Trump, o mundo ao contrário

Doze meses depois da eleição presidencial de 8 de novembro de 2016, com Donald Trump ao leme da Casa Branca, os Estados Unidos mudaram. E viver no planeta Terra parece ser agora muito mais perigoso.

A culpa é de Obama - a ideia tem sido repetidamente lançada por Donald Trump para justificar algumas das suas medidas, interna e externamente. O Presidente republicano que se instalou na Casa Branca em 2017 mantém um discurso que em nada se assemelha ao do antecessor.

E bem vistas as coisas Trump até tem alguma razão. A retórica de Obama habituou-nos a todos, sem exeção, a palavras conciliadoras, serenas em tempos de crise económica, à beira da depressão, pacificadoras nos objetivos e na procura da via diplomática, sem recorrer - como Trump – à constante ameaça de guerra ou de conflito “caseiro”. Obama beneficiou da simpatia dos norte-americanos, mas também dos líderes mundiais, salvo as conhecidas exceções.



Na América de Trump, a lista de “inimigos” e políticas a abater é extensa, numa espécie de desassossego em larga escala: México; jornalistas; China; Venezuela; Acordo climático; acordo nuclear com o Irão; Estado Islâmico; a Síria de Assad; Coreia do Norte; transsexuais; o programa Obamacare.

O melhor mesmo é recordar os momentos que marcam a história destes primeiros 12 meses desde o dia em que a América escolheu Donald Trump para 45.º Presidente.
De Niro, “are you talking to me?”
Há quem considere a Sétima Arte um vislumbre do futuro. Hollywood parece confirmá-lo.

Ainda Trump não tinha chegado à Casa Branca e já o conhecido ator Robert de Niro se indignava com o que via sobre o candidato à Presidência dos Estados Unidos: "estúpido" e "aldrabão" foram palavras usadas num vídeo amplamente divulgado pela comunicação social norte-americana. "Ele é tão descaradamente estúpido", diz o ator na gravação, qualificando ainda Trump como "aldrabão", um "artista da mentira" que "não sabe do que fala" e não se prepara, que "goza com a sociedade" e não paga impostos.



O ator, no seu melhor, apelidou ainda o candidato Republicano de "idiota" e mostrou mesmo vontade de lhe dar “um murro na cara”. Uma indignação à altura de Travis Bickle, o jovem taxista do famoso Taxi Driver, filme de Martin Scorsese de 1976. Desse filme sobressai, assim, a personagem interpretada por De Niro: uma mente perturbada, frustada e revoltada contra tudo e contra todos, um sentimento que também faz lembrar alguns dos “desabafos” de Donald Trump.

Já com Trump eleito, a América e Hollywood entraram numa nova dimensão contra as políticas anti-imigração anunciadas pelo novo Presidente. Trump defendia a deportação de ilegais e de muitos com falta de documentação atualizada. Trump defendia “o seu muro” e iniciava a implementação da “América Primeiro”, a frase que conquistou grande parte de um eleitorado insatisfeito e que desejava a mudança. Na celebração dos Óscares, as estrelas de cinema gritaram o seu protesto e rejeitaram esse caminho.

Twitter: tweet, tweet, tweet
Na era das redes sociais, Trump demonstrou uma nova forma de um Presidente dos EUA falar ao mundo: tweet atrás de tweet. Isto é, são momentos em direto para desabafos, críticas e fazer política. A ideia até seria boa. Mas quando falamos de um dos homens mais poderosos do planeta, há tweets sem possibilidade de recuo.

De tal forma que um estudo da Universidade de Quinnipiac, nos Estados Unidos, realizado em janeiro deste ano, mostrava que dois em cada três norte-americanos defendiam que Donald Trump encerrasse a sua polémica conta de Twitter. Um deles terá sido mesmo o cofundador do Twitter, que veio lamentar o papel da rede social na eleição do Presidente. Evan Williams veio a público pedir desculpa pelo papel que a sua rede acabou por desempenhar.

E se o populismo de Trump é sempre imprevisível o que dizer do terrorismo que ensombra o mundo ocidental, com diversos atentados, nomeadamente em solo europeu. Trump, sempre inquieto com as notícias da Europa, é o homem que viu, em fevereiro, atentados onde estes não existiam. Surpreendeu o mundo com um atentado na Suécia, o que levou mesmo um ex-primeiro-ministro daquele país nórdico a perguntar nas redes sociais o que é que Trump "andava a fumar".

Como a vida não é feita só de coisas sérias - tal como Trump quer fazer crer -, a memória leva-nos a um registo de há 16 anos, num episódio dos Simpsons a retratar uma América recém-saída de uma presidência trumpiana. Na altura pareceu uma ficção, mas confirmada a eleição passou a ser tratada como futurologia. Se os Simpsons acertarem sempre, a perspetiva não é nada animadora.



Já neste mês de novembro a famosa conta de Donald Trump no Twitter voltou a dar que falar. Esteve desativada durante 11 minutos, num episódio que deu origem a teorias da conspiração. A empresa explicou que tudo se deveu à ação de um empregado no último dia de trabalho. Nesses 11 minutos, os utilizadores ficaram a saber que a conta @realdonaldtrump já não existia. Mas tudo não passou de um “susto”.


100 dias de Presidência com os Simpsons

Perante os factos surgiu este ano uma animação, divulgada via Internet, que mostra Trump na sua cama da Casa Branca a vangloriar-se de alguns dos feitos durante os primeiros 100 dias de Presidência: o bom desempenho no golfe ou o aumento dos seguidores no Twitter.

O vídeo também imagina Ivanka, a filha do Presidente, a assumir o lugar da juíza Ruth Bader Ginsburg no Supremo Tribunal dos Estados Unidos. No início do vídeo, vê-se o porta-voz da Casa Branca, Sean Spicer, morto com uma corda à volta do pescoço e um pequeno cartaz onde está escrito "Eu desisto". A conselheira presidencial Kellyanne Conway sai a correr do local e afirma: "Eu não vou substituí-lo".



"Os Simpsons" também mostram o genro de Trump, Jared Kushner, e o conselheiro Steve Bannon a estrangularem-se mutuamente. A curta animação termina com o casal Marge e Homer Simpson a verem as notícias na televisão e com Marge a queixar-se que já ficou sem antidepressivos e que era suposto os comprimidos durarem os quatro anos do mandato de Trump.

Na memória dos seguidores desta série de animação, há mais de 25 anos no ar, está um episódio de 2000, intitulado "Bart To The Future", no qual os autores da série brincavam com o facto de Lisa Simpson conquistar a Sala Oval ao então Presidente George W. Bush.

Um dos argumentistas da série, Dan Greaney, chegou a afirmar à imprensa norte-americana que o texto escrito há 17 anos era "um aviso para a América".
Cem dias... sem mentiras
E aos 100 dias, a Presidência de Trump rendeu-se aos "factos alternativos", uma expressão criada pela conselheira do Presidente para justificar números errados dados pela Casa Branca. Foram várias as declarações de Donald Trump e da sua equipa que, afinal, eram mentira.

Perante a “animação” interna, Trump começou igualmente a revelar dotes internacionais: a popularidade aumenta consoante o nível do ataque. Isso mesmo aconteceu com o ataque à base militar de Al Shayrat, na Síria, numa opção de confronto com o regime de Bashar Al-Assad. Na mesma lista de eleitos surgem Afeganistão, Irão, Venezuela, México, China, Coreia do Norte, etc. Isto é, uma lista infindável de "inimigos" para os quais a solução é o da ameaça e do confronto verbal, com contornos pouco diplomáticos.

O fim da NATO, o fim da União Europeia e um novo acordo de comércio com Londres eram ideias que Donald Trump foi apregoando na corrida à Casa Branca. O Brexit era o exemplo que dava para acenar com a desintegração da União Europeia, cuja origem – disse - poderia estar na crise dos refugiados.

E os avisos sucederam-se. Robert Wallace, historiador da Universidade de Northwestern, referiu em março que os Estados Unidos da América de Donald Trump "não hesitariam" em participar numa III Guerra Mundial e considerou "muito provável" que se envolvam em conflitos internos de países estrangeiros.

Trump parece ter escutado e, numa demonstração de força, a 13 de abril, surgiu a “mãe de todas as bombas”.


Coreia do Norte, “a fogo e fúria”

A meio do ano, os testes de mísseis norte-coreanos, que foram surgindo também para “acalmar” Trump, vieram inquietar os norte-americanos e não só. Mas foi com Donald Trump que a conversa se manteve a um patamar pouco aceitável, com ameças de fogo e de destruição recíprocas. O mundo assistiu e assustou-se. Trump nem por isso. Entre sanções, mais ou menos eficazes, o Presidente demonstrou boa forma para lidar com o tema nuclear.

Não houve fúria, nem fogo, por enquanto, mas a escalada nas palavras veio demonstrar que estamos perante dois líderes que gostam de brincar com o fogo. Qualquer mal entendido - um incidente mal equacionado - poderia deixar o mundo em situação delicada, até porque a Coreia do Norte não desisitiu de contra-atacar com uma retórica belicista cada vez mais afiada: o ministro dos Negócios Estrangeiros Ri Yong analisou o discurso de Donald Trump às Nações Unidas e classificou-o como "o som de um cão que ladra”. Mas não morde, subentende-se.

A tensão do momento foi, entretanto, desviada por “ventos fortes”. Surgiram sucessivos furacões a devastar os Estados Unidos e os países vizinhos, mas com origem no Atlântico, com desenvolvimento ao largo de Cabo Verde.

Entrámos então em cenários diferentes, com inúmeras vítimas de tempestades diluvianas que deixaram o casal Trump em intensa atividade. O Presidente desembolsou da sua conta pessoal um milhão de dólares na ajuda às vítimas. Houve inevitáveis deslocações às zonas afetadas, com a primeira-dama norte-americana, a eslovena Melania Trump, a corresponder à mais alta moda internacional em época de furacões, algo que lhe valeu críticas.

Na visita a Porto Rico, em outubro, num dos locais mais furiosamente destruídos pelo furacão Maria, Trump fez das suas: lançou rolos de papel higiénico, assistindo-se assim a uma descontração digna de um apreciador de basquetebol.


Sem lugar para jornalistas

É um sentimento típico de quem detém o poder. As perguntas incómodas, as notícias “falsas”, as opiniões contrárias e pouco recomendáveis, tidas como "tendenciosas", os fait-divers que alimentam a curiosidade alheia e que marcam personalidades e feitios, tudo serve para argumentar e justificar uma certa irratibilidade sobre o que não é noticiado a favor dos protagonistas.

Donald Trump não foge à regra e tem sido mesmo o exemplo disso nos Estados Unidos de 2017. A começar pela tradição, Trump deu início às hostilidades pouco depois de tomar posse.

O pacote de acusações à imprensa, por ser “desonesta”, não acabou. Trump não mede palavras para atacar aqueles que avalia como “os seres humanos mais desonestos da terra”.

E no Facebook?
Com Trump a comunicação social teria os dias contados, por ser "desonesta", mas as redes socias não. Na mente do Presidente elas podem ser úteis sim, mas apenas o Twitter, pois o Facebook serve os tais interesses anti-Trump. E, para dar o exemplo, fez um tweet para criticar o Facebook, a maior rede social do mundo. Para Trump, a organização de Mark Zuckerberg estaria em "conluio" com os meios de comunicação ditos liberais.

A tais insinuações respondeu o "pai" do Facebook. Zuckerberg afirmou que o Facebook está concebido para dar voz a todas as vozes.


No entanto - como é habitual dizer-se - há algo que “não bate certo”. Se o Facebook é tido como anti-Trump, como justificar a polémica com as suspeitas de que o próprio Trump terá beneficiado na rede social da ajuda da Rússia para ser eleito, com a alegada propaganda na campanha do multimilionário norte-americano. Trump nega, mas as notícias sobre a suposta ajuda do Presidente Putin multiplicam-se, entre as quais a de que o genro do então candidato a Presidente teve um encontro com uma advogada russa em 2016, durante a campanha presidencial.

Nesse encontro estiveram o filho mais velho do atual Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump Jr., o genro, Jared Kushner, e o então diretor de campanha Paul Manafort, além de Natalia Veselnitskaya. A advogada russa teria informações que poderiam comprometer a rival política e candidata presidencial democrata Hillary Clinton. Veselnitskaya negou ter qualquer vínculo com o Governo russo. Mas ainda pairam as suspeitas sobre uma eventual ingerência russa na eleição presidencial norte-americana de novembro de 2016, envolvendo um alegado conluio entre Moscovo e elementos da campanha presidencial de Trump.

Sabe-se agora que os anúncios políticos pagos no Facebook por contas falsas, alegadamente operadas a partir da Rússia, centraram-se especificamente no Michigan e Wisconsin, dois Estados cruciais para a vitória eleitoral do agora Presidente dos EUA, Donald Trump.



Daí que o tema esteja sempre atual. Recentemente, o ex-diretor de campanha de Donald Trump, Paul Manafort, foi acusado de conspiração contra os Estados Unidos. É ainda suspeito de lavagem de dinheiro no âmbito da investigação que está a ser feita sobre a interferência russa nas presidenciais de 8 de novembro de 2016. Donald Trump nega tudo e refuta a tese que aponta para conluio com agentes russos.

Entretanto, um dos mais próximos colaboradores do Presidente admitiu que mentiu ao FBI e está agora a colaborar com as autoridades. Uma atitude que deixa antever mais revelações sobre este caso.

Ao mesmo tempo foram surgindo novos dados da propaganda que alegadamente teve origem na Rússia: cerca de 80 mil posts produzidos antes e depois da eleição que transportou Donald Trump para a Casa Branca. Um público-alvo de pelo menos 126 milhões de norte-americanos. São números que levam a crer, cada vez mais, numa aparente operação em larga escala disseminada nas redes sociais a partir da Rússia. Os dados foram libertados pelo Facebook.
Quem está mal muda-se
E o que dizer sobre as “baixas” daqueles que alinharam inicialmente com Trump e que, rapidamente, ou foram demitidos ou abandonaram pelos próprios pés as políticas da atual Administração? Nesta matéria, nem o FBI escapou. Há registo de 16 saídas de cena em pouco mais de seis meses.


Na América de Trump há ainda os dois lados da história. Em Charlottesville, por exemplo, Trump viu o que a maioria não conseguiu ver. O Presidente norte-americano condenou os violentos confrontos raciais no Estado da Virgínia. Disse, porém, que um dos lados não tinha autorização para se manifestar.

Na América de Trump também não há lugar para militares transsexuais. Esta comunidade protestou porque deseja igualmente defender o país. Também nesta matéria Trump e o regime de Putin parecem alinhados, pois, no último caso, a Rússia invocou a saúde pública para justificar o novo Código da Estrada (2015), que veio proibir a condução por transsexuais e travestis.

Decorrido o ano de 2017 podemos agora verificar mudanças significativas nas políticas dos Estados Unidos. O ambiente de contestação é diversificado. Na América de Trump, as mulheres marcham em protesto, os atentados “varrem” pessoas, cometidos alegadamente por “loucos” e com fácil acesso a armamento. Na América de Trump, os jogos da NFL já não são os mesmos.

"Trump fez-me chorar ainda mais"

Esta é a história de um soldado norte-americano morto numa emboscada no Níger a 4 de outubro deste ano. Morreram quatro soldados e, segundo a viúva de um deles, o Presidente reagiu afirmando que o marido, La David T. Johnson, “sabia ao que ia”. Trump já negou tal frase, mas a mesma viúva, Myeshia Johnson, veio dizer que uma conversa com o Presidente a fez “chorar ainda mais”. Porquê? Bem, é difícil traduzir mais este episódio “infeliz”. Segundo relata a viúva, porque simplesmente o Presidente, na tal conversa ao telefone, demonstrou não saber o nome do marido, desse mesmo soldado morto em missão pelo país.

Numa das raras aparições públicas, a viúva Myeshia Johnson referiu que gostaria de ter perguntado ao Presidente dos EUA como é que ele era capaz de se esquecer do nome de uma pessoa que perdeu a vida a lutar pelo país, mas nada disse e limitou-se a ouvir, confessou.

Na reação, Trump apontou o dedo a uma senadora democrata da Florida, que se encontrava com a viúva no momento em que esta recebeu a chamada do Presidente. No Twitter deu a sua versão da história: “Tive uma conversa muito respeitosa com a viúva do sargento La David Johnson e referi o nome dele desde o início, sem hesitar”.

Uma vez mais, coisas simples tornam-se complicadas, com o Presidente a ter de se explicar publicamente.

Perante uma tamanha alteração de princípios na América de Trump, apenas Melania Trump e Vladimir Putin são poupados a discursos menos simpáticos.

Em relevo nesta quase "tragicomédia" que invadiu o quotidiano de Amércia e do mundo estão sempre os números das sondagens de opinião. Em seis meses de Presidência, segundo a CNN, as contas não mentiam: numa delas apenas 38 por cento dos inquiridos aprovavam o trabalho de Trump, enquanto 56 por cento desaprovavam. Em fevereiro, com um mês de funções na Casa Branca, os números estavam nos 44 por cento de aprovação e 53 por cento de desaprovação. Perante este cenário, Trump considerou-se "o político mais injustiçado da História”.

Mas nem tudo tem sido menos bom. Na América de Trump o humor ganhou terreno. Uma boa gargalhada faz bem à saúde, dizem os especialistas, e, nesse capítulo, Donald Trump tem o mérito de dar inspiração aos humoristas para que ponham o mundo inteiro mais bem disposto, Kim Jong-un incluído.


No entanto, convém não exagerar nessa dose de boa disposição, num mundo em que tudo parece ter graça, mas que se apresenta "loucamente perigoso". Trump é alvo fácil e muitos querem vê-lo a enfrentar um processo de destituição. Um destes adversários é Larry Flynt, editor de conteúdos pornográficos que já ofereceu até dez milhões de dólares (8,5 milhões de euros) a quem fornecer informação que conduza ao impeachment. Ou seja, se o caminho for esse, mais dia menos dia Trump ver-se-á de novo em trabalhos.

Uma das promessas do 45.º Presidente é dar aos norte-americanos a riqueza de outros tempos. Neste caso, a economia será determinante para o futuro político de Donald J. Trump. Mas o tempo escasseia. E por agora ainda se dá primazia aos protótipos do muro na fronteira com o México, cujos requisitos passam por ter nove metros de altura, um bom aspeto do lado norte, e pela necessidade de ser difícil de trepar ou cortar.

Fotos: Reuters