Venezuela. O socialismo de Maduro e a repressão contra os socialistas desiludidos

por Inês Moreira Santos - RTP
Reuters

Este verão, um conhecido dirigente do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV, o partido do Governo) foi sequestrado e assassinado depois de ter denunciado a corrupção na distribuição local de combustível e o tráfico ilícito de substâncias estupefacientes e psicotrópicas no Estado onde vivia. Com o objetivo de consolidar o poder, o presidente venezuelano tenta reprimir os ativistas de esquerda que sempre o apoiaram e que, agora, se afastam dos seus ideais e denunciam a corrupção e o favoritismo existentes no Governo.

José Carmelo Bislick Acosta para além de político era apresentador de um popular programa de rádio, "O Combate do Povo", que sempre elogiou e apoiou o Partido Socialista do governo venezuelano, mesmo quando milhões de pessoas pasassaram a viver na miséria. Mas em agosto deste ano foi assassinado quando se desviou das linhas do partido e denunciou a corrupção do Governo para desviar combustível, após a cidade onde vivia ter paralisado devido à escassez de combustível.

No programa, Bislick acusou os líderes partidários locais de terem beneficiado do acesso ao combustível (escasso na altura), deixando a maioria das pessoas sem qualquer forma de abastecer os veículos durante dias. Para além de ter denunciado a corrupção na distribuição local de combustível, denunciou ainda o tráfico ilícito de substâncias estupefacientes e psicotrópicas no Estado venezuelano de Sucre (a 660 quilómetros a leste de Caracas), onde vivia.

Poucas semanas depois, na noite de 17 de agosto, quatro homens encapuzados e armados invadiram a casa de Bislick e terão dito que o locutor tinha "ultrapassado o sinal vermelho" ("se comió la luz" - a expressão em espanhol que significa que passou um semáforo vermelho, ou em bom português que "passou os limites"), antes de o terem espancado em frente à sua família e de o sequestrarem.

Segundo a irmã, Rosmery Bislick, os sequestradores "usavam macacões com capuz, (...) chapéus e tecidos como máscaras" e terão dito que o iam matar.

Horas depois Bislick, de 51 anos, foi encontrado sem vida, com vários ferimentos provocados por balas e
, segundo relata o New York Times, tendo vestida a camisola com a imagem do Che Guevara que sempre costumava usar.

"Na quarta-feira 18 de agosto, a vítima foi levada da sua casa, no seu carro, por quatro homens que entraram pelas traseiras da residência, situada no setor Guayacán do município Valdez (Estado de Sucre)", noticiou a imprensa local na altura.

"Suspeitamos que foi pela sua crítica constante contra o tráfico de gasolina e a sua posição crítica dentro da revolução. Nem nós, como família, nem a sua equipa de trabalho, nunca soubemos de alguma ameaça", explicou o irmão, Rosmery Bislick, aos jornalistas.

José Carmelo Bislick era natural de Güiria e conhecido por todos na cidade onde vivia. Era professor universitário de educação física e um conhecido dirigente do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), o partido do Governo de Nicolás Maduro. Foi presidente do Instituto Nacional de Capacitação e Educação Socialista (Inces), autarca e presidente do Conselho Municipal de Güiria, e era coordenador municipal de Técnica Eleitoral do PSUV.
Onda de repressão contra socialistas desiludidos

A morte de José Bislick parece ser uma das provas da existência de uma onda de repressão contra ativistas de esquerda que começam a afastar-se do presidente Nicolás Maduro, que está empenhado em consolidar o poder nas eleições parlamentares de dezembro.

"É tão perverso denunciar uma transgressão que tem de custar a vida de um homem que só queria o bem-estar social?", questionou Rosmery Bislick quando falava à imprensa.

O certo é que as eleições, boicotadas pela oposição e denunciadas por grupos de defesa dos direitos humanos, podem levar ao que costumava ser uma das democracias mais consolidadas da América Latina à beira de um Estado de partido único.

A crise política, económica e social na Venezuela agravou-se desde janeiro de 2019, quando Juan Guaidó jurou assumir as funções de Presidente interino do país até afastar Nicolás Maduro do poder, convocar um Governo de transição e eleições livres e democráticas. A oposição venezuelana não reconhece Nicolás Maduro como presidente da Venezuela e insiste em denunciar alegadas irregularidades nas eleições presidenciais antecipadas de 2018, acusando o chefe de Estado de estar a "usurpar" o poder.

Mas desde junho, o Supremo Tribunal de Justiça da Venezuela suspendeu a direção dos quatro maiores partidos opositores Vontade Popular, Primeiro Justiça, Ação Democrática, Um Novo Tempo, bem como de vários partidos afetos ao regime, entre eles o Pátria para Todos, e ordenou que fossem reestruturados, nomeando direções provisórias para estes partidos.

Esta decisão foi classificada pela oposição como uma manobra de preparação "para uma nova farsa eleitoral", em que o regime decidirá quem preside aos partidos nas próximas eleições.


Depois de desmantelar os partidos políticos que se opunham à sua sua versão do socialismo, Maduro preparou uma equipa de "seguranças" para tratar dos ativistas ideológicos desiludidos, inspirando-se nos autocratas de esquerda da União Soviética a Cuba.

"Quem faz qualquer crítica é considerado como oposição, como a direita, é chamado de traidor", disse ao jornal norte-americano Ares Di Fazio, ex-guerrilheiro urbano e líder do Partido Tupamaros, de extrema esquerda, que foi desmantelado pelo governo em agosto após ter manifestado descontentamento.

As forças de segurança venezuelanas reprimiram simpatizantes tradicionais do governo, que nos últimos meses inundaram as ruas das cidades do interior para denunciar o colapso dos serviços públicos e os todos os que denunciam corrupção são acusados ​​de sabotagem.

Mesmo os membros da aliança eleitoral governamental que decidiram concorrer, agora, como independentes são desqualificados.
Aqueles que de alguma forma perseveraram são perseguidos pela polícia ou acusados ​​de crimes que não cometeram.

Em parte, a repressão interna é a prova de que Maduro quer acabar com as políticas de redistribuição de riqueza do seu falecido antecessor Hugo Chávez, em prol de um capitalismo de camaradas para sobreviver ao agravamento das sanções norte-americanas.

Segundo o NYT, esta reviravolta política conseguiu legalizar a economia de mercado negro da Venezuela, desvalorizando a corrupção generalizada e permitindo a Maduro manter a lealdade das elites militares e empresariais que se aproveitam da nova ordem económica.

Mas, para a oposição, estas novas políticas de sobrevivência venezuelanas só aumentaram as desigualdades e o fosso social. Enquanto a maioria dos venezuelanos vive na miséria ou com grandes dificuldades, uma pequena minoria compra "carros de luxo", denunciou Oswaldo Rivero, um importante ativista de esquerda e apresentador de televisão, que durante anos promoveu os ataques contra a oposição no seu programa.

E, segundo Rivero, a quem questionar estas políticas ou novos ideiais "eles fazem lenha" (que significa, que os "queimam", não literalmente, ou que "acabam com eles").

Mas a verdade é que eram estes ativistas de esquerda e "antigos" socialistas que, nas última décadas, ajudavam Chávez e Maduro a permanecer no poder.

Estes movimentos políticos, alguns dos quais datam das revoluções da Guerra Fria, fizeram campanha pelos candidatos de Maduro, mobilizaram simpatizantes para manifestações do governo e às vezes perseguiram manifestantes da oposição. Mas estes aliados de longa data começaram a ficar cada vez mais dececionados com o autoritarismo e a corrupção de Maduro e começaram a afastar-se. Este ano, pela primeira vez, alguns decidiram apresentar os seus próprios candidatos à assembleia e não apoiar Nicolás Maduro, que desde então aumentou a repressão a todos os que considera traidores e opositores.
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