Xadrez sírio. Ancara culpa Damasco pela morte de 34 soldados turcos, mas há dedos que apontam à Rússia

por RTP
Recep Tayyip Erdogan, presidente da Turquia Reuters

No início de 2020, um ataque aéreo numa aldeia síria a sul de Idlib provocou a morte de 34 soldados turcos, o dia mais mortífero para a Turquia na guerra da Síria. Ancara culpabiliza Damasco pelo ataque, mas os soldados turcos afirmam que as bombas foram lançadas pelas forças russas. Funcionários próximos do Governo defendem que Ancara tomou a decisão certa ao atirar as culpas para os sírios, uma vez que a Turquia não teria arsenal suficiente para enfrentar a Rússia numa eventual retaliação.

A 27 de fevereiro de 2020, quatro mísseis atingiram uma coluna de soldados turcos perto da aldeia síria de Balyun, a sul de Idlib, a última grande região da Síria controlada por grupos rebeldes e jihadistas.

O ataque aéreo provocou a morte de 34 soldados turcos, um recorde de vítimas fatais para a Turquia num só dia desde a intervenção na guerra da Síria em 2016 e a maior perda de vidas para o exército turco desde a invasão de 1974 ao Norte do Chipre. As mortes representaram uma grave escalada nos combates entre os rebeldes sírios – apoiados pela Turquia – e as forças sírias – apoiadas pela Rússia – travado desde o início de fevereiro de 2020.

Durante horas, o Governo turco manteve-se em silêncio sobre o ataque, mesmo depois de os meios de comunicação noticiarem o incidente. Ao final da noite, quase 12 horas após o ataque aéreo, o silêncio foi finalmente quebrado: Rahmi Dogan, governador de Hatay, uma província turca situada na fronteira com a Síria, descreveu aos meios de comunicação locais “um ataque aéreo pelas forças do regime em Idlib”, apontando o dedo à força aérea síria.

O Ministério russo da Defesa alinhou com o Governo turco, ao afirmar que os pilotos sírios, confundidos pelas forças da oposição na área, atingiram os soldados turcos por engano.

A versão de Dogan e de Moscovo não coincidia, porém, com a dos soldados turcos envolvidos no conflito em Balyun e que estiveram presentes no dia do ataque. Segundo as tropas turcas, o ataque não foi da autoria da Síria, mas sim da Rússia.

De acordo com relatos dos soldados turcos, jatos sírios e russos tinham sobrevoado os alvos turcos no dia do ataque. “Os russos tinham atingido áreas muito próximas às nossas colunas pelo menos quatro vezes naquele dia”, apesar dos vários avisos de funcionários turcos aos seus homólogos russos, disse um soldado de Ancara destacado para Balyun ao Middle East Eye (MEE).

“Havia uma coordenação [por parte da Turquia] contínua com os russos. Eles sabiam sempre onde estávamos”, acrescentou o soldado.

Segundo explica o MEE, na maioria das vezes, o autor de um ataque aéreo de um voo conjunto sírio-russo pode ser identificado pelo tipo de bomba lançada. Se o alvo for um ponto específico, provavelmente o ataque veio de Moscovo, dado que, de acordo com fontes militares turcas, os aviões sírios não podem lançar as chamadas bombas "destruidoras de bunkers", capazes de penetrar em alvos difíceis. Os aviões sírios também são incapazes de atingir um alvo específico.

Por sua vez, dois militares turcos asseguraram ao MEE que os alvos naquele dia foram definitivamente atingidos e o ataque foi concluído com sucesso, o que aponta para a autoria russa.
Uma fonte militar turca, diretamente envolvida no incidente, diz mesmo que uma das bombas utilizadas no ataque de 27 de fevereiro foi “claramente uma bomba anti-bunker”.
Porque se absteve a Turquia de reconhecer a autoria russa no ataque?
A Turquia, a Rússia e o Irão chegaram a um acordo em janeiro de 2017 para a formação de um mecanismo conjunto de monitorização das violações do cessar-fogo decretado em dezembro de 2016 na Síria. O acordo ficaria conhecido por “processo Astana”.

Desde a assinatura do acordo, ministros e altos funcionários turcos abstiveram-se de criticar publicamente a ação russa na Síria, mesmo quando ataques aéreos mataram civis ou atingiram áreas onde havia estações de observação turcas.

Soldados e funcionários turcos revelaram ao MEE que esperavam uma condenação pública a Moscovo após o ataque de 27 de fevereiro, mas o Governo turco tem mantido a sua versão.

O “tapar de olhos” por parte da Turquia poderá prender-se com o poder militar. Alguns funcionários próximos do Governo defendem que Ancara tomou a decisão certa ao atirar as culpas para os sírios, uma vez que a Turquia não teria arsenal suficiente para enfrentar a Rússia numa eventual retaliação.

“Poderíamos ter tomado Damasco em 40 dias se não houvesse uma presença russa na Síria”, disse um coronel turco ao MEE. “O exército sírio é um lixo completo. Podemos atacar o exército sírio o quanto quisermos, mas isso não terá qualquer efeito dissuasor, porque foram os russos quem nos atacou”, acrescentou.

“Este ataque poderia ter sido evitado?”, questionou um veterano de operações especiais turco. “Sim. Todos dizem que os S-400 [sistema de defesa contra mísseis de fabrico russo] nos protegerão contra o Ocidente. Então, o que nos protegerá contra a Rússia, que matou 34 dos nossos soldados?”, voltou a questionar.

“A Rússia ganhou superioridade psicológica com isso. Superioridade militar já eles tinham”, observou o veterano.
Turquia e Rússia formam aliança?
Segundo avança o MEE, a Rússia e a Turquia estão atualmente a negociar uma operação militar na cidade fronteiriça Kobane para eliminar os grupos das Unidades de Proteção Popular (YPG) presentes na área.

Autoridades turcas revelaram à Bloomberg na semana passada que a Turquia estava mesmo a considerar deixar algumas pequenas partes de Idlib para os russos de forma a conseguir apoio para uma operação no norte da Síria.

Ancara tem noticiado nas últimas semanas vários ataques visando as suas forças a partir de uma zona do norte da Síria controlada pelos combatentes das YPG. A tensão aumentou desde que dois polícias turcos foram mortos há um mês num ataque com um míssil no norte da Síria, que a Turquia diz ter sido executado pelo YPG. Esta milícia dos curdos da Síria é considerada por Ancara uma ramificação do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, proibido na Turquia) e classificada como terrorista, mas as YPG combateram ao lado das forças norte-americanas contra o grupo extremista Estado Islâmico.

Desde 2016, Ancara já executou três ofensivas na Síria contra o YPG e procura agora lançar a quarta, com o presidente turco, Recep Erdogan, a afirmar estar “determinado a eliminar as ameaças que vêm da Síria”.

Para afastar as milícias curdas da sua fronteira, a Turquia invadiu uma parte do território sírio no norte, juntamente com facções sírias. Para enfrentar o avanço de Ancara os curdos contaram com a ajuda das forças do regime de Damasco, apoiadas pela Rússia. Os EUA também apoiam o exército curdo no norte da Síria. Trata-se de um intrincado xadrez de forças que muitas das vezes se unem na região, apesar de serem inimigas noutras partes do Médio Oriente.

Ancara e Moscovo assinaram um acordo em 2019, no qual a Rússia se comprometeu a retirar as forças da YPG da fronteira, uma promessa ainda por cumprir, segundo autoridades turcas.

c/agências
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