Carlos Gaivoto: "Acho absurdo gastar-se 500 milhões num quilómetro e meio para ligar o Rato ao Cais do Sodré"

Crítico da dispersão urbana e dos investimentos em BRT e no Metro de Lisboa, Carlos Gaivoto defende que a estratégia de ordenamento do território e de mobilidade siga outro rumo: assume um modelo de maior proximidade no espaço urbano para reduzir distâncias no dia-a-dia.

A rede de elétricos seria fundamental para esse objetivo, aponta Carlos Gaivoto. Trabalhou durante 48 anos na Carris, empresa de autocarros e elétricos em Lisboa, tendo assumido entre 2009 e 2011 a liderança da extinta Autoridade Metropolitana dos Transportes de Lisboa.

Depois de se reformar no ano passado, tem dedicado mais tempo à visão inspirada em exemplos internacionais que propõe para a área metropolitana e para a capital: no caso de Lisboa, defende a existência de um modelo de cinco distritos urbanos (ou cinco cidades, como vai ler na entrevista), com uma forte aposta no cruzamento da ferrovia ligeira e da pesada. 
 Excerto da entrevista de Carlos Gaivoto à Antena 1

Pergunta: Durante três anos liderou a Autoridade Metropolitana dos Transportes de Lisboa, que teve como sucessora os Transportes Metropolitanos de Lisboa (TML). Olhando para a evolução desta autoridade nos últimos anos, sente que também mudou a visão estratégica que existe na área metropolitana de Lisboa em relação aos transportes ou não mudou muito?

Resposta: O sistema de transporte ou o sistema de acessibilidade na área metropolitana de Lisboa tem tido alguma evolução. Os resultados ainda estão para se compreender melhor, uma vez que os problemas de tempos gastos, energia dispendida, emissões e externalidades negativas agravam-se. Por outro lado, o território da área metropolitana de Lisboa, sendo tão disperso, tem custos associados elevados, e o que falta neste momento é precisamente ter uma estratégia para responder a isso.

Aquilo que era nos anos 70 uma repartição modal de 70% para o transporte coletivo e 30% para o transporte individual hoje é precisamente o inverso. O transporte coletivo nem sequer chega a ter 30% das deslocações motorizadas. (...)

Ora, a cobertura que havia, suponhamos no período Fordista ou no período Keynesiano de evolução do espaço urbano, eram deslocações muito concentradas à volta dos modos pesados e dos modos semi-pesados. O modo ferroviário, tanto o comboio como o elétrico, serviam perfeitamente até metade do século passado. Só começamos a ter metro no final da década de 50. Estas evoluções das redes ferroviárias têm algumas limitações e hoje cada vez mais fazem-se opções erradas, porque também temos que saber gerir e planear os custos, as redes e os serviços.

Isto leva-nos ao problema de que cidade é que queremos, ou que tipo de cidades podemos constituir dentro da área metropolitana. Os municípios não podem continuar a depender só da centralidade de Lisboa.

Seria conseguir ter dentro da área metropolitana cidades com diversas especialidades? 

No período Fordista tínhamos o modelo monocêntrico e no período Keynesiano passámos ao policêntrico. Neste período neoliberal dos últimos 40 anos, a desregulação foi tal que passou à dispersão urbana. Estes custos de dispersão urbana, que são os custos residenciais, de externalidade, são os custos escondidos nos orçamentos municipais e também são os custos das operações das redes de transportes coletivos. 

Todos eles [os custos de dispersão urbana] se agravaram, o que significa que nós temos que ter uma abordagem a partir do modelo de ordenamento de território que nós queremos evoluir. É aí que eu, antes de me reformar, deixei um exemplo para Lisboa, em como é que se poderia olhar para o território do conselho e formular cinco cidades cá dentro. Chamei de Urban Ecologic Transit Village.

E que cinco cidades são estas? Como é que dividiríamos Lisboa nessas cinco unidades?

Eu só vou-lhe dar aqui um exemplo de como é que se pode estabelecer essa definição. No século XIX, o município de Belém era um município. (...) Mas se calhar, concentrando, Belém, Ajuda, São Francisco Xavier e Alcântara, temos uma cidade ali, que antigamente era separada pelo Vale de Alcântara. Mas aquelas funcionalidades que entretanto foram crescendo - hospitais, universidades, centros de saúde, residência, emprego - podem constituir uma cidade. 

Pode-se estabelecer uma rede de proximidade utilizando a que já lá existe, nomeadamente a rede de elétricos, até requalificando, recuperando, expandindo e introduzindo novas tecnologias como o tramway moderno, como o LRT (Light Rail Transit) ou como o tram-train

Essa rede de elétricos em Lisboa está esgotada ou acha que ainda tem potencial para crescer aqui na cidade?

A rede de tramway para Lisboa é uma rede muito maior do que aquela que está atualmente em exploração. Chegámos na Carris a ter até 450 elétricos. Hoje estamos reduzidos a 45 mais 15. Isto significa repensar, de facto, cada uma destas cidades e devolver ao cidadão a palavra, ou seja, da forma como quer viver na sua rua, no seu bairro, na sua localidade que conhece.

A ideia é que cada uma tenha uma vida própria, uma maior proximidade, mas que também consiga relacionar-se com as outras?

Claro, relaciona-se com as outras. Se nós falamos tanto em neutralidade carbónica, queremos, com certeza, reduzir esta dependência do automóvel.

Deixo aqui uma pequena provocação. Não considera que reduzir estas escalas é um pouco utópico? O que está a acontecer, parece-me é que estamos a aumentar esta escala, porque estamos a aumentar as distância casa-trabalho, e também, por exemplo, quando queremos ir a um centro comercial distante ou outros locais.

Estamos a mitigar o tráfego rodoviário e desperdícios, e estamos a eliminar desperdícios de má aplicação de dinheiros públicos. Por exemplo, se hoje a rede de metro tem um custo de quilómetro 10 vezes mais que uma rede de tramway, LRT, há que repensar isso, não é? Quando se gasta 500 milhões num quilómetro e meio para ligar o Rato ao Cais do Sodré, acho absurdo. 

Considera que foi um erro a redução que Lisboa foi tendo dos elétricos nas últimas décadas?

Foi. Mas não foi só Lisboa, isso é uma tendência geral que aconteceu também em França, aconteceu noutros países.

Que razões vê para Lisboa ter perdido?

"São razões de várias ordens, mas acho que tem muito a ver com o modelo de expansão da cidade, que quis alargar a cidade ao território do concelho, a outras áreas com esta lógica de reprodução do sistema capitalista. O imobiliário tem servido como base neste valor de troca para reproduzir-se o sistema." 

É interessante perceber como é que as redes evoluíram, umas de forma assimétrica. No caso de tramway foi reduzido e eliminado, no caso do metro foi expandido e foram gastas fortunas. Eu fiz uma vez um levantamento entre 1985 e 2005 e já se andava à volta de 25 mil milhões de euros. Se tivesse sido feito com outro planeamento estratégico, com outras redes que na altura da década de 80 foram estudadas, se calhar hoje teríamos uma cobertura territorial diferente do que é o transporte quotidiano em sítio próprio em modo ferroviário.

"Eu posso fazer aquilo que os alemães fizeram em Karlsruhe, que é tornar o sistema interoperável. Eu posso pôr um elétrico na rede dos comboios, fazer ligações, por exemplo, Lisboa-Torres Vedras, Lisboa-Caldas da Rainha, Lisboa-Setúbal, com o modo de tramway que passa a ser tram-train, que é um modo de capacidade intermédia."

A chave seria um cruzamento entre a ferrovia ligeira e a ferrovia pesada?

Sim. Por exemplo, os franceses agora têm um programa fantástico para as 28 metrópoles que ainda têm em França, que se chama Services Express Régionaux Métropolitains (SERM). (...)

Em 2019, a SNCF [empresa ferroviária pública francesa] fez um esquema diretor que está a ser aplicado nas 28 metrópoles. Criaram com os modos pesados e com o tram-train, estão a controlar o crescimento dessas metrópoles. Aqui o que se propõe? Eixos BRT, ligações, fluxos, sem qualquer estratégia de mitigar, por exemplo, este modelo de ordenamento de território que existe, um modelo de desperdício de dinheiros públicos.

Considera que o BRT está a sobrepor-se a essa interligação da ferrovia ligeira com a pesada? Está a ser uma pedra no sapato?

Está numa lógica diferente, está na lógica de dar cobertura a este modelo de território que existe, que é o modelo do desperdício. Com o sistema ferroviário, nós poderemos reverter tudo isto e poderemos mitigar estes custos de dispersão urbana.

Isto é uma estratégia que obedece a uma outra organização institucional, que é o que nos faz falta aqui, que são as também chamadas autoridades de urbanismo. O político faz o disparate todo que tem sido feito e propõe as coisas mais mirabolantes e faraónicas, como o novo aeroporto, a terceira travessia e a linha de alta velocidade Lisboa-Porto, quando se calhar as nossas linhas de alta velocidade prioritárias têm a ver mais com a ligação a Espanha e à Europa.

(Entrevista publicada a 18 julho e atualizada no dia 28 de julho, para corrigir o levantamento referido por Carlos Gaivoto sobre o metro de Lisboa - levantamento feito de 1985 a 2005)