Vêm aí mais "intervenções humanitárias"

Depois de nove de dias de silêncio, o Nobel da Paz justificou a guerra na Líbia. Obama afirmou que essa guerra obedece a um imperativo humanitário. Disse também que é isto que os EUA devem fazer - não em todos os genocídios, mas naqueles em que a sua intervenção possa produzir efeitos positivos. Há quem veja no discurso a expressão de uma "doutrina Obama" para as guerras futuras.

RTP /
O presidente dos EUA, Barack Obama, ao discursar ontem na National Defense University em Washington Dennis Brack, Epa

O presidente norte-americano vinha sendo severamente criticado, à esquerda e à direita, pelo seu silêncio sobre a guerra na Líbia. A algumas dessas críticas, a sua Administração ia-se esquivando com a especiosa teoria de que na Líbia os EUA não estão verdadeiramente em guerra. Contra toda a evidência, mantinha a versão que dispensaria Obama de pedir autorização ao Congresso para entrar em guerra. A isso obriga a Constituição ... se realmente existir uma guerra.

Os adversários políticos de Obama têm, no entanto, insistido mais numa outra obrigação, que não se deixa esquivar: a de o presidente explicar ao país o que está a passar-se na Líbia. Se a teoria sustentada é a de os EUA não estarem em guerra, também essa deverá ser explicada. Foi isso que Obama ontem foi fazer na prestigiada National Defense University, em Washington, com um discurso de 27 minutos para quebrar nove dias de silêncio. Na plateia abundavam políticos e militares de alta patente.

Os espectros do Vietname e do Iraque

O estilo generalizante do discurso dá bons motivos aos que nele detectam a pretensão de formular uma doutrina. Obama não falou tanto sobre a Líbia, como sobre os critérios que a sua Administração entende seguir para tomar posição perante semelhantes e diferentes conflitos. No discurso quase se encontra um catálogo de respostas para um catálogo de situações possíveis.Frases do discurso

"Já fizemos isso [derrubar o regime] no Iraque. Graças aos esforços extraordinários das nossas tropas, temos esperanças sobre o futuro do Iraque. Mas isso custou-nos oito anos, as vidas de milhares de americanos e iraquianos e um bilião de dólares"


Há, naturalmente, uma exclusão de partes. Segundo Obama, os EUA não estão a intervir para derrubar Kadhafi e não devem intervir para derrubar ditadores ou regimes que por qualquer motivo não lhes agradem. Tal como o espectro do Vietname pairava sobre a invasão do Iraque, o espectro do Iraque paira agora sobre a intervenção na Líbia e constitui um exemplo do que não deve fazer-se.

Excluídas ficam também as "intervenções humanitárias" sem outro critério que o de haver civis a morrerem às mãos de forças repressivas. De algum modo o presidente norte-americano tinha de responder aos seus muitos críticos que estranham a intervenção contra a Líbia e a inócua retórica sobre a violência de regimes amigos: Bahrein, Iémen, Arábia Saudita.

A resposta mais ou menos implícita tem a sua chave na expressão: "ponderar os nossos interesses". E, com efeito, os Estados Unidos tinham interesses no Egito de Mubarak, como hoje os têm no Bahrein que abriga a sua IV Esquadra.
Frases do discurso

"É certo que os EUA não podem usar a sua força militar em qualquer lugar em que haja repressão (...) Mas isso não pode ser um argumento para não agir nunca em defesa do que é justo"


A oportunidade de intervir na Líbia

E aqui começa a parte afirmativa da doutrina: o presidente norte-americano sustenta que os Estados Unidos devem intervir atempadamente, antes que tenha corrido demasiado sangue, sempre e desde que essa intervenção possa fazer a diferença e impedir um genocídio. O pendor teórico do discurso deixou de fora uma explicação mais fina de porquê a intervenção na Líbia vai a tempo e produz efeitos e no Bahrein ou no Iémen estaria, supostamente, condenada à ineficácia.

Ainda assim, Obama afirma que "neste país concreto e neste momento particular" -  a Líbia hoje - as condições eram ideais para intervir. Afirmou, por outro lado, que essa intervenção tem limites, porque a veleidade de derrubar o regime de Kadhafi imediatamente quebraria a coligação de potências interventoras.

Multilateralismo e lideança dos EUA

Com o propósito evidente de tranquilizar a opinião pública norte-americana, Obama sublinhou também o multilateralismo das intervenções que defende. Não só esta, na Líbia, está coberta, até um ponto certo ou incerto, pela resolução da ONU, como além disso se pretende fazer aplicar a resolução sem um protagonismo absoluto dos Estados Unidos.
Frases do discurso

"A verdadeira liderança consiste em criar as condições e as coligações que permitam que outros também dêem um passo em frente"

Segundo Obama, não se trataria de renunciar à liderança dos EUA, e sim de encará-la com menos voluntarismo. Outros aliados deveriam ser associados às decisões e deveriam assumir responsabilidades de comando.

Esta preocupação, muito determinada pela viablidade e pelos custos políticos e económicos das intervenções armadas, é certamente de molde a aplacar críticas vindas da esquerda obamista mas produz, simetricamente, irritação entre a direito mais extrema.

Republicanos ao ataque contra Obama

A ex-candidata à vice-presidência dos EUA, Sarah Palin, perguntou sarcasticamente se as aberturas de Obama para outrras lideranças militares em coligações como esta significariam que os soldados norte-americanos deveriam obedecer, amanhã, em cenário eventual, a ordens provenientes da Liga Árabe.

E também o possível rival republicano de Obama nas próximas presidenciais, Newt Gingrich, optou pelo mesmo registo sarcástico em declarações à Fox-news: "Espero que o presidente envolva [nas suas decisões], antes de mais, a Cãmara de Representantes e não só a Liga Árabe e as Nações Unidas".

Outra crítica, mais séria, veio do antigo rival de Obama na corrida à presidência, John McCain: "Não admira que os americanos estejam confusos (...) Um dia dizem-nos que é uma intervenção humanitária, no outro que Kadhafi tem de deixar o poder".
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