Tese da origem externa do vírus. China tenta afastar responsabilidades pela pandemia

por Mariana Ribeiro Soares - RTP
Aly Song - Reuters

Cerca de um ano depois de terem sido detetados os primeiros casos do novo coronavírus, a China tenta alterar a história sobre a origem da Covid-19 ao defender que a pandemia surgiu noutros países. A OMS já veio defender que seria "altamente especulativo" afirmar que a Covid-19 não teve origem na China.

Em dezembro de 2019, corria o mundo a notícia de que uma misteriosa e preocupante pneumonia viral tinha sido identificada na cidade chinesa de Wuhan. Em poucos dias, o surto que teve origem nesta cidade difundiu-se a todo o país e, mais tarde, além-fronteiras.

A misteriosa doença viria a ser confirmada como um novo tipo de coronavírus, o SARS-CoV-2, que provoca a doença Covid-19 e que infetou até agora mais de 60 milhões de pessoas em todo o mundo e matou perto de 1,5 milhões.

Quase um ano depois de ter sido detetado o primeiro caso, a China tem vindo a intensificar uma campanha que coloca em causa a origem da pandemia. Os meios de comunicação estatais chineses têm insistido na narrativa de que o vírus já existia antes de ter sido descoberto na cidade de Wuhan, citando a presença deste novo vírus em embalagens de alimentos congelados importados.

Na passada quarta-feira, a página oficial do jornal chinês Diário do Povo no Facebook fez uma publicação onde declara que “todas as evidências disponíveis sugerem que o coronavírus não surgiu na cidade chinesa de Wuhan”.

“Wuhan foi onde o coronavírus foi detetado pela primeira vez, mas não onde ele se originou”
, lê-se ainda na página do jornal, que cita Zeng Guang, antigo epidemiologista chefe do Centro Chinês para o Controlo e Prevenção de Doenças (CDC).

Questionado sobre esta possibilidade, um porta-voz do Ministério chinês dos Negócios Estrangeiros defendeu igualmente que é importante distinguir entre onde a Covid-19 foi detetada pela primeira vez e quando o vírus cruzou a barreira de espécies e passou dos animais para humanos. “Embora a China tenha sido o primeiro país a reportar casos, não significa necessariamente que o vírus teve origem na China”, defendeu Zhao Lijian numa conferência de imprensa. “A monitorização da origem é um processo contínuo que pode envolver vários países e regiões”, acrescentou o porta-voz.

Entretanto, apesar de ainda não ter sido revisto, cientistas chineses submeteram um artigo para publicação na revista científica The Lancet onde alegam que “Wuhan não é o local onde ocorreu pela primeira vez a transmissão do SARS-CoV-2 entre humanos”, sugerindo, por sua vez, que o primeiro caso poderá ter sido no subcontinente indiano.
Cientistas descredibilizam alegações chinesas
As alegações de que a Covid-19 teve origem fora das fronteiras chinesas têm pouco crédito para os cientistas do mundo ocidental. Na sexta-feira, o diretor executivo do programa de emergências sanitárias da Organização Mundial da Saúde (OMS) disse que seria “altamente especulativo” afirmar que a Covid-19 não teve origem na China.

“É claro, de uma perspetiva de saúde pública, que as investigações começam onde surgiram os primeiros casos em humanos”, explicou Mike Ryan durante uma conferência virtual.

O jornal chinês Diário do Povo utiliza ainda o argumento baseado em relatórios que afirmam que a Covid-19 já circulava em Itália no outono de 2019, depois de terem sido detetados anticorpos específicos para o SARS-CoV-2 em amostras de sangue obtidas num teste de rastreio ao cancro do pulmão realizado entre setembro de 2019 e março deste ano.

O virologista britânico Jonathan Stoye considera que estes relatórios são “fracos”. Em declarações ao jornal The Guardian, Stoye esclarece que “os dados serológicos [de Itália] podem ser explicados por anticorpos relacionados com outros tipos de coronavírus”, ou seja, segundo o epidemiologista, os anticorpos podem ter sido desencadeados por indivíduos infetados com outros coronavírus, e não por aquele responsável pela doença Covid-19.

“O que parece certo é que os primeiros casos registados da doença foram na China”,
acrescenta Stoye. “Portanto, é mais provável que o vírus se tenha originado na China”, concluiu.
Coronavírus detetado em alimentos congelados
Segundo o South China Morning Post, o atual epidemiologista chefe do Centro Chinês para o CDC também defende a tese de que a pandemia teve origem fora da China, dando a possibilidade de ter chegado ao país através de embalagens de marisco e carne congeladas importadas.

Nos últimos meses têm sido detetados indícios do vírus SARS-CoV-2 em alimentos congelados, maioritariamente carne. Só este domingo, a cidade de Wuhan confirmou que três lotes de alimentos congelados testaram positivo para a Covid-19, dois deles importados do Brasil. Esta é já terceira vez este mês que é detetado o novo coronavírus em embalagens com carne congelada importada do Brasil para Wuhan.

Os cientistas acreditam, no entanto, que o vírus detetado em embalagens de alimentos congelados representa um risco extremamente baixo de contágio, uma vez que está confirmado atualmente que a doença Covid-19 se transmite maioritariamente através de gotículas respiratórias.

Andrew Pekosz, da Universidade Johns Hopkins, explicou à Associated Press que um teste positivo para a Covid-19 “não indica que o vírus é infecioso, mas apenas que esteve presente naquela superfície”. “Não vi nenhum dado convincente de que o SARS-CoV-2 em embalagens de comida representa um risco significativo de infeção”, concluiu Pekosz.

Andrew Small, estudante universitário chinês, refere a The Guardian que Pequim está a tentar, com tudo isto, proteger a sua reputação à medida que o número de vítimas aumenta. “A China ainda está a lutar contra o facto de ser considerada responsável pelo ‘pecado inicial’ do surto, que prejudica praticamente todos os esforços para salvar a sua imagem”, afirma Small, que considera que pode mesmo ser mais difícil para a China combater a responsabilidade pela pandemia do que a própria doença.

Para o estudante universitário, os altos representantes chineses não têm qualquer dúvida sobre a origem do novo coronavírus e o esforço em defender uma narrativa que nega essa mesma origem não passa de uma campanha de propaganda. Defende ainda que as dúvidas levantadas pela China seriam mais plausíveis se se apoiassem numa investigação independente sobre a doença, mas as autoridades chinesas não têm cooperado.

Os investigadores da OMS que visitaram Wuhan no início deste ano não conseguiram visitar o mercado de alimentados relacionado com o surto inicial. Apesar de ainda não existir uma data confirmada, uma nova equipa deverá ser enviada para a China em breve para dar continuidade ao trabalho inicial sobre a origem da Covid-19.
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