Ela assumiu ser a favor da despenalização do aborto e recebeu e-mails de espetadores a avisar que iam deixar de gostar dela e de ver os seus programas porque a apresentadora era "a favor de matar crianças". Ela partiu para países em desenvolvimento e houve quem não compreendesse "porque é que precisava de ir para tão longe, quando em Portugal há tanto sofrimento". Ela assume ser a favor da eutanásia porque "não faz sentido viver aqui sem querer viver aqui".
O caminho continua a fazer sentido, diz Catarina. Mas só em conjunto. Porque o estrelato em televisão pode apagar o resto: "Há muita gente solitária nesta área. E não vale um caracol nós criarmos um império, criarmos uma carreira, sem pensarmos nos outros". A vida, as escolhas de carreira, os preconceitos e os conselhos da sua vida. Catarina Furtado em entrevista à RTP.
"Faz-me confusão o egoísmo de quem diz: 'Mas nós aqui também sofremos'"
Tu dizes: "Não se nasce pobre. Está-se pobre". Isto é ingenuidade tua ou é esperança?
É factual. Pode ter algo de esperança, mas não tem nada de ingenuidade. A pobreza não vem no ADN de ninguém. Tu não nasces pobre. Nasces com um peso, com um tamanho, com uma cor do cabelo, mas não tens a tua situação económica em lado nenhum. Constatei isto no terreno: de facto, ricos ou pobres, somos todos iguais. Alguns tiveram a possibilidade de crescer economicamente na vida, ou por herança ou por trabalho, mas a verdade é que isso não é uma fatalidade para o resto da vida. O que nós temos que fazer é lutar para que toda a gente tenha acesso às mesmas oportunidades.
Depois de dez anos de Príncipes do Nada (esta é a 4ª série), ficaste com mais esperança no mundo ou mais conformada à ideia de que vão haver sempre diferenças?
Perdi alguma ingenuidade porque percebi os meandros em que as coisas acontecem. O peso do poder político e do poder económico. O peso da ganância, da ambição e do umbiguismo de alguns, que resulta na falta de acesso a cuidados de saúde e de educação para aquelas pessoas. Não fiquei conformada -- fiquei mais esclarecida e continuo crente no ser humano. Quanto mais avanço pelo terreno, mais percebo que há muitas pessoas e muitas organizações sérias a quererem contrariar as estatísticas. Há pessoas que no dia a dia sobrevivem fazendo esforços que eu não imagino.
O que impede o desenvolvimento nos países menos desenvolvidos é o mesmo que impede o desenvolvimento nos países mais desenvolvidos? As forças são as mesmas?
Eu diria que sim. Depois há questões específicas de cada um dos países, nomeadamente a questão geográfica. Mas, de uma forma geral, o que impede o desenvolvimento tem a ver com o poder político. O não cumprimento do que é prometido, do que foi assinado, dos tratados internacionais. Muito do que se está a passar no mundo é porque não há vontade política. Mas a sociedade civil também tem muito poder: não só as organizações não governamentais, mas todos nós, independentemente da profissão que tenhamos. Nós não acreditamos piamente no poder que temos. As nossas vozes contam.
Contam como?
Pressionando os governos, agitando, fazendo manifestações, assinanando petições... Refilar, queixar, propor. As pessoas perguntam muito: 'Ah, é só a questão do dinheiro, angariar financiamento...' Não, não é só isso. Nós temos um poder muito maior. Criar associações, ler, informar-se sobre as questões. A ferramenta da informação dá-nos a possibilidade de querermos agir ou não querermos agir. A partir do momento em que tu sabes que há albinos a morrer, fruto exclusivamente de uma crença que dita que os ossos dos albinos são ricos em prosperidade, que dão sorte e riqueza, tu enquanto cidadã portuguesa que estás aqui, onde os albinos são aparentemente bem tratados, tens que te manifestar. Porque os direitos dos albinos não são reconhecidos como os teus, enquanto cidadã que vives num país desenvolvido. Tu tens uma obrigação extra.
Mas às vezes essas realidades estão longe. Sudão do Sul, Guiné-Bissau... Achas que essa distância também dificulta a ação das pessoas?
A mim faz-me muita confusão, e posso ser criticada por isso. Podem achar que é arrogante... Mas vou-te contar uma coisa muito particular. Hoje (quarta-feira passada) a minha enteada Maria partiu para uma missão num campo de refugiados na Grécia. Vai ficar um mês com uma organização não governamental grega. Como nós sabemos, as coisas estão terríveis lá, o frio é horroroso, não há um refugiado que não tenha uma tosse, uma constipação, uma pneumonia. É desumano. Eu combinei com a Maria que todos os dias ela vai por um post no meu Instagram a contar o que se está a passar e pus no meu Facebook e no meu Instagram a partida da Maria. Eu tive comentários de pessoas a dizer "Mas não precisa de ir para tão longe! Aqui também é necessário." Ora isto é muito grave. É muito grave quando alguém tem a necessidade de dizer: "Atenção, nós aqui também temos pessoas a sofrer". Claro que temos. Claro que toda a gente devia atuar para tentar melhorar as condições do seu vizinho. Mas ninguém imagina o que é ser refugiado, ter fugido do seu país, trazer os filhos sem saber se conseguem chegar vivos ou não. Eles tinham a mesma vida que nós temos. E estão ali com os filhos, num sítio gelado, com os filhos a morrer de frio e de problemas graves. E eu não consigo perceber como é que as pessoas são tão egoístas e têm tantas fronteiras dentro da sua própria casa. Isso faz-me muita confusão.
Tu também ouviste essas críticas, certo?
Ainda hoje. Eu estou com a nova série dos Príncipes do Nada e sei que há muita gente que diz: "Mas porque é que foi para Moçambique, Guiné, São Tomé, Guiné-Bissau"... Porquê?
Porque é que não foi a bairros desfavorecidos em Portugal?
E eu também faço esse trabalho, com a minha associação Corações com Coroa. Não só em Portugal, mas sobretudo em Portugal, na área da igualdade de género. Mas o facto de eu ir lá fora e reportar não faz com que eu tenha menos preocupação em relação às pessoas que sofrem no meu país. Isso é ridículo. É como quando se tem quatro filhos: gosta-se mais de um do que de outro? Isso não faz sentido. A verdade é que o nível de sofrimento da maior parte dos projetos a que eu vou e a que assisto não se compara. É evidente que sofrer é sofrer, ponto final. Não é justo comparar sofrimentos. Mas a verdade é que as condições são muito diferentes.
É como se estivesses a ser criticada por fazer?
Sim, mas isso a mim não me belisca nada, sabes? O que me preocupa é que as pessoas pensem assim. Eu sou muito menos importante do que aquilo que eu vejo. Criticarem-me não é uma coisa que me afete. Só fico triste porque a mentalidade ainda é assim, e eu queria muito que projetos como os Príncipes do Nada contribuíssem para ajudar as pessoas a refletir sobre a sua posição no mundo.
O lado cool das redes sociais e o "ser a favor de matar crianças"
Por outro lado, houve pessoas que mudaram de vida por causa dos Príncipes do Nada, certo?
Sim, tu não imaginas a quantidade de e-mails que eu recebo. Juro que fico mesmo muito comovida. As pessoas dizem que se inspiram. Mas eu sou apenas o veículo. As pessoas não se inspiraram em mim, mas foram beber à força daquelas pessoas que eu mostro. Mais do que se terem inspirado para irem fazer fazer um mês de voluntariado, mudar a sua maneira de pensar.
Eu optei por fazer este tipo de trabalho. Porque pude, claro. Sou uma privilegiada. Mas é uma necessidade minha. Mesmo que eu fizesse outra coisa na vida, sei que estaria a fazer qualquer coisa para dar visibilidade a estas pessoas. Nós achamos que sabemos tudo... Nesta correria dos dias de hoje, é tudo tão rápido... É só frases nas redes sociais, e aprofundar o conteúdo é uma coisa que já não temos tempo. É preciso ler para percebermos que as nossas mentalidades às vezes são muito superficiais.
Por falar em redes sociais. Hoje em dia há muitas mulheres e homens que fazem posts no Instagram sobre temáticas de Direitos Humanos. É como se hoje em dia já fosse cool falar sobre Direitos Humanos. O que é que te apraz dizer sobre isso?
Olha, aprendi que é melhor fazer-se isso do que não se fazer nada. Não acho que seja a melhor abordagem porque é pouco aprofundado, mas já é uma conquista.
Mas reparas nisso?
Reparo nisso. Mas também reparo que há imensa gente a fazer voluntariado para ficar nos currículos, porque hoje em dia as escolas e as universidades pedem isso, há muita gente a fazer voluntariado para ficar com um lugar no céu, porque é o lado da igreja e o lado da crença. E eu não estou a criticar, desde que depois as coisas sejam feitas não de uma perspetiva de cima para baixo mas numa perspetiva de igualdade. Porque aquilo que às vezes me incomoda é a caridade. O que me parece é que o enquadramento dos direitos humanos tem de ser muito bem feito.
"Há imensa gente a fazer voluntariado só para ficar no currículo, ou para irem para o céu, por causa da Igreja"
E é essa abordagem simplista que acontece quando se põe uma fotografia no Facebook ou no Instagram?
É uma abordagem pouco fundamentada.
E isso acontece hoje com muitas figuras públicas?
Acho que é melhor preocuparem-se com isso do que só se preocuparem com a parte de fitness. O que é uma canseira! (risos) Eu que não faço quase nada, e devia fazer, fico cansada só de ver os posts. Mas são opções, e são necessidades exigidas sobretudo às mulheres, porque os dias de hoje são muito cruéis. As mulheres têm que estar sempre em forma, com abdominais, sempre fantásticas. E isso é muito cansativo. Mas é melhor que algumas figuras públicas vão pelo menos intercalando os temas dos posts. Depois é preciso ver a coerência e o que elas fazem na prática. As pessoas não têm de fazer, atenção. Eu não sou a Madre Teresa de Calcutá. Tenho imensos defeitos. Mas é preciso coerência depois. É preciso que os passos correspondam aos posts.
"Mandaram-me e-mails a dizer: 'Já não gosto mais de si porque a Catarina é a favor de matar crianças'"
Tu já foste muito criticada pelas tuas opiniões. Quando disseste que eras a favor da despenalização do aborto, recebeste alguns e-mails pouco simpáticos.
Sim. Na altura li muito, falei com muitas pessoas, e assumi a minha posição. E para mim era quase pré-histórico uma mulher ser presa por fazer um aborto. Com todo o respeito que eu tenho por todas as pessoas que acham que o aborto não deve acontecer.
E tu és católica.
Sou. E eu acho que um aborto não devia acontecer nunca. Era maravilhoso que o aborto não tivesse de acontecer. Perante a realidade de: aquela mulher engravidou e não pode, não tem condições, não quer, é impossível viabilizar a ideia de ter aquele bebé, ela não devia nunca ser presa por isso. O que nós temos é de criar todas as condições para que ela não chegue a esse ponto. E daí o investimento no planeamento familiar e na saúde sexual e reprodutiva. Na altura, a ignorância levou a que muitas pessoas me escrevessem a dizer que já não gostavam mais de mim, que já não iam ver os meus programas, porque eu era a favor de matar crianças. Eu? Como? Receberes cartas assim, quando tens 20 e tal anos, é muito violento. Hoje em dia eu sei fazer o discernimento. Mas na altura custou-me.
"Há muita gente solitária nesta área"
Tu tens 27 anos de carreira. Achas que tens uma carreira de sucesso?
Acho que o sucesso é uma palavra perigosa. Ficaria aqui uma tarde inteira contigo a debruçar-me sobre o significado de sucesso. Acho que estes 27 anos de trabalho árduo são muito versáteis, na medida em que abraçei projetos muito diferentes. São muito sérios, na medida em que os abracei com toda a seriedade e profissionalismo. São muito rigorosos. São de grande partilha, porque tenho sempre equipas que gostam muito de mim porque eu gosto muito delas. E são projetos com os quais me identifico. Nunca fiz nada que me tenha envergonhado. São tudo projetos que posso um dia mostrar aos meus filhos.
Costumas olhar muito para trás?
Não. Só recordo os programas quando me falam deles. E recordo com imensa alegria e prazer. Não com saudade, porque acho que passaram. Não sou nada saudosita.
Nunca houve nada que tivesses olhado e pensado: 'E se eu tivesse feito isto? Hoje se calhar estaria mais realizada'
Não, nada, nunca. Antes pelo contrário. Penso sempre: ainda bem que não aceitei aquela proposta. Ainda bem que não tive uma ambição de parecer não sei o quê. Ainda bem que não tive mais olhos que barriga. Não me sinto realizada, sinto que tenho muita coisa para fazer ainda. Mas tudo o que eu fiz aconchega-me a alma. E isso talvez tenha sido um dos segredos para estar tão bem. Psicologicamente bem. E com amigos, não estou solitária. Porque há muita gente, nesta área, e não estou a falar só em Portugal, que são pessoas sozinhas...
Quando as luzes se apagam..
Não, não. Mesmo quando as luzes se acendem. São trajetos sozinhos, solitários. Para mim só faz sentido porque não é nada sozinho. É tudo em conjunto. Isto não vale um caracol se não for partilhado. Não vale um caracol nós criarmos um império, criarmos uma carreira ou fazermos o nosso trajeto sem pensarmos nos outros.
"Sou a favor da eutanásia. Não faz sentido viver aqui sem querer viver aqui"
Tens 44 anos. Daqui a 40 anos, como é que queres estar?
Será que nessa altura ainda há bengalas? (risos) Ou haverá uma coisa eletrónica em que a pessoa já anda automaticamente? Bom, espero estar cá, porque eu adoro viver. Mas se tiver muitas mazelas nos ossos -- porque fui bailarina clássica e elas começam a dar alguns sinais -- já não quero. Não quero ser nenhum peso para os meus filhos, nem para os meus enteados que são como filhos.
Para ti a eutanásia...
Eu sou a favor. Mas espera aí, não estou a pensar no meu caso ainda... (risos)
Não, claro. Mas, por princípio, és a favor.
Claro que sou a favor (pausa). É uma questão muito complexa. Há testemunhos muito válidos de pessoas que se atiraram para os carris de um comboio para se suicidarem, não se suicidaram, ficaram tetraplégicos e depois quiseram continuar a viver. E isto faz-te pensar. No entanto, uma tentativa de suicídio não é a mesma coisa que um pedido de eutanásia. E não podemos por tudo no mesmo saco. É com pinças que falo nisto porque não sou psicóloga, nem psiquiatra, nem médica. Mas o que eu acho é que têm de ser dados todos os passos para que a pessoa tenha essa opção. Não faz sentido viver aqui sem querer viver aqui.
Que conselho é que te deram que tu achas importante dar às pessoas?
O meu pai deu-me um conselho que é: "Querer ser melhor todos os dias". Isto para os mais novos é mesmo importante: para sermos melhores todos os dias, temos de ter a humildade de saber em que estágio estamos da nossa vida. A humildade de dizer que não sabemos, a humildade de aprender com os mais velhos. E para isso é preciso queimar pestanas. É preciso querer saber mais do que aquilo que parece que se sabe. Este é o meu conselho. Não se consegue construir coisas sólidas e sustentáveis sem humildade. E o meu pai sempre me disse: saber mais, saber mais, saber mais. Por isso é que ele dá muito poucos elogios. É a parte negativa. Ao longo de uma carreira, é bom de vez em quando receber elogios (risos)