra contra o Terror' lançada após os ataques do 11 de setembro, os Médicos Sem Fronteiras publicaram um relatório no qual exigem ser dispensados das medidas antiterroristas implementadas desde então e o fim das represálias contra os seus trabalhadores.

“Os funcionários de primeira linha dos MSF contaram-nos como foram assediados, intimidados, espancados e acusados de apoiar os terroristas quando providenciavam cuidados de saúde imparcialmente”, referiu Luz Saavedra, do Departamento de Análise da organização e líder do estudo que serviu de base ao relatório. Intitulado “Pôr sal na Ferida”, o documento expõe o testemunho de quem viveu na pele os perigos de prestar imparcialmente cuidados médicos, no Afeganistão, no Iraque e na Nigéria. Conflitos descritos como “guerras sujas” onde “ninguém está a salvo”.

“É escandaloso que os Estados esperem que os trabalhadores de saúde recusem tratar pacientes com base em considerações políticas ou militares”, denunciou Saavedra.

“As nossas equipas são consideradas por aqueles que lutam contra o terrorismo como parte da sua estratégia militar; somos aceites quando somos úteis e rejeitados quando consideram que não servimos os seus objetivos militares e políticos”, acusou.

“Não podemos aceitar isto. Impede-nos de tratar pacientes e vai contra tudo o que significa ser humanitário”, defendeu a analista.

As políticas antiterroristas e a sua implementação prática colocam perigos reais e pessoais aos médicos e cuidadores, afirmou o relatório, invocando os testemunhos de quase dois terços dos funcionários dos MSF e de outras organizações humanitárias entrevistados.
Apoiantes de "terroristas"
Em depoimentos detalhados, a maioria dos participantes na pesquisa afirmou ter sofrido pessoalmente ou assistido a episódios de violência por parte de forças armadas locais, tanto fora como dentro das unidades de saúde, em enfermarias ou mesmo em ambulâncias em trânsito, de forma a impedir a prestação de cuidados médicos.  Os médicos e funcionários referiram mesmo ser cada vez mais difícil distinguir entre as táticas dos chamados terroristas e as do que os combatem.

Comunidades inteiras enfrentam obstáculos e proibições ou impedimentos no acesso aos cuidados, com os exércitos a fundirem civis e combatentes num só inimigo hostil. As cadeias de comando justificam o desrespeito pela proteção que a população civil merece à luz do direito internacional com o argumento de que são na verdade “terroristas” ou “apoiantes de terroristas”, refere o relatório dos MSF.

Um dos entrevistados afirmou que “vimo-los bombardear uma cidade cheia de civis, famílias nas suas casas”, com os doentes e os feridos a serem abandonados para sofrer ou morrer porque, como outro relatou, “não podíamos aceder-lhes e eles não conseguiam vir ter connosco”.

Os próprios participantes do inquérito sublinharam que, ao seguirem de forma genuína o princípio de imparcialidade nos cuidados, correram riscos graves e reais.

A defesa deste princípio humanitário e a imposição do seu respeito foram por isso consideradas por todos como vitais em circunstâncias de antiterrorismo, acrescentou o documento.
Desconfiança
Na prática, os participantes no relatório referiram que a perceção de proximidade dos trabalhadores humanitários aos Estados nas guerras contra o terrorismo tem gerado um enorme clima de suspeição entre grupos armados de oposição, até ao ponto de rejeitarem quaisquer contactos com os MSF ou outras organizações humanitárias. Numa frente de combate, os MSF vêem-se habitualmente entalados entre uma força antiterrorista que tenta procurar tirar proveito e uma oposição que não dialoga ou é hostil.

Os trabalhadores humanitários, mesmo sabendo das dificuldades de operar em zonas de conflito, referem que as medidas e leis antiterroristas vieram tornar o seu trabalho ainda mais difícil, ao “porem sal na ferida”.

A sua perspetiva, explicada de forma íntima e ímpar no relatório publicado esta segunda-feira, é contudo raramente tida em conta na elaboração dessas mesmas leis e práticas e nas formas de combater o terror. 
Procurar cuidados "não pode ser punido"
“Infelizmente, as conclusões desta pesquisa não surpreendem”, reagiu Françoise Saulnier, diretora legal internacional da agência. “A Guerra ao Terror reduziu a proteção das missões médicas ao antepor as leis antiterroristas domésticas à legislação humanitária internacional. Isto deixa as nossas equipas sujeitas às interpretações dos Estados, em termos legais e quanto ao papel dos cuidados de saúde”.

“Precisamos de ser capazes de prestar cuidados com base somente na necessidade. Precisamos ser capazes de falar com todos os grupos que controlam o acesso e que podem prejudicar as nossas equipas. As nossas instalações médicas têm de ser poupadas em qualquer tipo de operações militares e de segurança”, conclui a organização.

Os MSF apelaram no relatíro mais uma vez a que se abram exceções para os trabalhadores humanitários em ambiente de luta contra o terrorismo. 

“Isto implica que organizações humanitárias imparciais não sejam alvos de regimes legais ou das táticas militares que têm vindo a definir a Guerra ao terror”, afirma Saunier. “Procurar ou prestar cuidados de saúde urgentes não pode ser punido em nome da ‘luta contra o terrorismo’”.

O relatório baseou-se em 110 documentos externos e cerca de 150 internos e em entrevistas com 44 testemunhos-chave, incluindo funcionários dos MSF, de outras organizações não-governamentais e das Nações Unidas, assim como académicos e consultores.

Outros dados foram coligidos através de entrevistas on-line a 26 funcionários contratados localmente pelos MSF nos três países referidos, os quais trabalharam todos em ambientes de contra terrorismo, e aceitaram responder sob estrita confidencialidade, devido aos riscos associados, e sob regime de participação voluntária expressa.

As informações coligidas foram transcritas, analisadas, codificadas e comparadas entre si, sob um protoloco ético rigoroso pré-aprovado.
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