Visão Global 2017: Luís Tomé

por Luís Tomé - Professor Associado na Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), Coordenador Científico da unidade de investigação OBSERVARE-Observatório de Relações Exteriores.
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Personalidade do ano: Donald Trump
O Presidente dos EUA, País mais poderoso do mundo, é sempre candidato a figura do ano pelas repercussões no mundo das suas decisões e políticas. Acresce ser 2017 o primeiro ano de mandato de um Presidente que assumiu como objetivo desmantelar a herança do seu antecessor nos planos interno e externo. E para mais tratando-se de um personagem particularmente mediático, imprevisível e controverso no percurso e nas ideias.

A estas razões soma-se o facto de Donald Trump ser autenticamente disruptivo com base no populista “American First”, slogan de campanha exercitado no cargo presidencial e que aponta dois vectores essenciais de atuação: a supremacia militar americana que ninguém deve desafiar; a renegociação de acordos comerciais para reduzir o gigantesco défice comercial dos EUA.

Alguns exemplos em matéria de política externa - a dimensão que interessa aqui para justificar a escolha da “figura do ano” -, revelam o carácter disruptivo de Trump: anunciou uma aproximação dos EUA à Rússia (“para benefício da segurança mundial”) e a Vladimir Putin (com quem diz “ter muito em comum”), mas ainda longe de concretização (talvez também em virtude das suspeitas de interferência russa nas eleições presidenciais donde Trump saiu vitorioso); começou por referir a NATO como uma “organização obsoleta” para depois a considerar uma “organização muito importante”; colocou em causa a reabertura e normalização das relações diplomáticas com Cuba; ameaçou não reconhecer o acordo internacional com o Irão para a suspensão e supervisão do seu programa nuclear; reaproximou os EUA da Arábia Saudita com quem celebrou os mais volumosos acordos para venda de armamento; retirou os EUA do acordo de comércio livre Parceria Trans-Pacífico (TPP); anunciou a desvinculação dos EUA do Acordo de Paris para o combate às alterações climáticas; abriu o processo de renegociação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) com México e Canadá; ordenou um ataque militar direto contra instalações militares do regime de Bashar Al-Assad na Síria depois deste ter alegadamente utilizado armas químicas; autorizou o lançamento da “mãe de todas as bombas” no Afeganistão numa acção unilateral e sem o conhecimento prévio do Congresso; ameaçou castigar a China por manipulação monetária e práticas comerciais injustas, mas foi na China que celebrou o 1º aniversário da sua vitória presidencial e foi com o Presidente chinês Xi Jinping que assinou os maiores e mais importantes acordos comerciais; ameaçou “destruir totalmente” a Coreia do Norte e alimentou uma perigosa retórica belicista com o homólogo norte-coreano Kim Jong-un a quem chamou “rocket man” e “líder de um bando de criminosos”…

Um ano é insuficiente para percebermos o real alcance do populismo trumpiano ou os impactos provocados pela alteração na política externa Americana com a Administração Trump.

Mas entre inúmeras polémicas e frequentes dislates e insultos, muitas vezes através do Twitter, é sobretudo o que Donald Trump fez ou desfez enquanto Presidente dos EUA ao longo de 2017 que justifica a escolha para “figura do ano”. Infelizmente, quase nunca pelos melhores motivos.
Acontecimento do ano: Derrota militar e recuo territorial do DAESH no “Siraque”
O auto-proclamado “Estado Islâmico” ou DAESH (acrónimo árabe de ISIS ou ISIL) tornou-se um dos actores mais impactantes na geopolítica do Médio Oriente, o grupo terrorista mais mortífero do mundo e uma das maiores ameaças à segurança internacional, disputando com a al-Qaeda a liderança do jihadismo global.

Por conseguinte, o recuo territorial do DAESH na Síria e no Iraque (“Siraque”) ao longo do ano e a sua derrota militar, solene e simbolicamente declarada pelo Presidente do Irão em novembro de 2017, é um acontecimento de enormes repercussões.

Desde logo, significa a libertação e o fim do terror para milhões de iraquianos e sírios. Depois, o fim do DAESH enquanto entidade territorial de relevo significa também o termo de um “santuário-íman” para dezenas de milhares de combatentes jihadistas e centro estratégico-operacional para as actividades do auto-proclamado Califado – o dilema, muito inquietante, é o destino desses “combatentes estrangeiros” e outros jihadistas sobreviventes.

Além disso, à medida que foi recuando no “Siraque”, cresceu a motivação do DAESH para forçar o estabelecimento do “Califado” numa nova base territorial em países como a Líbia, o Egito (Sinai), o Iémen ou a Nigéria.

Por outro lado, a derrota militar do DAESH intensificou a disputa entre uma multiplicidade de outros atores, unidos no combate contra o DAESH mas totalmente desavindos nos respetivos interesses, objectivos, prioridades e visão de futuro, entre os quais, Governo iraquiano, regime de Bashar Al-Assad na Síria, curdos (iraquianos, sírios e turcos), milícias xiitas, milícias sunitas, filial da al-Qaeda na Síria, Coligação Nacional das Forças Sírias de Oposição e Revolucionárias, Hezbollah, Irão, Turquia, Arábia Saudita e outros países Árabes, Rússia, EUA, Israel e países europeus.

Ao longo de 2017, já tivemos claros vislumbres destas disputas, por exemplo, na corrida entre diversos grupos combatentes na Síria para ocupar localidades e rotas antes controladas pelo DAESH, o intensificar dos combates entre a Turquia e os curdos sírios e turcos (YPG e PKK), o referendo independentista no Curdistão iraquiano ou os “jogos de poder” entre potências a fim de garantirem melhores posições perspectivando o futuro a partir dos escombros pós-DAESH na Síria e em toda a região.

A derrota militar do DAESH abre novas perspetivas para um autêntico processo de paz na Síria; infelizmente, também favorece a possibilidade de novos confrontos entre os “vencedores” que se encontram frente a frente sem um inimigo comum.

O recuo no “Siraque” pode ser o fim do DAESH enquanto entidade terrorista territorializada; infelizmente, tal não significa o seu desaparecimento nem o fim da ameaça terrorista que representa, longe disso.

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