Um padre testa a sua fé nas terras inóspitas da antiga Gago Coutinho
Sem água, nem luz, dormindo com ratos, dando missa numa Sé com tecto de palha, o padre Orlando Agostinho enfrenta as primeiras dificuldades do seu apostolado em Lumbala N`Guimbo, a antiga Gago Coutinho, em Angola.
Aos 33 anos, formado no Seminário Maior de Luanda, o padre Agostinho conta sem excessivos dramatismos a sua primeira experiência a liderar uma paróquia, com factos e mais factos, documentados na sua gigante agenda transformada em bloco de apontamentos.
Em Lumbala N`Guimbo, de onde é mais fácil alcançar a Zâmbia que a capital da província do Moxico, Luena (antiga Luso), e onde os jovens falam mais inglês que português, além do seu idioma local, o umbundu, vivem 20 mil pessoas que a guerra foi isolando aos poucos e poucos.
Terra da UNITA desde o princípio da década de 80 - Jonas Savimbi, o seu líder, morreu por ali em 2002, perto de Lukusse, mais a norte, na estrada para Luena -, Lumbala N`Guimbo esteve sem administração do Estado até 2002 e sem um único padre desde que os portugueses deixaram aquelas paragens em 1974.
Uma trintena de anos em que a fé católica foi sobrevivendo:
"Mantiveram-na por si próprios, por iniciativa própria. Sem conhecimentos técnicos, científicos ou teológicos. Com evangelistas e catequistas, alguns deles sem baptismo", diz Orlando Agostinho.
Da antiga igreja mandada construir pelos monges beneditinos portugueses, que se instalaram na região nos anos 30, restam hoje as paredes esburacadas pelos obuses e o céu de estrelas como tecto.
Mesmo com esse grau de destruição surge mais imponente nas fotografias que a actual Sé, sem paredes e com tecto de palha, de onde o acólito tem de fugir a correr com a Bíblia debaixo do braço sempre que chove.
Na província do Moxico, a época das chuvas faz jus ao nome, caindo torrencialmente durante muitas noites.
Foi a chuva que pôs em causa o primeiro grande projecto do padre Agostinho em Lumbala N`Guimbo, a construção de uma nova igreja, feita de adobo e telhado de chapas de zinco - tudo fruto de generosas ofertas. As frágeis paredes de barro e palha não resistiram à força da água.
Apesar de todas as dificuldades, o padre Orlando Agostinho considera-se "satisfeito" com a sua primeira experiência, "embora limitado" nas suas capacidades, como o próprio confessa.
Em Luamba N`Guimbo não há nada, além da pobreza abundante.
"Acolho estas contrariedades com satisfação. Jesus Cristo já dizia: Onde fordes, não leveis nada. Procurai a fé, o resto virá por acréscimo`", garante o prelado que pede apenas para a sua igreja, para a sua paróquia e paroquianos.
"Estamos a começar do zero. É uma refundação. Aquilo que os missionários deixaram, a guerra destruiu. Aproveito para lançar um SOS às autoridades religiosas de Portugal para me ajudarem, pelo menos a ter as alfaias litúrgicas, as batinas, os cálices, porque tudo o que temos foi-nos dado, mas já está velho: o cálice já não se consegue limpar", afirma o pároco da antiga Gago Coutinho.
Em Dezembro, esteve em Portugal. Passou o Natal em Ermesinde com uma família portuguesa, os Pinheiro, que um dia tiveram uma fábrica de mosaicos, azulejos e tijolos na então Luso.
Foi em busca de solidariedade e os Pinheiro acederam, o problema é fazer chegar essa ajuda a uma zona tão remota sem estradas, onde apenas chega um avião (militar) uma vez por mês.
Para ir de Luena a Lumbala N`Guimbo por terra, a viagem dura três ou quatro dias, se tudo correr bem. Em camião, tarda pelo menos uma semana.
O caminho não é directo, porque quase todas as pontes permanecem destruídas - herança da guerra -, e, assim, se acrescentam mais uma centena de quilómetros aos 360 a 400 quilómetros a percorrer.
É viagem para fazer de noite, quando o calor é mais suportável, mesmo que essa seja também a altura do dia em que a savana se torna mais perigosa.
Aos olhos escapam os buracos onde um semi-eixo pode ficar, as areias que podem atolar o veículo ou os troncos que, afiados, são pregos à espera de pneus.
Também à noite, saem os animais selvagens para caçar. O padre Orlando Agostinho sabe-o, um dia viu-se rodeado por uma matilha de mabecos - o mabeco ou cão caçador africano é um predador muito perigoso de quem até os leões preferem distância.
O fim da guerra trouxe os animais selvagens de volta à região, adicionando um perigo mais à já por si difícil jornada de Lumbala N`Guimbo até Luena.
O pároco recorre à sua agenda/bloco de apontamentos e começa a enumerar todos os rios que é preciso atravessar durante a viagem:
Luanginga, Luvu, Lufuta, Lutembwe, Kauyana, Luyo, Lumay, Lulue, Lwanze, Lwuvei, Luzi, Lukonha, Luguebungo, Lukusse, Lukokva, Luando, Lucivu, Kanaji, Mulanguelo, N`dala, Maximoji e Luena.
"O meu jipe já não tem condições por causa das peripécias do caminho", conta o padre que, garante, irá ficar em Luanda o tempo que for preciso até conseguir alguma alma generosa que lhe dê alguns pneus e câmaras-de-ar - "e uma máquina de ferramentas".
"Sem isso não saio daqui. É muito perigoso", confessa.
A estrada é dura e poucos se aventuram a percorrê-la. Não estranha que os poucos produtos que chegam até Lumbala N`Guimbo sejam vendidos três e quatro vezes mais caros que na cara e longínqua Luanda.
Orlando Agostinho diz que há nostálgicos que se lembram dos portugueses: "As pessoas falam com saudade do tempo dos comerciantes portugueses, do Sr. Pinto Martins, do Sr. Almeida, do Sr. Monteiro, do tempo em que haviam padarias, talhos e frutarias".
O padre, porém, sabe da dificuldade em convencer quem quer que seja a vir para uma terra onde não há estradas, nem luz, nem água - só de poços cuja qualidade nunca ninguém avaliou -, nem gás, nem telefone, nem cobertura de telemóvel.
Orlando Agostinho não desiste, mesmo sabendo que a casa onde vive "é pequenina", onde "o quarto é também a dispensa, por isso, o padre dorme com os ratos", como afirma com humor.
"Não posso desistir. Ali o padre é pai de todos. Tenho uma enorme lista de órfãos. Quem me dera ter um camiãozinho para transportar os materiais para construir uma igreja nova, só que o aluguer de um camião custa dois a três mil dólares", lamenta-se.