O magnata que agora chega à liderança dos Estados Unidos como 47º presidente poderá seguir um guião muito diferente daquele que seguiu entre 2017 e 2021. A RTP procurou antecipar o que podemos esperar deste segundo mandato com os contributos de quatro peritos em política internacional.
A análise engloba não só as declarações que Donald Trump tem proferido nos últimos meses, mas também o novo contexto político, internacional e a nível nacional, que se impõe. E o histórico de Trump como presidente e candidato não é esquecido.
Para o jornalista e escritor Miguel Szymanski, a “surpresa” e a “estupefação” marcaram o primeiro mandato. Agora, a palavra-chave é a “imprevisibilidade”, sendo que o contexto é “bem mais preocupante” na atualidade.
“Estamos perante uma tempestade perfeita como não tínhamos no primeiro mandato”, resume.
Há, no entanto, algumas diferenças: “Até do ponto de vista da análise do que foi a campanha, Donald Trump parece ser hoje um político mais calculista. Isso deriva evidentemente da sua experiência mas também de uma certa perceção que o próprio terá tido, ou alguém lhe terá explicado, de que o seu estilo truculento não é sempre eficaz”, refere José Gomes André. “Podemos esperar um Trump mais calculista, talvez menos agressivo. No seu estilo caótico e com umas tiradas que o marcam. Mas uma presidência mais tradicional”, sugere o investigador.
A “oligarquia” e o teste à democracia
Filipe Vasconcelos Romão destaca, por sua vez, a obtenção de uma maioria no voto popular e no Colégio Eleitoral, mas também a maioria nas duas câmaras: “Estes candidatos ao Senado e à Câmara dos Representantes, na sua esmagadora maioria, estavam com o candidato a presidente e já conheciam o trabalho do candidato a presidente. Esta é uma diferença clara em relação ao seu primeiro mandato. Todo o seu programa, mesmo os aspetos que nos poderiam parecer mais chocantes, já foram divulgados durante a campanha eleitoral”, frisa o investigador. Para além da imigração e das questões da fronteira, o investigador Filipe Pathé Duarte assinala aquele que foi o tema central do discurso de despedida do presidente cessante, Joe Biden, ao assinalar os perigos de domínio de uma “oligarquia essencialmente representada por um poder associado às indústrias da área da tecnologia digital”.
“O problema associado a estas indústrias não é tanto só a representação de poder financeiro da oligarquia, mas essencialmente perceber que é um determinado tipo de plataforma que nos traz a realidade (…) que pode ser perfeitamente manietada de acordo com o interesse dessa mesma oligarquia e do poder que essa mesma oligarquia poderá querer a representá-la”, acrescenta.
Filipe Pathé Duarte diz mesmo que há “uma queda do valor de verdade” que tem impacto “na relação de confiança das sociedades”. O jornalista Miguel Szymanski também alerta para os perigos representados pelos empresários de tecnologia. “Elon Musk tem um ascendente enorme sobre a próxima administração. (…) Musk está ativamente a promover partidos com uma extrema-direita, tudo o que são partidos que destabilizam a Europa”, destaca.
“A democracia dos EUA tem vindo a transformar-se ao longo dos tempos numa plutocracia que uma certa liga de bilionários (…) veio aumentando o seu poder”, nomeadamente na compra de jornais ou bilionários ligados a Sillicon Valley ou Wall Street.
Por outro lado, os casos judiciais que envolveram Trump nos últimos meses “levaram a que fosse tomada a decisão de total impunidade criminal do presidente dos Estados Unidos em funções”, afiança Miguel Szymanski. “Aquela frase que Donald Trump dizia de uma forma provocatória, se eu matasse alguém em plena Quinta Avenida, não me acontecia nada, tornou-se realidade”, argumenta. O jornalista luso-alemão adverte mesmo para os perigos que tal representa para a democracia norte-americana, lembrando a forma como Adolf Hitler ascendeu ao poder na Alemanha, há um século, desencadeando do fim da república de Weimar.
“Não é impossível a um presidente com uma maioria nas câmaras necessárias estabelecer uma lei que suspenda ou modifique a democracia. Mesmo numa democracia com algumas provas dadas”, adverte. Por seu lado, o professor José Gomes André, especializado em história norte-americana, acredita na resiliência da democracia norte-americana e da sua variedade de “checks and ballances” (freios e contrapesos), apesar de reconhecer os grandes desafios que se avizinham.
“Sabemos hoje que a capacidade de oposição do Partido Republicano a Donald Trump é muito pequena, é frágil. A maioria republicana nestes organismos e também a forma como o Supremo Tribunal tem dado azo às suas decisões cria um ambiente muito favorável a esse tipo de presidência mais autoritária, mas centrada na figura de Trump”, sublinha. No entanto, lembra a força do federalismo no contexto norte-americano, da imprensa e da própria sociedade civil, num país de “grande tradição de intervenção cívica”, com capacidade de bloqueio, protestos ou de ações em tribunal, “nomeadamente quando estão em causa direitos fundamentais”, acrescenta.
“O que julgo que vamos ver em ação é um teste aos checks and balances no sentido de exigirem o máximo que eles próprios podem dar. Se poderão quebrar e fraquejar, poderá acontecer, mas não julgo que Donald Trump tenha esse objetivo nem que tenha tempo suficiente para o fazer face a esta conjuntura de obstáculos”, afirmou.
“Duas versões extremas” sobre os casos judiciais
Também no que diz respeito aos casos judiciais, José Gomes André procura desmontar o que designa de “armadilhas”. “Há dois extremos que são muito fáceis, numa primeira análise, de defender. O primeiro é de que Trump é um perseguido pela justiça, houve uma caça às bruxas, houve uma instrumentalização de todos os órgãos para o prender ou afastar da presidência”.
Mas há também a visão contrária, de que Trump “começou por ser investigado e que, na verdade, embora houvesse uma série de provas para o condenar, houve uma espécie de supressão de todo o processo judicial e ele acabou absolvido de forma misteriosa”.
Na leitura de José Gomes André, “a verdade está algures a meio entre estas duas versões um bocadinho extremas”. Recorre ao exemplo do caso Stormy Daniels, em que o presidente eleito foi condenado por ter efetuado pagamentos ilegais para comprar o silêncio de uma atriz pornográfica, mas não foi condenado a qualquer pena.
O juiz “preferiu não aplicar nenhuma pena, para de alguma maneira permitir ao presidente desempenhar as suas funções sem ter uma limitação de um pena suspensa, por exemplo, que poderia numa situação futura levar à prisão. (…) Optou-se por este cenário que não é propriamente passar uma borracha por cima e dizer que nada aconteceu, mas, reconhecendo este crime, isentá-lo de pena”, explica.
José Gomes André assinala, neste contexto, os quadros de imunidade diplomática ou dos deputados que existem “na maior parte dos sistemas democráticos”.
“No que diz respeito aos agentes políticos com papel governativo, que têm que tomar decisões, imagine o que seria criminalizarmos um político pelas consequências de uma decisão que ele toma. (…) Isto levaria a uma paralisia do sistema, ninguém tomaria decisões com receio de ser mais tarde responsabilizado criminalmente”, assinala. E, no caso dos EUA, esta questão é especialmente relevante no caso do presidente, que muitas vezes toma “decisões de forma quase unilateral”.
A responsabilização política e a imunidade judicial são duas faces da mesma moeda, ainda que no caso de Trump este equilíbrio tenha sido “particularmente testado” pela série de casos em que esteve envolvido. “O mais próximo que temos é o caso de Richard Nixon, onde surgiu um caso que havia provas bastante concretas do seu envolvimento no escândalo de escutas do partido adversário. Esse caso era efetivamente muito forte e foi discutida essa questão da imunidade política e judicial. O que é que resultou daí? Uma decisão política do próprio Nixon em demitir-se. Foi aliás o único presidente dos EUA que se demitiu para evitar um processo judicial nebuloso. Não é com Trump que é inventada esta ideia dos processos judiciais complexos, ele simplesmente testou o sistema de uma maneira inédita pela quantidade de situações em que esteve envolvido”, sumariza.
As guerras na era Trump
No plano internacional, destacam-se os conflitos mais prementes a nível internacional nos últimos anos. A situação na Ucrânia tem merecido grande destaque nas intervenções de Donald Trump ao longo dos últimos meses.
“Não é preocupante quando ele diz, num excesso de retórica óbvio, que acaba com a guerra na Ucrânia em 24 horas. É desejável que haja uma qualquer forma de cessar-fogo. Infelizmente é preocupante o que está por trás dessa negociação que ele anuncia. São assuntos que vão fragilizar muitíssimo a União Europeia. (…) Por exemplo, ao obrigá-la a gastar 5 por cento da sua riqueza em armas, sobretudo em armas norte-americanas. Açambarcar o mercado energético europeu, mais ainda do que o já o domina através do gás natural e das exportações, que vieram substituir os fornecimentos baratos de energia russa”, argumenta o jornalista Miguel Szymanski. Filipe Vasconcelos Romão partilha desta mesma ideia. “Para as potências europeias serem mais responsáveis pela sua própria defesa, provavelmente, e tendo em conta o status quo da indústria de armamento na Europa, isto obrigá-las-á a fazer compras nos Estados Unidos. E isto vai diretamente em direção ao sentido daquilo que é a posição norte americana, esta ideia um bocadinho transacional da política que Donald Trump tem, no sentido de ver vantagens também do ponto de vista comercial para aquilo que são as suas posições políticas”, resume.
A diminuição de apoios à Ucrânia por parte dos EUA poderá ter reflexos imediatos no terreno. “A resolução dessa situação - que Donald Trump disse durante a campanha que iria resolver em pouco tempo – partirá muito, por um lado, de uma pressão que Trump vai fazer à Rússia, naturalmente, e também uma pressão da possibilidade de menor apoio à Ucrânia por parte dos norte-americanos, o que porá as duas partes relativamente desequilibradas, precipitando um potencial acordo de cessar-fogo”, afirma Filipe Pathé Duarte.
“O sistema internacional, este em que vivemos pelo menos desde o final da Segunda Guerra Mundial, muito pautado pelo respeito do direito internacional, pelo respeito das soberanias e das instituições, o que se chama uma ordem liberal, teve sempre como baluarte de proteção dessa mesma ordem os Estados Unidos. E, de repente, tendo em conta pelo menos a narrativa explícita de Donald Trump, possivelmente isso poderá ser posto em causa”, acrescenta Filipe Pathé Duarte, denotando “uma espécie de réplica da Doutrina Monroe”. Espera, por isso, uma postura “mais realista por parte dos Estados Unidos nas relações internacionais e não tão construtivista e não tão transformadora” ou esforçada na “manutenção de determinados princípios éticos, morais e legais”. Por essa via, poderá “haver um encorajamento de movimentos, comunidades e Estados não necessariamente democráticos, que, perante aquilo que Donald Trump reflete, se poderão sentir encorajados nesse processo”, antecipa o académico.
No Médio Oriente, o presidente eleito “dá provas de que não pretende ter uma participação ativa, direta e constante das forças norte americanas no terreno para tentar apagar fogos”, refere Filipe Vasconcelos Romão. Pretende, num primeiro momento, ter a situação de Gaza resolvida o mais cedo possível.
“Trump pretende apaziguar o Médio Oriente, por muito que isto nos possa parecer chocante face à sua figura. E pode até ser um apaziguar diferente daquilo que poderiam ser os interesses (…) de um reconhecimento, por exemplo, da autodeterminação da Palestina”, adianta. O objetivo principal é que Gaza não leve a um envolvimento direto dos EUA na região. Para o investigador, o próximo presidente norte-americano pretende delegar no Governo israelita o papel que até agora os Estados Unidos tinham desempenhado. “Mas para isso, Israel não pode ser uma potência hostil a tudo o que o rodeia. O que é que é necessário? Recuperar o espírito dos acordos de Abraão, que foram um dos seus trunfos na política externa no primeiro mandato”, assinala.
“Julgo que há uma visão pragmática de Trump que vê o mundo dividido em esferas de influência, recupera a ideia de esferas de influência. A administração Trump parece pronta a reconhecer que a Rússia pode ter um papel importante e que há uma espécie de espaço que poderá ser vedado ao Ocidente, porque é um espaço prioritário para a Rússia. A mesma coisa em relação à China. (…) Poderá ser mais chocante, por exemplo, a presença de investimento chinês em portos próximos do Canal do Panamá do que propriamente as aspirações que a China tem em relação a Taiwan. Porque, mal ou bem, é provável que, a médio prazo, venha a compreender que Taiwan pode ser parte do mundo chinês”, acrescenta.
Nas últimas semanas, as propostas do próximo inquilino à Casa Branca quanto à Gronelândia ou ao Canal do Panamá levaram a uma ampla discussão. “Estrategicamente, os Estados Unidos jamais poderão fazer uma intervenção no Panamá, porque é de interesse ter uma boa relação com o Panamá”, até porque poderá ser uma zona de controlo dos fluxos migratórios vindos da América do Sul, refere Filipe Pathé Duarte.
Importa também lembrar que o Panamá “tem vindo a ser útil” para a aplicação de sanções norte-americanas a empresas russas ou iranianas. No fundo, a proposta em relação ao Panamá advém de uma forma “muito peculiar de estar na política internacional e dizer que não tolerará as suas portas – geográficas, bem entendido - presença chinesa”. No caso da Gronelândia, “o racional é relativamente parecido”, argumenta Filipe Pathé Duarte. “A Gronelândia torna se cada vez mais um ponto de pressão geopolítica e geoestratégica, um centro de gravidade, em resultado (…) das alterações climáticas, porque o aumento da temperatura está a causar degelo e o derretimento do permafrost”, adianta.
Essa situação está a gerar “novas rotas de navegação muito mais curtas, logo mais baratas” entre a Ásia e o Atlântico Norte. “E onde passa marinha mercante, passa marinha de guerra”, sendo que boa parte do Ártico já é dominada pela Rússia e a China, refere o investigador.
Filipe Pathé Duarte lembra também que o derretimento do permafrost, fruto das alterações climáticas, poderá dar acesso a novas fontes de hidrocarbonetos, mas também “minerais críticos e às terras raras”.
“Quem está no topo e no controlo destes mesmos minerais críticos e das terras raras é a China. Controlar o Ártico, põe a China, de facto, numa pole position intocável. O s Estados Unidos não querem permitir que este tipo de situação aconteça”, assinala. Por outro lado, há também a questão política que representa “uma potencial ameaça”.