Uma cidade palestiniana com vista para Jerusalém e um muro
Jerusalém, Israel, 24 set 2025 (Lusa) -- O campo de refugiados de Shuafat, nos arredores de Jerusalém, vive em ansiedade permanente dentro de um muro de betão que o separa da cidade ocupada e se tornou num labirinto sem saída para grande parte dos seus habitantes.
Criado em 1966 pelas autoridades jordanas para acolher 500 famílias palestinianas, Shuafat evoluiu para um autêntica cidade de cimento no norte de Jerusalém, que tanto cresce como diminui, à medida que as demolições se vão sucedendo no perímetro atrás da barreira de seis metros de altura que a asfixia.
Para entrar e sair, os residentes precisam ultrapassar postos de controlo de segurança israelitas, que abrem e fecham de modo imprevisível e apenas permitidos a quem possua o "cartão azul" de acesso dos palestinianos ao centro de Jerusalém e muitos não os possuem.
Esta é uma razão que torna difícil fixar um número de habitantes no campo de refugiados, mas as estimativas apontam para 80 mil, embora possam ser 100 mil ou mais, incluindo os residentes palestinianos sem documentos israelitas e que estão proibidos de entrar em Jerusalém desde os ataques dos islamitas do Hamas em 07 de outubro de 2023 no sul de Israel, que desencadearam a atual guerra na Faixa de Gaza.
Entrar em Shuafat, o único campo de refugiados sob jurisdição de Jerusalém e um dos dois maiores da cidade, é uma passagem repentina sem aviso de um grande posto de vigilância, alvo de ataques repetidos de residentes e lançamentos de `cocktails molotov`, numa selva de ruas estreitas, engarrafadas e claustrofóbicas, entre o comércio sonoro e prédios de habitação altos em pedra clara ou apenas tijolo cru. E outros ainda deitados abaixo pelas autoridades, que são acusadas pelas comunidades de exercerem uma política deliberada de expulsão.
É no quarto piso de um dos edifícios desta floresta cerrada de cimento que o xeque Abdallah Alqam recupera de uma crise cardíaca, que justifica com a tensão acumulada nos últimos dias de novas ameaças de demolições e intensificação das operações das forças de segurança israelitas, a somar às "matanças de inocentes" na Faixa de Gaza.
"A minha vida e de cada um de nós é demasiado pequena quando comparada com o nosso país. Então, a regra é sobreviver e ficar, porque outra coisa seria desistir", afirma, ainda acamado, o líder comunitário de Shuafat, com uma longa militância na causa palestiniana: "Não nos rendemos nem ninguém sai daqui, é resistir e ficar", insiste.
Abdallah Alqam recorda que já era um jovem líder palestiniano quando se iniciou a primeira Intifada no final de 1987 e que o seu ativismo levou-o para a cadeia durante mais de seis anos, pelo que diz "saber muito bem o valor da liberdade e que tenta transmitir" a toda a gente.
"Adoramos a vida e só queremos que seja normal, depois de uma das piores ocupações que o mundo já conheceu", declara da sala do seu apartamento, numa das extremidades do campo de Shuafat, com uma grande panorâmica para as vastas áreas que o circundam os seus morros arborizados, rasgados por estradas modernas e colonatos israelitas ou outras localidades de maioria palestiniana que ficarem do outro lado do muro.
Entalado entre Jerusalém e a Cisjordânia ocupada - e que o deixa de algum modo em "terra de ninguém" e num limbo político e burocrático -, o campo de Shuafat remete para um ciclo acumulado nas últimas duas décadas de violência, acentuada pelo simbolismo permanente do muro que o separa do resto da cidade, os `grafittis` alusivos à resistência, ou imagens de prisioneiros e "mártires" espalhadas em toda a parte.
O facto de já nem todos os seus habitantes serem refugiados, mas também palestinianos de outros pontos da Cisjordânia em busca de uma vida melhor em Jerusalém, levou a uma explosão demográfica, que é vista pelas autoridades israelitas como "uma bomba relógio" tão iminente como os atentados que invocam para justificar a vedação de betão.
Precisamente um ano antes dos ataques de 07 de outubro de 2023 do Hamas, um jovem habitante abriu fogo contra o `checkpoint`, matando um militar israelita e ferindo um outro com gravidade, antes de ser abatido no colonato de Maale Adumim alguns dias mais tarde.
Após os ataques do Hamas, as comunidades locais alegam que as forças israelitas têm intensificado os seus raides na localidade, que por sua vez argumentam com rusgas em busca de suspeitos e armas, no seguimento de vários outros episódios associados ao campo de refugiados, como o presumível autor do apunhalamento de duas pessoas, no passado dia 12, num `kibutz` próximo de Jerusalém.
"Todos os dias morrem mais de 60 palestinianos", contrapõe o xeque Alqam, incluindo neste número as vítimas na Faixa de Gaza mas também na Cisjordânia e Jerusalém ocupada, em confrontos junto de controlos de segurança e do muro de separação, mas também nas cidades e aldeias do território, entre forças de segurança, colonos israelitas radicais e as comunidades locais.
Estes casos, frisa o líder comunitário de Shuafat, "aumentaram significante" desde o início da guerra na Faixa de Gaza e da retaliação das forças de Telavive contra o Hamas, mas, por outro lado, avisa que "os palestinianos já vivem o seu `07 de outubro` há muitos anos", o que o leva a apresentar-se como "um amante da paz, porque já basta de sangue".
Outras operações israelitas estiveram relacionadas com o encerramento das atividades da agência da ONU para os refugiados palestinianos (UNWRA), desde que as autoridades de Telavive expulsaram a organização do país no ano passado e também da gestão que mantinha em Shuafat.
No seguimento da decisão, várias escolas foram fechadas pela força policial e "centenas de estudantes e professores ficaram sem aulas", segundo Yosre Imzawe, 59 anos, um habitante do campo, salientando que muitos deles não possuem o "cartão azul" para estudar em Jerusalém, em proporção com cerca de um terço da população de Shuafat na mesma situação.
Duas ruas abaixo da residência de xeque Alqam, um monte de escombros acumula-se na área onde há apenas dois meses se erguia uma torre de uso dividido entre estacionamento e habitação, num exemplo de mais uma demolição recente, habitualmente justificada por falta de licença e antes de decisão judicial, mas também de "humilhação e vidas cercadas dos verdadeiros donos das terras".
Os habitantes de Shuafat precisariam de um espaço "dez vezes maior" para viverem com conforto, observa Saleh Joda, 39 anos, que mantém um supermercado em frente do depósito acumulado daquela demolição e que ignora se a próxima será a sua.
O comerciante observa que há "terra suficiente para todos daqui até Jericó", que dista uns 40 quilómetros, mas a população tem de se resignar à circunstância de "uma multidão enlatada", num quadro de pobreza que se evidencia nas ruas maltratadas, sem espaço para passeios, muito diferente do que acontece por exemplo em Ramallah, sede da Autoridade Palestiniana, mesmo ali ao lado.
A partir das linhas das últimas edificações naquela área de Shuafat e do campo aberto que as separam do muro - apenas pontuado por algumas oliveiras cobertas de pó e lixo a escorrer pelas encostas -, Saleh Joda receia ser impotente face a um poder que não consegue contrariar e precisa de atenção: "Só o mundo nos pode socorrer", apela o comerciante, que o acaso levou a vestir uma camisa com a frase "Segunda oportunidade".