Câmara de Lisboa vasculha lixo para multar moradores, mas multas podem ser ilegais
Lisboa, 08 dez (Lusa) -- A Câmara de Lisboa anda a vasculhar lixo colocado fora dos contentores para descobrir o proprietário e multá-lo, uma medida que especialistas dizem poder ser ilegal por não fazer prova da infração e violar a esfera privada.
Em menos de um ano foram instaurados em Lisboa 112 processos de contraordenação por colocação de lixo na via pública. Alguns dos multados pagam sem questionar, embora se sintam indignados e duvidem do método utilizado pela autarquia, mas há também quem conteste a decisão.
No total, a autarquia já recebeu pelo menos 921,5 euros de multas que poderão ser ilegais.
Na opinião do professor catedrático Menezes Leitão, a Câmara Municipal de Lisboa está a cometer um crime, pois viola a Constituição e o Código de Processo Penal ao vasculhar o lixo alheio.
"Na minha opinião, é nula uma prova consistente na recolha de correspondência existente num saco de lixo, porque obtida através de uma abusiva intromissão na vida privada, o que é claramente proibido" por lei.
O advogado sublinha que "um saco de lixo deixado por uma pessoa é algo que faz parte da sua esfera privada, não podendo ser por isso vasculhado apenas para fundamentar processos de contraordenação por irregularidade na colocação desse lixo".
Além disso, sustentou, desta ação não resulta sequer a certeza de que o proprietário do lixo é o infrator.
"É evidente que a descoberta de correspondência endereçada no lixo não constitui qualquer meio de prova em relação ao efetivo autor da contraordenação, não sendo o destinatário da correspondência em caso algum responsável pela colocação do lixo na rua por terceiros".
Um dos casos relatados à Lusa foi o de uma moradora que recebeu em casa uma coima para pagar devido à colocação - pela sua empregada - de um saco com papéis junto a um ecoponto.
No auto da ocorrência pode ler-se que se "verificou que a arguida colocara na via pública resíduos sólidos diversos, em equipamento diferente do distribuído ou indicado pela Câmara Municipal de Lisboa" e que "pela análise dos resíduos foi possível identificar a sua proveniência".
Neste caso foi um envelope de correspondência que permitiu aos funcionários da autarquia chegar à proprietária do lixo, que na verdade não foi a infratora.
Apesar disso, pagou a coima mínima prevista, de 24,25 euros, embora esta possa chegar a um valor máximo de 97 euros.
Um outro caso semelhante passou-se com um munícipe residente em Benfica, a quem foi investigado o lixo colocado na via pública pela porteira do prédio, embora neste caso o "arguido" tenha respondido à câmara que só pagaria a multa se provassem que fora ele o infrator.
Depois de contestar a multa, não voltou a ser contactado pela autarquia.
Segundo o departamento de contraordenações da câmara municipal, dos 112 processos instaurados por infração ao Regulamento de Resíduos Sólidos da Cidade de Lisboa, 94 já deram lugar à notificação dos arguidos, 38 dos quais pagaram voluntariamente a coima.
De acordo com os dados a que a Lusa teve acesso, apenas cinco dos 94 munícipes notificados apresentaram defesa, estando os restantes ainda a aguardar prazo.
Questionada sobre como se prova que o nome que consta de um documento encontrado no lixo é do seu proprietário e autor da infração, a autarquia respondeu que a prova "é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente".
Contudo, Menezes Leitão alega que "uma carta endereçada não constitui, segundo as regras da experiência, prova suficiente" e que "apenas uma prova que demonstre quem é o efetivo autor dessa conduta é que permitirá sustentar uma condenação por esse facto".
O especialista afirma mesmo que a aplicação de coimas com base em meios de prova dessa natureza lhe parece constituir "uma manifesta ilegalidade, contra a qual os cidadãos podem e devem reagir nos tribunais".