Soldado russo denuncia falta de motivos para guerra na Ucrânia

Um antigo paraquedista russo decidiu tornar públicos os motivos pelos quais não concorda com a campanha militar na Ucrânia. "Não vejo justiça nesta guerra. Não vejo verdade aqui", disse em entrevista citado no The Guardian.

RTP /
O título das memórias de Pavel Filatyev vem das marcações pintadas nos veículos russos DR

Pavel Filatyev publicou, há duas semanas, na rede social VKontakte, como participou na captura do porto de Kherson, combateu em Mykolaiv e acabou por ser retirado do conflito devido a uma infeção ocular. Consciente daquilo que espera os denunciantes e contra os conselhos da mãe, decidiu falar. 

Não tenho medo de lutar na guerra. Mas preciso de sentir justiça, entender que o que estou a fazer é certo. E acredito que tudo isso está a falhar não apenas porque o governo roubou tudo, mas porque nós, russos, não achamos que o que estamos a fazer é certo”, contou aos jornalistas do The Guardian, em Moscovo.

Pavel Filatyev já se questionava sobre o motivo pelo qual a Rússia decidiu entrar em conflito, mas Mykolaiv foi um ponto de viragem. “Estávamos sob fogo de artilharia [ucraniana] de Mykolaiv” e quase ficou cego devido à infeção provocada pela explosão de uma granada. Pensou: “Deus, se sobreviver, farei tudo o que puder para impedir isto”.

Filatyev sobreviveu e passou 45 dias a escrever o mais detalhado retrato da invasão russa da Ucrânia feito até ao momento. “Simplesmente não consigo ficar mais tempo quieto, mesmo sabendo que provavelmente não vou mudar nada, e talvez tenha agido tolamente para me meter em tantos problemas”, explicou este homem de 34 anos, oriundo de uma família militar da cidade de Volgodonsk, lembrando que até a utilização pública da palavra “guerra” estava vedada.

“Famintos” e “descontentes”

Intituladas “Zov”, a propósito das marcações pintadas nos veículos russos, interpretadas como um símbolo bélico, as memórias de Filatyev descrevem como os “paraquedistas famintos” da unidade do 56º Regimento de Ataque Aéreo, com base na Crimeia, participaram na invasão da Ucrânia continental com poucos objetivos definidos e na mais completa ausência de informação do que estava a acontecer. 

Demorei semanas a entender que não havia guerra no território russo de todo e que tínhamos atacado a Ucrânia”, declarou.

Entre os episódios relatados por Filatayev, estão roubos feitos pelos soldados como que aconteceu após a captura do porto de Kherson, em que começaram a pegar em “computadores e quaisquer bens valiosos que pudéssemos encontrar”. Depois, entre outros episódios reveladores da “degradação” do exército e do que Filatyev chama estado “animalesco” dos seus membros, comeram tudo o que encontraram nas cozinhas. "Tornaram-nos em selvagens", escreve Pavel Filatyev nas suas memórias.
 
“A maioria das pessoas está descontente com o que está a acontecer lá, estão descontentes com o governo e com os seus comandantes, descontentes com Putin e com as suas políticas, descontentes com o ministro da Defesa, que nunca serviu no exército”, escreveu o antigo paraquedista. Contudo, toda a unidade de Filatayev cortou relações com ele após a divulgação do relato.
 
Sobre os equipamentos, são descritos como “obsoletos”. Filatyev lembra que a arma que recebeu estava enferrujada e tinha uma corrente partida e que os camiões em que viajou para Kherson eram “obsoletos” e não blindados. Por vezes, paravam por 20 minutos num local, não sendo claro “qual era o plano – como sempre, ninguém sabia de nada”. “Éramos apenas um alvo ideal”, nota.

Filatyev relaciona o aumento da frustração na frente de guerra com os suicídios entre os soldados russos, as recompensas às famílias e alegados atos de mutilação contra soldados e cadáveres capturados. O antigo paraquedista aponta a falta de tratamento para veteranos e afirmou que muitas famílias não receberam a indemnização devida aquando da morte de um soldado.
 
Apesar de garantir não ter visto nenhum ato que pusesse ser considerado de abuso, fala de uma cultura de raiva e ressentimento no exército russo.

Saída da Rússia

Filatyev deixou a Rússia no início desta semana, com o apoio do líder da rede Gulagu.net, Vladimir Osechkin. É o primeiro soldado a abandonar o país devido à sua oposição à guerra da Ucrânia. A sua primeira intenção era entregar-se à polícia após a publicação das memórias, mas a insistência do ativista levou-o a reconsiderar.

Durante duas semanas, dormiu sempre em sítios diferentes e tentava antecipar os movimentos da polícia. Mas considera que não seria difícil de encontrar.

Filatyev pode ter sido inspiração para outros. Coincidência ou não, já depois da sua fuga, um soldado russo confessou perante as câmara ter matado um civil da cidade ucraniana de Andriivka.
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