Últimos resistentes na `cidade paralela` brasileira que não tem mais Messias

Milhares de brasileiros permanecem há 30 dias em frente ao quartel-general em Brasília, num último suspiro aos militares para revertam o resultado das urnas, numa luta onde Jair Messias Bolsonaro não é mais o protagonista, mas sim a `liberdade`.

Lusa /

"Só saio daqui quando o ladrão for para a prisão, não vou deixar meu país virar comunismo, sou patriota, não quero meus filhos comendo cachorro", conta à Lusa Luana, de 33 anos, de Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso, o centro do agronegócio do país, a cerca de 1.000 quilómetros da capital brasileira.

Luana chegou ao acampamento há 24 dias juntamente com o seu marido e com os dois filhos, de três e um ano de idade, e trouxe consigo o negócio de família, uma frutaria.

"Não vai subir a rampa", afirma o seu marido, referindo-se a Lula da Silva, interrompendo a entrevista com a sua mulher, com uma postura hostil, que não quis ser identificado e que se recusou a falar mais com a Lusa, por se tratar de uma agência portuguesa que o homem considera "socialista" e "amiga de corrupto".

O acampamento com tendas a perder de vista mais se assemelha a uma pequena cidade, que vive e persiste em paralelo ao resto do país, foi montado há precisamente um mês, na noite da vitória de Lula da Silva nas presidenciais e desde então tem evoluído, transformando-se praticamente numa cidade.

Aqui a missão é impedir a tomada de posse de Lula da Silva a 01 de janeiro, lutar contra os perigos do comunismo, do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, da `ditadura do judiciário`, da ideologia de género e pela manutenção da liberdade de expressão. Para que tal aconteça, consideram os `resistentes`, é necessário uma intervenção militar que reverta um processo eleitoral que dizem ter sido fraudulento.

No meio do acampamento existe `a rua da restauração` onde se encontra um pouco de tudo, desde açaí, pasteis, queijo da canastra, churrasco, entre outras iguarias da culinária brasileira.

Mas não só: dezenas de casas de banho encontram-se espalhadas pelo acampamento que ainda tem `lojas` para os mais variados gostos de forma a que nada falte aos autodenominados patriotas. Cabeleireiros, lojas de roupa onde se vendem camisolas da seleção canarinha, mas também roupa camuflada, lojas de brinquedos, `igrejas` católicas e evangélicas e até uma cantina para os mais carenciados.

Patrulheiros, muitos deles vestidos com roupa camuflada, vão andando pelas `ruas da cidade` para controlarem e garantirem que tudo está em ordem. Quando desconfiam de alguém fazem um interrogatório filmado e certificam-se que a pessoa em questão é um `patriota` de verdade.

Tem havido "infiltrados comunistas" e a "grande media chega cá e mente", justifica à Lusa um dos patrulheiros, acrescentando que a movimentação no acampamento foi maior nesta quarta-feira por se tratar do Dia do Evangélico, uma vertente religiosa muito popular entre os apoiantes de Jair Bolsonaro.

O clima geral, observado pela Lusa, tem-se se vindo a alterar nos últimos 30 dias. Se no 02 de novembro, Dia de Finados, também conhecido como Dia dos Mortos, ou mesmo a 15 de novembro (Proclamação da República), o ambiente era mais heterogéneo, com musica, crianças e graúdos, de todos os quadrantes sociais, agora é mais masculino e com presença forte dos `homens do agronegócio`, especialmente do interior de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás.

Atravessando o acampamento, entre tendas, lojas, bandeiras brasileira e tarjas a apelar à intervenção militar, encontra-se um ecrã gigante que cativa dezenas de pessoas.

Estava a passar em direto um debate no Congresso requerido pelo senador bolsonarista Eduardo Girão na Comissão de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor, para discutir a fiscalização das inserções de propagandas politicas eleitorais, uma das muitas acusações da campanha de Bolsonaro, consideradas infundadas pela justiça eleitoral.

O pretexto era esse, mas serviu para deputados, senadores, juristas e personalidades bolsonaristas de vários quadrantes do conservadorismo brasileiro recuperarem a retórica das eleições fraudulentas, da ditadura do judiciário de Alexandre de Moraes e da luta pela liberdade.

A deputada Carla Zambelli (que perseguiu um homem com uma arma nas mãos no dia antes das eleições), que na terça-feira partilhou um vídeo incitando as Forças Armadas a rejeitarem o resultado da eleição, era uma das presentes na audiência.

"Abraço e apoio aos manifestantes patriotas em especial aqueles que estão em frente ao comando aqui em Brasília", afirmou o deputado federal do Partido Social Democrático Sargento Fahur, recebendo uma chuva de aplausos no acampamento  

"Vocês me representam, força e honra, a minha continência [fazendo o gesto]. Não desistam", gritou, para novo regalo dos `patriotas`, que começaram a cantar: "se for preciso a gente acampa, mas o ladrão não sobe a rampa".

Ao lado do ecrã gigante está montada uma tenda que mais parece um estúdio de televisão, com vários computadores, câmaras de filmar e uma mesa com microfones.

É a tenda de Oswaldo Eustáquio, um dos `bloggers` favoritos do bolsonarismo, condenado à prisão em 2020 por alegadamente participar na organização de manifestações consideradas antidemocráticas.

"Está na manifestação do Senado", a poucos quilómetros deste acampamento, onde se apelou ao fim da censura, ao impeachment de Alexandre de Moraes e amnistia das multas aos camionistas que bloquearam as estradas do país, conta à Lusa um membro do seu podcast feito diariamente no acampamento de Brasília para lançar as novidades e opiniões aos milhares de `patriotas` que acampam em frente a vários quartéis do país.

 

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