Votação sobre o aborto está por horas na Argentina

por RTP
Os manifestantes a favor da legalização do aborto utilizam lenços verdes nos seus protestos Marcos Brindicci - Reuters

Os argentinos aguardam que saia a qualquer momento o resultado da votação no Senado do projecto de legalização do aborto voluntário até à 14ª semana. Desde 1921 que a legislação já prevê, em caso de violação ou problemas de saúde, que as mulheres possam abortar legalmente. No entanto, nem todas as províncias do país respeitam a lei.

Esta prevista ainda para esta quarta-feira a decisão do Senado sobre o aborto até à 14ª semana de gestação. Caso o projecto-lei não seja aprovado pela maioria, o aborto volta a cair genericamente na ilegalidade, sendo punido com prisão.

O aborto não é totalmente ilegal na Argentina. De acordo com uma lei de 1921, trata-se de uma prática legal caso a vida ou a saúde da mulher estejam em perigo, contemplando ainda casos de violação. Apesar de estas excepções estarem previstas no quadro legal, o acesso ao aborto não é implementado na totalidade do território argentino, sendo que apenas nove das 25 províncias do país têm esses protocolos para que as mulheres possam abortar legalmente.

Devido a esta situação, muitas mulheres recorrem ao aborto ilegal, com todos os riscos que isso implica. Os números saltam à vista: desde 1983 já morreram pelo menos 3030 mulheres devido a abortos inseguros. Destas, mais de 25 por cento tinham menos de 25 anos, segundo a Amnistia Internacional.
“Queriam salvar as duas vidas”
A Amnistia estima que se realizem 450 mil abortos por ano. O número de mulheres que têm de ser internadas devido a complicações ronda as 49 mil por ano. Mais do que os números, há depois as histórias de quem passou pela experiência de querer abortar na Argentina.

O jornal britânico The Guardian relembra o caso de Ana María Acevedo. Em 2007, com 19 anos e mãe de três crianças, sofria de cancro no maxilar quando lhe foi descoberta uma gravidez de duas semanas, o que levaria os médicos a suspenderem os tratamentos oncológicos.

As sessões de quimioterapia que estavam previstas foram canceladas, argumentaram os médicos, porque iriam colocar o feto em risco. Da mesma forma, não foi admitida a possibiliadade de pôr termo à gravidez, para poder continuar com os tratamentos ao cancro.

“Disseram que queriam salvar as duas vidas: a dela e a do filho que ainda não tinha nascido”, contou a mãe de Ana María Acevedo. O bebé acabou por nascer de cesariana, com seis meses de gestação. Morreu passadas 24 horas. Ana María Acevedo, que viu os tratamentos ao cancro interrompidos, morreu após duas semanas.

Esta é uma das muitas situações que têm levado organizações pró-aborto para a rua, em protestos que ganham forma com os manifestantes munidos de lenços verdes. Noutras situações, os ativistas vestem-se como as personagens da série “The Handmaid’s Tale”.



A indumentária não é utilizada por mero capricho. Durante a ditadura argentina, entre 1976 e 1983, o país engendrou um plano que obrigava mulheres grávidas a entregarem os seus filhos a famílias militares, sendo de seguida assassinadas.

Margaret Atwood, autora do livro que deu origem à série televisiva “The Handmaid’s Tale”, baseou-se nesse episódio negro da história argentina para retratar uma realidade distópica em que as mulheres férteis são obrigadas a conceber para outras mulheres, de mais posses e incapazes de engravidar.

A própria autora já se mostrou a favor da legalização do aborto no país, incitando a vice-presidente argentina, Gabriela Michetti, a “não fechar os olhos aos milhares de mortes anuais por abortos ilegais”.



A resposta veio alguns dias depois, com Michetti a considerar que o aborto deveria ser penalizado por completo, mesmo em caso de violação: “Entendo o drama que possa estar envolvido [nos casos de violação], mas há tantos dramas na vida que não têm solução (…). O bebé pode ser entregue para adoção sem haver qualquer dano”, declarou ao diário argentino La Nación.

Caso o Senado não chegue a acordo quanto à legalização do aborto, caberá a Gabriela Michetti desempatar a decisão, faz notar o jornal espanhol El País.
Opiniões contra princípios e valores
Se por um lado existem manifestações a favor do aborto, aqueles que não concordam com a legalização também se fazem ouvir. No sábado passado, as igrejas evangélicas da Argentina convocaram milhares de pessoas para encherem a rua com palavras do contra.

O seu argumento é o mesmo que há uma dúzia de anos deram à mãe de Ana María Acevedo: “salvar as duas vidas”.


A posição do Papa sobre a legislação que será votada no seu país natal também é clara: contra.

O padre Gillermo Marcó, antigo porta-voz do pontífice argentino, afirma que “o aborto não é uma solução nem para a mãe nem para a criança”.

“O Papa Francisco tem a opinião de qualquer cristão que defende a vida desde o momento da conceção. Politicamente não concorda com a abordagem do Presidente Macri, de deixar as pessoas decidir. Na vida, há princípios e valores que estão para além das opiniões”, declarou Marcó.

O projeto-lei está a ser votado no Senado por 72 legisladores. De acordo com o El País, 37 expressaram a sua intenção de votar contra a legalização do aborto, com 31 a favor.

Segundo o diário espanhol, quase dois terços dos votos negativos serão dos senadores que representam as províncias do Norte da Argentina, onde a presença da Igreja Católica está mais enraizada. Os opositores são maioritariamente homens – 23 contra 14 mulheres – com mais de 50 anos.
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