Amnésia domina os primeiros anos de vida

por Sandra Henriques - RTP
Há quem reconstrua memórias com o recurso a fotografias antigas e depois tenha a sensação de que se lembra das situações

As primeiras recordações estão associadas a acontecimentos com um significado emocional. Neste Dia Mundial da Criança, o site da RTP foi ao encontro de um especialista e de pessoas em diferentes etapas da vida para perceber o que é a amnésia infantil e que efeitos tem sobre a memorização de acontecimentos.

João e Ricardo são irmãos. O primeiro tem seis anos e o outro 12. Há muitos episódios destas curtas vidas que foram vividos em comum, mas aquilo que recordam é substancialmente diferente.

Basta uma conversa com ambos para perceber que as recordações mais nítidas de João datam de quando tinha quatro anos. Nessa altura costumava ver um canal televisivo, que agora diz ser “para bebés”. As brincadeiras que fazia com o mano também pertencem à história e nem sequer as consegue descrever ou nomear.

É Ricardo quem segreda ao ouvido do irmão duas traquinices mais antigas. Quando tinha cerca de dois anos, João aproveitou um momento de distração do pai para entornar um copo de uísque para dentro de um aquário de peixes. Só consegue contar o episódio com a ajuda do irmão mais velho, e de forma parcial.



Ricardo recorda também outro episódio de quando João tinha cerca de dois anos. Entrou num elevador sozinho e desceu até à cave do prédio.

Fotos: Sandra Henriques/RTP


Curioso é que a versão dos factos recordada por Ricardo também não corresponde à realidade descrita posteriormente pela mãe.

Maria recorda a aflição de não saberem para que andar tinha ido João e de terem que andar à procura da criança até a encontrarem na cave a chorar. Hoje com seis anos, João não se lembra sequer deste episódio.

Chave está no cérebro

Basta uma simples pesquisa sobre este tema na internet para perceber que há várias teorias sobre a amnésia infantil. Mas afinal, em que consiste este conceito?

“Quando nascemos a memória está pronta, só que não está sintonizada com todo o resto das partes orgânicas do cérebro. Não havendo essa sintonia, tudo o que podia ser retido, não estando sintónico, não consegue ser retido. Pode ser pontualmente, mas não há uma memória completa.”

A explicação é dada ao site da RTP pelo professor auxiliar convidado do Departamento de Psicologia da Universidade de Évora Nuno Colaço.

“Só por volta dos dois anos é que o nosso cérebro começa a estar sintónico e consegue memorizar as coisas como um todo. Mas depois temos a questão de que só memorizamos as coisas que têm significado para nós”, acrescenta.

O psicólogo clínico sublinha que a repetição poderá ter um papel importante para a memorização, embora o fator determinante e quase exclusivo seja o peso emocional que a criança atribui à situação.

Foto cedida por Nuno Colaço


Confrontado com algumas teorias que apontam a barreira dos três anos ou até dos sete, Nuno Colaço responde que “a sintonia da memória com as outras áreas cerebrais dá-se a partir dos dois anos, ou seja, é dado um significado às coisas para que depois essa informação possa ser passada para outras áreas cerebrais e ser utilizada, como a aprendizagem, a linguagem, e uma quantidade de aspetos do nosso funcionamento cerebral e cognitivo”.

“Do ponto de vista afetivo, com certeza que se houver acontecimentos significativos pela intensidade ou pela repetição, e que saiam do percurso normal do desenvolvimento, eles serão memorizados. E se não houver acontecimentos significativos eles também podem passar completamente desapercebidos e só começarem a ser evocados a partir dos três anos. Quanto aos sete anos, é um bocado tarde”, defende.

Primeiras memórias no infantário

Teresa Simões tem hoje 28 anos. As recordações mais antigas remontam ao tempo do jardim de infância: o recreio, as cores, os copos de plástico onde bebia, o calor. Ainda assim, são pequenos aspetos dispersos do dia a dia.

Filha de mãe alemã e pai português, Teresa aponta também o calor como um dos elementos de que se recorda de uma viagem que fez com eles à Tunísia quando tinha cerca de dez anos.

Foto cedida por Teresa Simões


Para além da abundância de comida que existia no hotel tunisino, Teresa recupera outra experiência marcante dessa viagem. Andou “de catamarã, aqueles barcos que não têm um fundo, que têm uma espécie de rede e duas bóias”. “Estava um pouco assustada, porque ia a uma velocidade muito grande e via-se a água por baixo a passar.”

O psicólogo da Universidade de Évora destaca o vínculo emocional associado à memorização de eventos da vida. Em relação ao esquecimento de outros episódios, Nuno Colaço considera que não há uma explicação.

“Dentro do ponto de vista orgânico, a não ser que existam patologias que afetem o cérebro da criança, não há nenhuma justificação para a amnésia infantil. Não havendo nenhum traumatismo, nenhum acidente, nenhuma patologia que afete o cérebro, não há”.

“Há é do ponto de vista afetivo a afetação dessas memórias, ou seja, situações que são para a criança muito difíceis de entender, é preferível guardá-las num baú, escondê-las e afastá-las da nossa memória para conseguirmos continuar o nosso desenvolvimento e conseguirmos lidar com a ausência de significado”.

O docente da Universidade de Évora compara a amnésia infantil a uma borracha que apaga o que a criança considera ser muito negativo. No caso de se memorizar um facto deste teor, a justificação é que é preciso guardar na memória essa situação negativa para se saber lidar com momentos semelhantes no futuro.

Foto: Sandra Henriques/RTP


Em relação ao facto de algumas pessoas alegarem terem recordações de quando tinham apenas meses de vida, Nuno Colaço rebate este argumento.

“Muitas dessas memórias são implantadas pela repetição das histórias que vamos ouvindo. Ou pela visualização de fotografias. Apesar de a memória nessa altura já estar a funcionar, ela não tem a capacidade de conjugar essa informação e de permitir essas imagens que são as memórias”, assegura.

Doença ainda na memória quase 80 anos depois

O padrão descrito pelo psicólogo parece confirmar-se num encontro com dois antigos colegas. Fernando Marques, de 80 anos, e Elder Récio, de 85 anos, têm em comum o facto de uma doença ser a primeira recordação que retêm das suas respetivas vidas.

“A primeira memória que nunca deixei de recordar foi quando tinha cinco anos e adoeci”, conta Fernando. “A minha mãe deu-me uma carroça de madeira pequenina. Eu estive na cama e assim passei o tempo até melhorar” do que recorda ter sido uma primeira manifestação de reumático articular agudo.

Ao lado do amigo, Elder recua 78 anos para descrever um momento em que esteve quase a morrer: “Na altura havia a pneumónica e todos os miúdos apanhavam, era raro aquele que ficava. Eu tinha outros irmãos, já tinham morrido três”.

Foto: Sandra Henriques/RTP

Elder afirma que foi curado graças aos cuidados do pai, que usou papas quentes de linhaça no peito e nas costas da criança. “Como o meu pai era engenheiro de máquinas, falando com o médico que era amigo dele, pensou que era preciso que aquele líquido de dentro da pleura se evaporasse para o miúdo se salvar – e assim me salvei”.

Após uma semana deste tratamento, o menino de sete anos demorou “dois ou três meses” a recuperar dos efeitos da elevada temperatura das papas de linhaça. “Fiquei sem pele. Era tudo em carne viva”, descreve.

Amnésia infantil a partir dos dois anos

Segundo o psicólogo clínico Nuno Colaço, o processo de aprendizagem da memória também vai evoluindo à medida que se treinam outras estratégias de memorização.

“Se a amnésia infantil acontecer por se ter dado um evento traumático em determinada altura, também a amnésia infantil vai evoluindo mais. É um efeito bola de neve. Se não acontecer eventos traumáticos, eu não vou ter que reprimir, nem esquecer nenhum acontecimento, por isso a memória vai aprendendo positivamente por retro-informação”.

“Se eu tiver acontecimentos traumáticos que me obrigam a ter que esquecer aquela informação mais eventos eu esqueço, mais vazia fica a memória”, advoga.

Doutorado em Neuropsicologia Clínica pela Universidade de Salamanca, Nuno Colaço assinala que “o facto de as crianças com sete a dez anos não se lembrarem dos acontecimentos a partir dos dois, três anos tem a ver com isso”.

“Antes dos dois anos não se chama amnésia infantil. Supostamente não temos que nos lembrar de coisas que o nosso cérebro não está preparado para memorizar, por isso não podemos falar de amnésia infantil até aos dois anos, porque até aos dois anos não há capacidade de reter informações.”

Foto: Sandra Henriques/RTP

Nuno Colaço frisa que a amnésia infantil pode ocorrer a partir dos dois anos e até à idade adulta. “Até jovens adultos e muitos adolescentes têm dificuldades em trazer episódios antes de entrarem para a escola, outros durante o período da escola, por aí fora. É um esquecimento parcial e condicionado pelos acontecimentos afetivos.”

“Não tem a ver com o facto de ser habitual as crianças e os jovens esquecerem-se, mas sim com esta seleção de informação. É uma amnésia seletiva que vai escolher determinados episódios sem componentes orgânicas, cerebrais, mas com uma componente afetiva que vai criar e condicionar”.

É assim que se explicam as memórias diferentes entre dois irmãos. “Posso ter uma recordação de um acontecimento que foi vivido pelo meu irmão exatamente da mesma maneira em idades diferentes, ou até com a mesma idade, sendo perspetivas diferentes”.

O psicólogo dá outro exemplo. “Quando estamos a conversar com amigos, irmãos, vizinhos, e eles nos contam determinadas histórias de que nós já não nos lembrávamos que sabíamos, de repente recordamo-nos. Afetivamente não estão investidas, nem tão positivamente, nem tão negativamente para poderem ser trazidas ao de cima”.

Uma forma simplificada de esclarecer esta situação é feita com recurso a uma imagem. “Muitas das más memórias que depois são apagadas vão para um baú onde estão também as coisas boas. Elas pertencem ao mesmo sítio e muitas das vezes quando queremos afastar as coisas menos boas também estamos a afastar as boas”.

Isto significa que há um preço a pagar pela eliminação de acontecimentos negativos da memória. Tanto se apagam eventos considerados maus, como as boas recordações.


Ouça aqui a versão rádio desta reportagem:

Foto: Sandra Henriques/RTP

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