"Vou morrer". O impacto do corte na ajuda da América a campos de refugiados na Tailândia

por Cristina Sambado - RTP
Campo de refugiados de Mae La na fronteira entre a Tailândia e Myanmar Shakeel - Reuters

Ao longo da fronteira montanhosa entre a Tailândia a Myanmar existem nove campos de refugiados, alguns dos quais eram financiados pelos Estados Unidos. A Administração de Donald Trump congelou, por 90 dias, quase toda a ajuda internacional, interrompendo a rede de desenvolvimento global dos EUA. Os efeitos são já visíveis.

Com o congelamento da ajuda, Mae La o maior campo de refugiados e o seu hospital, a única fonte de cuidados médicos para mais de 37 mil pessoas que aí vivem – na sua maioria da minoria étnica Karen –, foram forçados a fechar as portas.

A CNN teve acesso a um vídeo publicado por refugiados nas redes sociais mostrava os pacientes do centro de Mae La a serem levantados das camas do hospital e transportados em redes cobertas por cobertores.Cerca de 100 mil pessoas vivem nos nove campos, tendo fugido de décadas de combates entre os militares de Myanmar e os grupos rebeldes de minorias étnicas. A situação na fronteira agravou-se nos últimos anos com o golpe de Estado da junta militar e a guerra civil que se lhe seguiu.

Numerosos trabalhadores humanitários no norte da Tailândia descreveram o pânico e a confusão generalizados na sequência da súbita suspensão da ajuda, especialmente entre aqueles cujo trabalho presta serviços que salvam vidas a algumas das pessoas mais vulneráveis e empobrecidas do mundo, de ambos os lados da fronteira. Alguns disseram à CNN que só lhes restava um mês e meio de financiamento para alimentar dezenas de milhares de pessoas.

“Nunca tínhamos enfrentado um problema como este”, afirmou Saw Bweh Say, secretário do Comité de Refugiados Karen, que representa os refugiados nos campos tailandeses.

Os refugiados nos campos fronteiriços tailandeses vivem uma existência frágil e isolada.
Não podem trabalhar legalmente e precisam de uma autorização para sair do campo. O Governo tailandês considera os campos como acampamentos temporários, mas algumas comunidades estão lá há gerações.

Os serviços básicos, como os cuidados de saúde, a educação, o saneamento, a água e a alimentação, são fornecidos por dadores de ajuda internacional. Em Mae La, e em seis outros campos, esses fundos provêm quase inteiramente dos EUA - o maior doador de ajuda do mundo - através do Comité Internacional de Resgate.Apesar de os hospitais de campanha serem semelhantes com clínicas de campanha, com tetos de lata e energia intermitente, são a única fonte de cuidados de saúde para dezenas de milhares de pessoas.

À CNN, um porta-voz do Comité Internacional de Resgate (IRC) revelou que tiveram de começar a fechar departamentos ambulatórios e outras instalações nos campos na sequência da ordem de paragem.

A gestão das instalações médicas, do equipamento e do sistema de abastecimento de água foi transferida para as autoridades tailandesas e para os comandantes dos campos, embora o comité continue a abastecer-se de medicamentos e de combustível utilizando fundos não americanos.

Equipas de médicos, parteiras e enfermeiros refugiados estão a trabalhar 24 horas por dia para ajudar a colmatar as lacunas, enquanto as famílias se esforçam por encontrar tratamentos alternativos para os seus entes queridos.

“As famílias Karen doaram medicamentos e garrafas de oxigénio, mas isso não é suficiente”, disse Pim Kerdsawang, um trabalhador independente de uma Organização Não Governamental (ONG) na cidade fronteiriça de Mae Sot.
Preocupações com o custo da alimentação

Alimentar mais de 100 mil refugiados nos nove campos durante um mês custa 1,3 milhões de dólares e a organização que fornece os alimentos e o combustível para cozinhar diz que só tem dinheiro suficiente para um mês e meio.

Os refugiados utilizam um sistema de cartão alimentar para comprar artigos nas lojas do campo, que é pago pelo The Border Consortium. A comida e o combustível para cozinhar são financiados pelo Gabinete de População, Refugiados e Migração (PRM) do Departamento de Estado, explicou o grupo.

“A principal preocupação é não ter meios para fornecer aos refugiados alimentos e combustível para cozinhar. Até agora, não há alternativa ao subsídio dos EUA”, lamentou Leon de Riedmatten, diretor executivo do The Border Consortium.


A organização começou a dar prioridade aos refugiados mais vulneráveis que não têm rendimentos próprios, acrescentou Riedmatten, uma vez que o congelamento da ajuda e a chegada contínua de novos refugiados que fogem da violência em Myanmar esgotam os fundos.
Hospitais tailandeses sofrem as consequências
Quando Tawatchai Yingtaweesak, diretor do hospital de Tha Song Yang, soube que os hospitais do campo tinham fechado, a sua equipa apressou-se a ver como poderia ajudar.

Sem médicos de serviço nos campos, o hospital Tha Song Yang, localizado a cerca de 30 minutos de carro da cidade de Mae La, e vários outros intervieram para tratar os refugiados com problemas graves e de emergência.

Tawatchai considerou que o encerramento súbito do hospital financiado pelos EUA era “perigoso” e que, desde o congelamento da ajuda, as suas instalações receberam entre 20 e 30 pacientes refugiados.

Tawatchai está a trabalhar com os médicos do campo e a ajudar a fornecer oxigénio, entre outros produtos, mas afirma que esta é apenas uma solução temporária. O hospital Tha Song Yang serve cerca de 100 mil pessoas e, embora consigam aguentar, receia que a estação das chuvas deste ano os sobrecarregue.

Tipicamente, a monção começa por volta de junho e é “a época alta das doenças”, disse Tawatchai, com um aumento de doenças transmitidas por mosquitos e de crianças com pneumonia.
Congelamento de ajuda afeta mais ONG
A CNN falou com cerca de uma dúzia de ONG e trabalhadores humanitários na região fronteiriça empobrecida, alguns dos quais pediram o anonimato por temerem represálias do governo dos EUA, que disseram que os serviços básicos foram interrompidos e o pessoal despedido devido à política da Administração Trump.

Os cortes afetam os programas de vacinação, educação e reinstalação, abrigos contra a violência doméstica, iniciativas de combate ao tráfico de seres humanos, casas seguras para dissidentes e ajuda a pessoas deslocadas.


“Este fundo só é utilizado para as pessoas vulneráveis e para as que estão realmente a precisar.” Saw Than Lwin, da clínica de Mae Tao.

Durante mais de 30 anos, a clínica de Mae Tao, perto de Mae Sot, tem sido uma tábua de salvação para os migrantes vulneráveis e empobrecidos de Myanmar. A instalação hospitalar atende cerca de 500 pacientes por dia e 20 por cento do seu financiamento provém dos EUA.Agora que o financiamento foi suspenso, a clínica tem de reafectar parte do seu orçamento para que os seus serviços de saúde não sejam afetados.

“Este fundo só é utilizado para as pessoas vulneráveis e para as que estão realmente necessitadas”, disse Saw Than Lwin, diretor-adjunto da organização e desenvolvimento de Mae Tao.

Perto da clínica, trabalhadores humanitários do Burma Children Medical Fund carregam numa carrinha caixas de mantimentos contendo alimentos, leite em pó para bebés, medicamentos e kits de rastreio oftalmológico.

A carrinha dirige-se para o outro lado do rio Moei, uma fronteira entre a Tailândia e Myanmar, para ajudar milhares de pessoas deslocadas por ataques aéreos e terrestres do exército de Myanmar, a poucos quilómetros de distância.

As necessidades em Myanmar são enormes, dizem os trabalhadores humanitários, onde milhões de pessoas lutam contra a fome, o trauma e a ameaça constante de ataques.

“Os locais onde estamos a trabalhar são as zonas mais remotas de toda a Birmânia, comunidades muito difíceis de alcançar sem outras alternativas à assistência médica”, disse Salai Za Uk Ling, fundador da Chin Human Rights Organization.

“Como é que podemos começar a explicar-lhes porque é que isto está a acontecer? “questiona Salai Za Uk Ling.


Cerca de 30 por cento do financiamento da Chin Human Rights Organization provém da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento (USAID) e o grupo, que presta cuidados médicos e de saúde mental a dezenas de milhares de pessoas no noroeste de Myanmar, teve de cortar serviços vitais e despedir pessoal nas últimas três semanas.

“As comunidades rurais, as pessoas que vivem em situação de deslocação, não sabem muito sobre política internacional, tudo o que lhes interessa é a sua sobrevivência diária”, acrescentou Za Uk.

No Estado de Kayah, em Myanmar, também conhecido como Karenni, a suspensão da ajuda significou que os salários dos professores não foram pagos, deixando as crianças sem educação, declarou Banya Khung Aung, fundador e diretor do Karenni Human Rights Group.

Se tivessem sido avisados com mais antecedência, grupos como o seu poderiam ter procurado financiamento alternativo, afiançou.
Isenções não estão a ser processadas
O secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, afirmou que os Estados Unidos continuam a fornecer ajuda humanitária que salva-vidas.

Rubio, atual administrador interino da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento, reiterou na passada semana que tinha emitido uma revogação geral para os programas que salvam vidas.

“Se se trata de fornecer alimentos ou medicamentos ou qualquer outra coisa que esteja a salvar vidas e seja imediata e urgente, não estão incluídos no congelamento. Não sei se podemos ser muito mais claros do que isso”, expôs Rubio, questionando a competência das organizações que não solicitaram uma isenção.

“Na altura em que qualquer financiamento chegar até nós, infelizmente, as pessoas que sofrem de problemas médicos graves poderão perder-se”, declarou Salai Za Uk Ling, da Chin Human Rights Organization.

Pelo menos seis organizações com as quais a CNN falou no norte da Tailândia disseram que não tinham recebido isenções, nem sequer tinham sido analisadas.


Funcionários da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento declararam à CNN que quase todos os programas de assistência humanitária continuam parados.

“Há uma ou duas semanas atrás, as pessoas pensavam que o processo de isenção seria legítimo e que os programas seriam revistos”, disse à CNN um funcionário da USAID baseado em Washington. “Quando se tornou claro que isso não estava a acontecer, houve uma sensação de choque total”.

Outro funcionário da USAID disse à CNN que “o trabalho está parado porque não há pessoal para o gerir e não há pessoal em Washington para responder às perguntas dos parceiros”.

Mesmo que os fundos sejam disponibilizados após o congelamento de 90 dias, “quem é que nos vai comunicar ou ter conhecimentos suficientes para processar o que resta do sistema?”, interrogou Salai Za Uk Ling. “Quando os fundos chegarem até nós, infelizmente, as pessoas que sofrem de problemas médicos graves poderão perder-se”.

Na sua ordem executiva de 20 de janeiro, o Presidente Donald Trump disse que a “indústria de ajuda externa dos EUA” serve para “desestabilizar a paz mundial” e é “em muitos casos antitética aos valores americanos”.

Mas os afetados no norte da Tailândia são algumas das pessoas mais vulneráveis do mundo que dependem da ajuda dos EUA para sobreviver.
Histórias na primeira pessoa
Tubos de plástico serpenteiam do nariz de Rosella para uma botija de oxigénio maior do que ela, enquanto ela folheia um livro com os seus desenhos: uma flor, uma casa, uma galinha.

A menina de nove anos precisa de cuidados médicos contínuos devido a um problema ósseo com que nasceu e que lhe deixou as costelas a pressionar perigosamente os pulmões, um dos quais não está a funcionar como devia.

“Ela não consegue respirar corretamente”, disse a mãe, Rebecca, de 27 anos, à CNN por videochamada. “Precisa de um fornecimento constante de oxigénio”. Mas ela não sabe quanto tempo é que isso vai durar.

No campo de Mae La, Rosella não pode afastar-se muito da sua garrafa de oxigénio. Segundo a mãe, ela precisa de uma garrafa de oxigénio de dois em dois dias.

Para complicar a situação da família, Rebecca está grávida de cinco meses. Costumava fazer as ecografias e os cuidados pré-natais no hospital, mas tudo isso também parou.

“Não sei o que fazer. Não há médicos para consultar neste momento para esta gravidez”, diz ela.

“Estou preocupada com a minha filha e com esta gravidez, preocupada com toda a gente.”

“Se for uma emergência, como é que podemos enfrentar a situação? Isso sobrecarrega muita gente aqui”, frisou Ni Ni, 62 anos, que sofre de insuficiência cardíaca e doença renal.

Sem oxigénio médico, “vou morrer”, disse à CNN por videochamada a partir de Mae La.

Para alguns, já é demasiado tarde. No acampamento de Umpiem, nas proximidades, uma senhora idosa com problemas respiratórios morreu depois de não ter tido acesso a oxigénio suplementar devido ao encerramento do hospital, revelou o porta-voz do Comité Internacional de Resgate.

Outros refugiados disseram à CNN que têm agora de suportar os custos de tratamentos como a diálise - uma despesa enorme quando a maioria luta para alimentar as suas famílias.

Naw Mary, 32 anos, foi levada às pressas para a maternidade de Tha Song Yang no domingo, sofrendo de tensão arterial elevada. Longe da sua família e da sua casa no campo, estava prestes a dar à luz o seu primeiro filho.

“Disseram-me que era arriscado dar à luz no campo, sem médico e sem instalações, pelo que me encaminharam para este hospital”, disse Naw Mary.

Nervosa e entusiasmada por trazer o seu bebé ao mundo, Naw Mary diz também estar preocupada com os cuidados a ter com o recém-nascido e consigo própria.

“Porque é que tiveram de deixar de ajudar os refugiados?”, interrogou.
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