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Xi Jinping à beira de um terceiro mandato. O "presidente de tudo" segue incontestado?

Começa este domingo o XX Congresso do Partido Comunista Chinês, que deverá ficar marcado para a reeleição inédita do líder para um terceiro mandato presidencial. As alterações constitucionais de 2018 deverão permitir a Xi Jinping perpetuar-se no poder, possivelmente por tempo indeterminado. Olhamos para os últimos anos da China sob a liderança de Xi e para os principais momentos da vida deste que é por muitos considerado como o homem mais poderoso do mundo.

20 de janeiro de 2020, Wuhan. Pela primeira vez, o Governo chinês reconhecia que um novo vírus era de facto contagioso entre humanos e estava a espalhar-se naquela cidade. Três dias depois, a cidade entrava em quarentena.

Li Wenliang, oftalmologista no Hospital Central de Wuhan, tinha alertado ainda em dezembro de 2019 para um novo vírus identificado pelos colegas, um vírus parecido com o SARS, que tinha afetado a China em 2002.

No entanto, pressionado pelas autoridades chinesas, Li desmentiu as informações e sinais de alerta que anteriormente tinha veiculado e prometeu que não voltaria a espalhar “rumores”. Dias depois, a 12 de janeiro, daria entrada no hospital onde trabalhava para ser internado com uma infeção pulmonar. Também ele tinha sido infetado.

Li acabaria por morrer a 7 de fevereiro, aclamado como whistleblower – ou denunciante – pelo povo chinês, adorado como um dos rostos que expuseram a eclosão do SARS-CoV2 e a doença que este vírus provocava, mais tarde designada de Covid-19, num momento em que a linha oficial do poder procurava abafar os casos que surgiam.

Para muitos analistas, a crise pandémica foi indubitavelmente o momento mais crítico dos últimos anos de liderança de Xi Jinping na China. Nos primeiros meses de Covid-19, havia até quem antecipasse que este seria o “momento Chernobyl” de Pequim: uma crise sem precedentes que viria agitar os alicerces do poder e acelerar a degradação do sistema e do partido, tal como sucedera à URSS após o desastre nuclear dos anos 80.

No entanto, apesar da repressão inicial e ocultação do vírus, da contestada política de “Covid-zero”, nomeadamente em Xangai, a crise provocada pela pandemia acabou por ajudar ao aperfeiçoamento do controlo sobre a sociedade. Agora, passados quase três anos desses dias críticos e de incerteza, Xi Jinping prepara-se para assumir as rédeas do Partido Comunista e do país num terceiro mandato.

Esse é, desde logo, um dos grandes elementos de destaque neste evento. Em 2018, já sob a liderança do atual presidente, a Constituição da China foi alterada pela Assembleia Nacional Popular para permitir que Xi cumprisse três ou mais mandatos como chefe de Estado. Nas últimas décadas, o presidente chinês era eleito a cada cinco anos e tinha um limite máximo de dois mandatos consecutivos.

O 20º Congresso do Partido Comunista Chinês vai decorrer entre os dias 16 e 22 de outubro, naquele que é o mais importante acontecimento da agenda política nacional. Em 2017, ainda antes da Covid-19 e da perspetiva de um terceiro mandato, a revista The Economist considerava que Xi Jinping já era mais poderoso do que o homólogo norte-americano. Mas quem é e de onde veio este nome incontornável do Partido Comunista Chinês?

Do berço de ouro para o campo
Xi Jinping nasceu naquilo a que se poderia chamar a nata do Partido Comunista Chinês. O pai, Xi Zhongxun, era um revolucionário de grande destaque, tendo lutado ao lado de Mao Tsé-Tung na guerra civil.

Quando o “Grande Timoneiro” chega ao poder, em 1949, Xi Zhongxun era o seu braço direito e chegou a ser ministro da Propaganda. Xi Jinping nasceria a 15 de junho de 1953 e beneficiaria, nos primeiros anos de vida, do estatuto privilegiado do pai. As lutas internas no Partido a partir do final dos anos 50 viriam a mudar radicalmente a vida da família Xi.

Mao virou-se contra o antigo companheiro de armas, o que trouxe grandes amarguras à sua família durante vários anos. O pai de Xi Jinping foi banido do PCC, detido, enviado para um campo de trabalhos forçados. Xi Heping, irmã mais velha de Xi Jinping, suicidou-se na altura em que o nome da família tinha caído em desgraça.

Em Pequim, o menino nascido no seio do privilégio era agora acossado pelos guardas vermelhos. No auge da repressão contra a família, a própria mãe negou-lhe apoio e denunciou-o quando este lhe pedira ajuda. Mais tarde, aos 14 anos, Xi Jinping foi para Liangjiahe, numa altura em que o partido enviava os jovens das cidades para as aldeias, onde era suposto aprenderem as dificuldades do campo.

Em vez de o afastar dos ideais então vigentes, este período conturbado aproximou-o dos valores e da herança familiar, em prol da defesa do partido. Xi Jinping não se afeiçoou desde logo ao trabalho do campo e até tentou escapar inicialmente. Na altura, até começou a fumar porque isso lhe permitia fazer mais pausas durante o trabalho. No entanto, viria mais tarde a afirmar que estes anos o alteraram drasticamente e que a experiência no campo seria decisiva na construção da sua personalidade.

Hoje, Liangjiahe, a aldeia onde Xi Jinping passou grande parte da adolescência – entre os 14 e os 22 anos – é um ponto turístico incontornável na China e uma das rotas essenciais para aqueles que estudam o “Pensamento de Xi Jinping”.
Uma ascensão sustentada nos quadros do partido

Em 1976, com a morte de Mao Tsé-Tung e o fim da Revolução Cultural, o pai de Xi foi perdoado e a família voltou a unir-se. Xi Zhongxun, a mulher e os filhos voltavam a ter um nome limpo e de prestígio.

Segundo a narrativa oficial sobre a história do atual presidente chinês, Xi jinping foi subindo os degraus do poder e seguiu os ensinamentos de Deng Xiaoping nas décadas após a experiência em Liangjiahe: “Esconde os teus pontos fortes e espera o teu tempo”. Entre 1979 e 1982, Xi foi secretário e assessor de Geng Biao, um alto funcionário do partido na área da Defesa e antigo camarada de armas do pai de Xi.

Por esta altura, o atual presidente chinês estabeleceu importantes contactos. Casou com Ke Xiaoming, filha de Ke Hua, antigo embaixador da China no Reino Unido. Mas, de acordo com os vizinhos, o casal discutia “quase todos os dias” e acabaria por se divorciar poucos anos depois.

Foi também nestes anos que Xi Jinping decidiu voltar a abandonar o conforto de Pequim e voltar para as áreas rurais. Na altura, pouco antes de completar 30 anos, Xi Jinping confidenciava que o trabalho nas províncias seria “o único caminho para o poder central”, já que ficar na capital estreitaria ainda mais as suas ligações, de si já muito próximas do poder devido aos laços familiares. Mas nem por isso deixava de tentar aproveitar o estatuto de príncipe.

“Quando Xi Jinping era chefe do partido num distrito no norte da província de Hebei, no início dos anos 1980, a sua mãe escreveu uma nota ao chefe do partido da província pedindo para que se interessasse pela evolução de Xi. Mas esse funcionário, Gao Yang, acabou por divulgar o conteúdo da nota numa reunião do Comité Permanente da província. A revelação foi um grande constrangimento para a família, já que violava a nova campanha do PCC contra a procura de favores”, assinala Cai Xia, antiga professora na Escola Central do Partido Comunista Chinês entre 1998 e 2012, expulsa do PCC e em exilio nos Estados Unidos.

Noutro caso, um escândalo destes teria arruinado as aspirações do jovem quadro do partido, mas novamente a família veio em socorro. A intercessão por parte dos pais voltou a permitir que Xi viajasse para a província de Fujian, onde esteve 17 anos, entre 1985 e 2002, primeiro como líder de prefeituras, e depois como dirigente ao nível provincial.

Foi por esta altura, em 1987, que Xi Jinping casou com Peng Liyuan, uma célebre cantora de ópera e folclore na China, escolhida dois anos mais tarde pelas autoridades para cantar aos militares na Praça Tiananmen aquando do massacre de 1989. Em 1992, o casal tem a única filha, Xi Mingze.

De regresso a Fujian. Entre a prosperidade económica e o crescimento, Xi Jinping conviveu estes anos com Chen Kai, um magnate chinês corrupto que atuava sob a alçada da polícia. Este viria a ser acusado de corrupção e condenado à morte, enquanto cerca de 50 funcionários locais foram acusados de ligações a Kai. De igual forma, Xi Jinping também escapou às investigações que visaram Lai Changxing, acusado de corrupção e condenado a pena de prisão perpétua pouco antes de Xi chegar à liderança do partido.

Em 2002, Xi Jinping saiu de Fujian e assumiu posições de liderança na província vizinha de Zhejiang, passando mais tarde para Xangai, já em 2007. Meses depois, foi nomeado para o Comité Permanente do Politburo em outubro de 2007, durante o 17º Congresso do Partido Comunista Chinês. No ano seguinte foi designado como vice-presidente de Hu Jintao. Tal como previra no início da carreira, o percurso das províncias tinha-o aproximado do núcleo duro do poder.

Tudo corria bem na ascensão ao poder. Já em Pequim, Xi Jinping ficaria encarregue de alguns dos principais eventos dos Jogos Olímpicos de Verão de 2008, momento de otimismo e apogeu da projeção de uma imagem otimista e positiva da China para o resto do mundo.

Nos anos que antecederam a subida ao poder, Xi Jinping era, a par de Bo Xilai, ex-ministro do Comércio e secretário do partido de Chongqing, um dos principais nomes de destaque do Partido Comunista Chinês. Meses antes de assumir funções como presidente do partido e depois como presidente da China, estala um dos casos mais polémicos das últimas décadas: Bo Xilai era acusado de homicídio e peculato. Mesmo neste contexto de crises dentro e fora do partido, a transição de poder ocorreu sem grande agitação. Xi Jinping tornou-se secretário-geral do PCC a 15 de novembro de 2012 e presidente da China a 14 de março de 2013.
O presente e o futuro da China

O primeiro presidente chinês nascido depois da fundação da República Popular da China dedicou-se ao combate à corrupção desde os primeiros anos no cargo. Chamou a si funções decisivas no âmbito da economia, política externa e propaganda, contra a tradição de partilha de poder entre o círculo interno dominante do partido.

Em nome da luta contra a corrupção e da purificação do partido, Xi Jinping apertou o controlo e transformou-se no líder chinês mais autoritário das últimas décadas.

“[Xi Jinping] começou por lançar a mais vigorosa campanha anticorrupção da história do PCC, ao retirar altos funcionários e ao questionar vários acordos de partilha de poder. Deixando de lado o primeiro-ministro e outros líderes, Xi assumiu pessoalmente o comando das políticas económicas e sociais através de grupos de liderança especiais, o que lhe valeu o cognome de ‘Presidente de Tudo’ (chairman of everything)", escreve Yuen Yuen Ang, especialista em política e economia da China.

Em 2017, antes de iniciar o segundo mandato, o presidente chinês conseguiu que o ‘Pensamento de Xi Jinping’, a nova doutrina política que domina a China, fosse inscrito na Constituição. Apenas Mao Tsé-Tung teve também o seu pensamento e ideologia consagrados enquanto ainda estava no cargo.

Xi tornou-se omnipresente. Os chineses habituaram-se a conviver todos os dias com uma nova aplicação para telemóveis que continua no top das mais instaladas. Trata-se da app “Estudar a Grande Nação”, que o South China Morning Post diz ser “o equivalente tecnológico do livro vermelho” durante a Revolução Cultural.

A aplicação foca-se no presidente chinês, com artigos, vídeos e discursos. Permite também responder a quizzes e todas as atividades geram pontos. Nesta “gamificação” da propaganda, há escolas que sinalizam alunos com más pontuações e empresas que classificam os trabalhadores de acordo com o uso da aplicação, realça o New York Times. Os críticos de Xi Jinping acusam o presidente de se imiscuir desta e de outras formas na vida privada dos cidadãos de uma forma inédita e que não se via desde Mao Tsé-Tung.

Mas a vontade de controlar tudo e de estar em todo o lado poderá ser também uma fragilidade. “Ao descartar a longa tradição de governação coletiva da China e ao criar um culto à personalidade que lembra o que cercava Mao, Xi irritou os membros do partido. Enquanto isso, uma série de erros políticos desapontou até mesmo apoiantes seus. A reversão de reformas económicas por parte de Xi e sua resposta incompetente à pandemia de Covid-19 destruíram a sua imagem de herói das pessoas comuns. Nas sombras, o ressentimento entre as elites do PCC está a aumentar", salienta Cai Xia na Foreign Affairs.


O mesmo aconteceu em relação à pandemia. “Em nenhum outro tema o desejo de controlo de Xi foi mais desastroso do que na reação à Covid-19. Quando a doença se começou a espalhar na cidade de Wuhan em dezembro de 2019, Xi sonegou ao público informações na tentativa de preservar a imagem de uma China florescente. Enquanto isso, as autoridades locais ficaram paralisadas. (…) A tendência de Xi para microgerir também acabou por inibir a resposta à pandemia. Em vez de deixar os detalhes da política para a equipa de saúde do Governo, Xi insistiu em coordenar ele próprio os esforços da China”, destaca a ex-docente da principal escola de formação de quadros do PCC.

Ao fim dos primeiros anos de pandemia, a política de “Covid Zero” ajudou ao controlo da propagação do vírus, quando o Ocidente se deparava com elevados números de mortos e hospitalizações, sobretudo em forte contraste com a situação nos Estados Unidos. “A liderança e a superioridade institucional de cada país serão julgadas pela sua resposta à pandemia”, afirmou Xi num discurso no ano passado.

No entanto, nota o New York Times, a paralisação de cidades inteiras perante a variante Ómicron “tem sido um empecilho para a economia, viagens e para a vida quotidiana na China. Em alguns casos, os bloqueios levaram à escassez generalizada de alimentos e de outras necessidades básicas”. Por outro lado, o presidente chinês não quer depender das vacinas ocidentais, ainda que estas tenham demonstrado maior eficácia na proteção dos mais vulneráveis.

De facto, não será fácil agradar a tanta gente em tantos campos e responder aos anseios dos numerosos quadros do partido. O PCC conta com quase 100 milhões de militantes, o que é mais do que a população inteira de países como a Alemanha ou o Japão. Para ajudar a uniformizar a mensagem e o pensamento no país com mais população no mundo, Xi Jinping confia na “grande firewall” da China para censurar a internet e controlar o acesso à informação. Em 2000, o presidente norte-americano fazia troça e duvidava da capacidade da China para conseguir verificar o fluxo da internet. Era como tentar “colar gelatina à parede”, troçava então Bill Clinton. Mais de vinte anos depois, ninguém duvida da máquina de censura e controlo com recurso a tecnologias avançadas, incluindo a inteligência artificial.

“Nenhum regime despótico na história teve recursos que igualassem os da China moderna. E, ao contrário do líder de uma democracia, Xi pode estalar os dedos e posicionar esses recursos. (…) O tamanho e a obstinação podem produzir resultados: a China está provavelmente à frente do Ocidente em matéria de 5G e baterias. Quanto mais a sua poderosa economia crescer, maior será a sua força geopolítica. (…) É por isso que os governos ocidentais tratam a inovação chinesa como uma questão de segurança nacional”, escreve a Economist.

Resta saber se o regime continuará a conseguir fazer frente aos desafios que se impõem neste terceiro mandato. Alcançar uma resolução na questão de Taiwan nos próximos anos, por exemplo, colocaria Xi Jinping nos livros de história, mas uma ação no território insular poderá colocar em causa a brutal evolução económica das últimas décadas ou mesmo criar um conflito aberto com os Estados Unidos. A Lei de Segurança Nacional, implementada há dois anos, também não resolveu definitivamente a situação de Hong Kong. E há ainda Xinjiang e os abusos nos campos de trabalho forçado da minoria uigur e de outras minorias, com a violação de Direitos Humanos a motivar a constante contestação e reprovação internacionais.

“A obsessão de Xi pelo controlo pode tornar o Partido Comunista mais forte, mas também torna a China mais fraca do que poderia ser de outra forma. Mesmo quando Xi se esforça para transformar a China numa superpotência, os seus impulsos autoritários e os do partido isolam-na. A grande firewall atrasa o fluxo de ideias externas. A política de Covid-Zero restringiu o movimento dentro e fora do país (…). Uma China menos ligada será menos dinâmica e criativa. E o governo está a agravar o isolamento da China, tornando-a menos acolhedora para os estrangeiros viverem ou trabalharem”, resume a Economist.

No entanto, essa fraqueza da China “traz pouco conforto” ao mundo, até porque está provado que “potências mais fracas conseguem ser perigosas”, como de resto tem demonstrado a Rússia de Vladimir Putin. “Uma China mais isolada e introspetiva pode tornar-se ainda mais beligerante e nacionalista”, resume a publicação.