Thatcher queria o dinheiro de volta. O que quer o Reino Unido 37 anos depois?

A permanência do Reino Unido na União Europeia chega à mesa dos chefes de Estado e de Governo dos 28. Em Bruxelas, os líderes procuram esta quinta-feira chegar a um consenso quanto às exigências apresentadas por David Cameron. Quarenta e três anos depois da adesão, a convivência entre Bruxelas e Londres complica-se. Um facto que traz à memória a relação difícil com a Inglaterra de Margaret Thatcher, no cair do pano sobre o século XX.

Christopher Marques - RTP /
Suzanne Plunkett - Reuters

Passaram quase 37 anos. Em 1979, começavam cinco anos de relações muito conturbadas entre o Reino Unido e a Europa. Margaret Thatcher enfrentava um ainda pequeno projeto, do qual faziam parte nove Estados-membros e cujas áreas de atuação eram infinitamente menores.

O verniz estalava no fim da reunião do Conselho Europeu de 30 de novembro - uma cimeira semelhante àquela para a qual convergem por estes dias os líderes europeus. Terminava o encontro e a dama de ferro contava aos jornalistas o que queria e não tinha conseguido ter. Bastaram-lhe cinco palavras: “I want my money back”.

A chefe de Governo constatava que o reino pagava mais do que recebia do bolo comunitário e queria contas feitas. Estamos às portas da década de 80: a maior fatia do bolo europeu destina-se à Política Agrícola Comum, sector pouco relevante por terras de sua majestade.


Margaret Thatcher e François Miterrand (Fotografia de Charles Platiau – 1987)

A solução chegará em 1984, em Fontainebleau, já com a Grécia como 10.º membro da Comunidade. A Europa cede e Thatcher aceita que lhe seja anualmente atribuído o chamado “cheque britânico”.

Este é uma avultada transferência feita pelos restantes Estados-membros no valor de dois terços da diferença entre o que o Reino Unido paga e recebe de Bruxelas. Ou seja, se Londres dá quatro euros e só recebe um euro em fundos, os restantes Estados-membros oferecem-lhe dois euros.

O sistema ainda vigora. Em 2014, os Estados-membros passaram um cheque superior a seis mil milhões de euros a Londres, revelam os dados da Comissão Europeia. Portugal participou com 123 milhões de euros.

Londres não é Atenas ou Lisboa. Há mais de 30 anos, a comunidade – que é como quem diz Paris e Berlim – acabou por ceder e Thatcher teve uma grande parte do seu dinheiro de volta. É outra luta aquela que leva Cameron, sucessor da dama de ferro em Downing Street, ao coração da Europa.

Começa esta quinta-feira uma nova reunião do Conselho Europeu. O primeiro ponto da agenda é o estabelecimento de um novo quadro para o Reino Unido na União Europeia. Por outras palavras, se Cameron irá torcer para que os ingleses continuem na União Europeia.

Em última instância, se continuaremos a ser 28 ou passaremos a 27. Out or in. Brexit or not.
O que quer Cameron?
Perante o crescimento de movimentos como o UKIP, o primeiro-ministro britânico prometeu referendar, o mais tardar em 2017, a presença do Reino Unido na União Europeia. Tudo aponta para que a consulta se realize já em junho de 2016.

Para fazer campanha pela pertença do reino à UE – o sim no referendo - David Cameron exige mudanças na relação entre Bruxelas e Londres. Abre-se assim a porta a novas exceções para um país que ficou já de fora da moeda única e do espaço Schengen.

Mendes Oliveira e Guilherme Terra - RTP (10 de Novembro de 2015)

As propostas britânicas ficaram preto no branco a 10 de novembro, com a carta enviada por David Cameron a Donald Tusk. O chefe do Governo britânico divide em quatro áreas as exigências: governança económica, competitividade, soberania e imigração. Ao todo, as exigências britânicas resumem-se numa palavra: “flexibilidade”. “To be or not to be together, that is the question”.

A missiva inglesa teve resposta escrita em fevereiro. Envergando o fato de presidente do Conselho Europeu, o polaco Donald Tusk apresentou o ponto de vista comunitário e não resistiu a mais um dos seus já tradicionais trocadilhos.

“Ficarmos ou não juntos, esta é a questão”, redigira, recorrendo à mítica frase de Shakespeare. Depois dos bastidores, os líderes europeus sobem agora ao palco.
Competitividade e soberania
No leque de propostas, as questões de soberania e competitividade apresentar-se-iam como aquelas em que o acordo estararia, em tese, mais próximo.

O Reino Unido mantém a alergia à expressão “criação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa”, que se encontra no artigo 1º do Tratado da União Europeia. Cameron quer que fique escrito de forma “formal, juridicamente vinculativa e irreversível” que o Reino Unido não se sente obrigado a trabalhar nesse sentido.

Downing Street quer ainda que a Europa se comprometa com o princípio da subsidiariedade, já incluído nos tratados. Ou seja, que a União Europeia reafirme o compromisso de apenas legislar a nível europeu quando esta solução for melhor do que a ação nacional. “A Europa onde for necessário, nacional onde é possível”, frisa o líder britânico.

António Esteves Martins e Pedro Escoto - RTP (18 de dezembro de 2015)

Princípios e palavras à parte, a grande diferença proposta por Cameron neste domínio é um reforço dos poderes dos parlamentos nacionais. O Reino Unido pretende que um número de assembleias a definir se possa juntar e bloquear uma proposta legislativa.

A ideia tem merecido luz verde e os projetos legislativos europeus deverão poder ser bloqueados, se essa for a vontade de 55 por cento dos parlamentos nacionais – ou seja, 16 dos 28 parlamentos.

No domínio da competitividade, Londres saúda a aposta da Comissão Europeia no crescimento económico e na estratégia comercial, sublinhando a possibilidade de serem fechados acordos comerciais com a América, a China e o Japão.

Congratula, mas quer mais: o Reino Unido pretende ver reduzida a atual regulamentação e que a Europa reafirme o seu compromisso com a liberdade de circulação de capitais, bens e serviços e com o Mercado Único.
Governança Económica
Ao contrário dos outros dois, governança económica e imigração são pontos críticos nas negociações. O problema económico e monetário advém de uma Europa que já funciona a diferentes velocidades e é denominado por uma simples palavra: euro.

David Cameron quer que fique claro que o Reino Unido não faz e não fará parte da moeda única. Apesar disso, aponta que há assuntos do euro que também influenciam os países com moeda própria e, por isso, quer ter uma palavra a dizer.

Downing Street
garante que não quer ter poder de veto nas decisões da Zona Euro mas pretende um “mecanismo de salvaguarda” para garantir que as decisões desta não afetam os interesses dos restantes membros da União Europeia.

Do outro lado da Mancha, quer-se ainda que fique garantido que os contribuintes dos países de fora da Zona Euro não serão chamados a financiar operações para salvar o euro, ao contrário do que aconteceu no caso grego.

David Cameron pretende ainda que as instituições europeias garantam que a moeda não será fator de discriminação entre Estados-membros. Com estas medidas, Downing Street quer assegurar-se de que, mesmo sem euro, Londres continua a ser a capital financeira da Europa e que esta não é afetada pelas decisões em torno da moeda única.

Em resposta, a Europa propõe que fique escrito que os Estados que aderiram ao euro “respeitarão os direitos e as competências dos outros”. Já sobre a moeda única, as instituições não concordam que Londres tenha uma palavra a dizer nas decisões que dizem respeito ao euro.

Propõem, em alternativa, que seja criado um mecanismo que permita aos Estados que não usam o euro contestar uma decisão tomada pela Zona Euro que considerem que lhes é prejudicial.

Esta contestação teria de ser apresentada por um número a determinar de países e permitiria que o tema seja discutido no Conselho Europeu.

Perante as dúvidas de Paris, Tusk garantiu que o Reino Unido não terá poder de veto sobre decisões da Zona Euro e que o mecanismo não poderá atrasar decisões ditas urgentes.
Imigração

É das questões mais fraturantes e aquela que mais portugueses poderá afetar. O Reino Unido insiste que o atual fluxo migratório não é sustentável para o país e pretende tomar medidas para reduzir o número de pessoas que atravessa a Mancha para viver – incluindo a partir dos Estados da União Europeia.

As críticas não se fizeram esperar, apontando-se que pode estar em causa a própria liberdade de circulação de pessoas na União Europeia. Perante o cenário, o Reino Unido quer reduzir a sua atratividade, preparando-se para dificultar o acesso aos seus sistemas sociais.

Londres quer que os não-britânicos tenham de viver no país e contribuir durante quatro anos antes de obterem benefícios sociais.

António Esteves Martins e Pedro Escoto - RTP (29 de Janeiro de 2016)

Este princípio é considerado “discriminatório”, tendo dado origem a uma contraproposta europeia. Bruxelas quer dar a possibilidade a todos os Estados-membros de acionarem um “travão de emergência” para “situação excecionais” em que os serviços públicos estejam a ser afetados por um aumento do fluxo migratório. Este permitiria suspender temporariamente o pagamento de prestações aos que chegam ao país.

Por definir está o tempo de vigência deste “travão”, bem como quem poderá decidir a sua aplicação. Londres aposta em sete anos.

Para que Cameron aceite esta alternativa, o Reino Unido terá de receber a garantia de que poderá começar já a aplicar a medida. Um caminho que já vem sendo traçado: a Comissão admitiu que este tipo de “situação excecional” se vive atualmente no Reino Unido.

Cameron pretende ainda que os próximos países a entrarem na União Europeia só beneficiem da livre circulação de pessoas quando as suas economias tiverem convergido para um nível próximo aos dos restantes Estados-membros.

O Reino Unido acena ainda com o não pagamento de prestações sociais referentes a filhos de migrantes, quando as crianças ficaram no país de origem. Na contraproposta europeia, Bruxelas propõe que estas prestações sejam pagas, mas indexadas ao custo de vida no país onde a criança se encontra.

A haver acordo, os Estados-membros terão ainda de definir de que forma serão inscritas estas alterações. Cameron frisa que quer um acordo “juridicamente vinculativo e irreversível – e quando necessário com força nos tratados”. No entanto, não é previsível que se avance já para um processo tão complexo como a revisão dos Tratados.
Seduzir Cameron, chegar aos ingleses
As exigências de Cameron tocam em aspetos essenciais da União Europeia. Afetam os objetivos futuros da construção europeia, ao insistir que o Reino Unido não será parte do euro e ao fazer finca-pé quanto ao desígnio de avançar com uma “união cada vez mais estreita entre os povos da Europa”.

Ao limitar a imigração e o acesso a prestações sociais, Cameron agita os fantasmas da discriminação e da limitação à liberdade de circulação no espaço europeu. Ao querer ter uma palavra a dizer nos assuntos do euro, assusta Paris que teme ver a moeda única paralisada por vetos ou protestos sucessivos.

Trinta e sete anos depois, Londres não quer o seu dinheiro de volta e as suas exigências tangem princípios considerados fundamentais do projeto europeu. As respostas já trazidas pelas instituições vão ao encontro de algumas das preocupações de Cameron, mas não as satisfazem completamente.
"À la carte"
Cameron conta com uma forte oposição de Paris. "A Europa deve permanecer um espaço de solidariedade entre os Estados. Não podemos escolher à la carte, em função do que nos convém”, defendeu o primeiro-ministro francês. No entanto, Manuel Valls alerta para os riscos de o Brexit se concretizar e admite que a União necessita de reformas.

Angela Merkel mostra maior simpatia pelas propostas de Cameron. A chanceler considera que muitas das exigências se justificam e são “compreensíveis”, nomeadamente nas questões monetárias e de imigração. A aposta na melhoria da competitividade, transparência e menor burocracia merecem também a aprovação de Berlim.
"Nada acordado até que tudo esteja"
Nas negociações será, certamente, tida em conta a importância da permanência do Reino Unido. Um papel diplomático, de relevância internacional, mas também económico.

A economia britânica vale 16 por cento do PIB comunitário e, entre despesas e receitas, o Reino Unido deu um contributo líquido de quase cinco mil milhões de euros à UE em 2014.

O Brexit tem outros riscos que não tinha o Grexit. Atenas representa 1,27 por cento do PIB europeu e é um dos recetores líquidos da comunidade. Feitas as contas, Atenas custou mais de cinco mil milhões de euros, em 2014, aos cofres europeus. Números que ajudam a explicar a diferença na postura dos líderes europeus.

Mesmo assim, na missiva, o próprio Tusk apontou que “nada está acordado até que tudo esteja acordado”. Esta quarta-feira voltou a sublinhar que o acordo não está a assegurado. Não é, por isso, impossível que se chegue a sexta-feira da mesma forma como se chegou à tarde de 30 de novembro de 1979.
A caminho do referendo
Caso não se chegue a consenso, novas reuniões poderão realizar-se na busca pelo fumo branco, nomeadamente na cimeira de março do Conselho Europeu.

Um compromisso que poderá mesmo assim não resolver nada. Mesmo que haja fumo branco em Bruxelas, a presença do reino na União Europeia não está assegurada. O apoio de Cameron, apesar de importante, não garante um voto europeísta dos britânicos na consulta popular.

Mesmo do lado de cá do canal da Mancha, o projeto europeu lida mal com referendos. Os sufrágios na Holanda (2005), França (2005), Dinamarca (2015) e Grécia (2015) são exemplos disso mesmo. No Reino Unido, sondagens recentes apontam para a vitória do não.

Acima da Mancha, os britânicos continuam com um pé de fora de um projeto que – cada vez mais - circula a velocidades diferentes. Em breve, perante as dificuldades e o crescimento dos partidos eurocéticos, poderão mesmo acabar com os dois de fora.
 
É ilusório acreditar que a questão ficará já resolvida. Depois do termo Grexit em 2015, é a vez do Brexit: promete tornar-se de uso constante em 2016, mesmo que não se chegue lá.
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