Contrabando e conspiração no consulado português em Munique

por RTP

Muito antes de Jürgen Adolff, suscitou engulhos nas relações luso-alemãs um outro cônsul honorário que representava interesses comerciais portugueses em Munique. Tratava-se de Wilhelm Schmidhuber, que exerceu o cargo de 1938 a 1942, em plena ditadura nazi. Foi preso nessa altura por envolvimento num caso de tráfico de divisas, exonerado das suas funções pelo Palácio das Necessidades, julgado por esse crime económico em tribunal alemão e condenado a quatro anos de prisão. Com muito mais sorte que os seus companheiros de tráfico, sobreviveu à guerra.

Schimdhuber era um industrial cervejeiro da Baviera que desde muito antes da guerra procurou teimosamente obter a representação consular de diversos países. Obteve primeiro, em 1924, a representação da Nicarágua, mas esta foi-lhe retirada em 1930 por o governo de Manágua verificar que ele, abusivamente, andava a intitular-se cônsul nicaraguense também em Leipzig. Em 1931, voltou a candidatar-se a um lugar de cônsul, desta feita do México. A nomeação chegou a parecer iminente, mas a Legação mexicana acabou por mudar ideias. Finalmente, em 1938, o "diplomata" crónico encontrou um país que havia de servir-lhe de amparo para o resto da sua vida nestas lides: Portugal.

Não se conhece bem o processo de decisão que levou as autoridades portuguesas a serem mais tolerantes do que a Nicarágua ou o México para com a má reputação, entretanto solidamente estabelecida, de Schmidhuber. O certo é que entre Dezembro de 1937 e Maio de 1938 a Legação portuguesa insistiu várias vezes em nomeá-lo e outras tantas vezes o Auswärtiges Amt manifestou reticências. Entretanto, também a chancelaria de Estado da Baviera desaconselhava a pessoa de Schmidhuber. Mas não houve objecção que demovesse a parte portuguesa e Schmidhuber acabou por ser nomeado.

O cônsul-espião

Por outro lado, Schmidhuber, que fizera a Primeira Grande Guerra nas fileiras da Luftwaffe, preocupava-se em evitar que a nova guerra viesse perturbar os seus prósperos negócios. Mobilizado novamente para a Luftwaffe na iminência do conflito, aos 41 anos, arranjou entretanto forma de ser aceite na Abwehr, o serviço de informações militar dirigido pelo almirante Wilhelm Canaris. Com esta segunda cobertura, não lhe foi difícil ser requisitado para tarefas mais "urgentes" e isentado de participar nas acções bélicas propriamente ditas. Isto não impediu que, em 1942, ele voltasse brevemente ao serviço da Luftwaffe para obter uma oportunidade de promoção a major.

O historiador Winfried Meyer, em cuja recente investigação Schmidhubeer desempenha um papel destacado, define-o politicamente como "monárquico e separatista bávaro", que é hostil ao nazismo principalmente pelos seus traços de "militarismo e hegemonismo prussiano". Karl Bartz, um investigador que trabalhou no imediato pós-guerra, cita igualmente o cônsul com a convicção de que "a luta não era apenas contra Hitler e o seu regime, mas também contra a arquitectura grã-prussiana do Estado".

Muito activo, Schmidhuber recrutou para a Abwehr o advogado Josef Müller, futuro chefe do governo da Baviera no pós-guerra. A respeito deste recrutamento Müller viria a recordar nas suas memórias que "[em 1939] tinha recebido através do cônsul dr. Wilhelm Schmidhuber, que mais tarde havia de desempenhar um papel trágico na minha vida, um convite misterioso: o almirante Canaris, chefe da espionagem militar alemã, tinha interesse em tomar contacto comigo".

Ambos, Müller e Schmidhuber haviam de deslocar-se ao Vaticano no final de 1939 e começo de 1940, com o objectivo de obterem de Pio XII uma intermediação entre a Alemanha e o bloco anglo-francês para pôr fim à guerra. Esta diligência fazia-se por iniciativa da Abwehr e inscrevia-se, não em qualquer diplomacia paralela combinável com o Auswärtiges Amt de Ribbentrop, e sim na conspiração anti-hitleriana de altas figuras militares. Pio XII acabou por não ter qualquer intervenção e as veleidades conspirativas ficaram para melhor ocasião.

O cônsul protegido por Canaris

A única acção que a débil teia conspirativa ainda foi capaz de empreender foi a de avisar os Aliados algum tempo mais tarde, no início de Maio de 1940, sobre a iminente invasão da Holanda pelos nazis. Um dos canais para fazer chegar essa informação aos Aliados foi o próprio Schmidhuber, que transmitiu ao Vaticano uma nota de Müller contendo o aviso. Nesse momento, o serviço de informações das SS interceptou a nota e esteve muito próximo de incriminar Schmidhuber que, sabendo-se vigiado, chegou a ter as malas feitas para fugir. Salvou-o uma intervenção pessoal de Canaris, que encarregou da investigação sobre a nota ... Joseph Müller.

Mais adiante, Canaris voltaria a intervir pessoalmente a favor do cônsul de Portugal, noemadamente em Dezembro de 1940, quando este se candidata a mais uma repesentação consular, neste caso da Eslováquia e do seu governo-fantoche. Escrevendo ao Auswärtiges Amt, Canaris manifesta "um interesse fundamental em que o sr. dr. Schmidhuber possa trabalhar ao mesmo tempo como cônsul honorário português no Ocidente e como cônsul eslovaco no Leste". E a isto juntava, na linguagem cifrada de quem conhecia os preparativos em curso para invadir a URSS, o argumento de que "o trabalho de recolha de informações no Leste tem agora uma importância acrescida". O Auswärtiges Amt recusou, no entanto, o pedido, com o argumento de que Schmidhuber só podia representar um país de cada vez.

O cônsul-traficante de divisas

Optando obviamente por manter o cargo de cônsul de Portugal, Schmidhuber criou nessa altura uma empresa, a Monopol, para importar dos países balcânicos mercadorias que, na Europa central, eram muito procuradas e atingiam preços elevados. Dedicou-se também nessa fase a um intenso tráfico de divisas, aproveitando a diferença entre as cotações oficiais das moedas transaccionadas e as suas cotações no mercado negro. Esse tráfico de divisas trazia-lhe a ele próprio proventos consideráveis, mas era ao mesmo tempo do interesse da Abwehr, que voltava a jogar com a ideia de um golpe de Estado e abrira na Suíça uma conta secreta para financiar os preparativos dessa acção.

Um incidente ocorrido no Verão de 1942 veio entretanto comprometer toda a rede conspirativa. Um traficante de divisas, agindo a mando do cônsul de Portugal, foi detido na estação de comboios de Praga e, interrogado, envolveu o seu nome. Receosos de que ele falasse como sempre pelos cotovelos, os companheiros de Schmidhuber no núcleo conspirativo da Abwehr discutiram nesse momento se faria sentido organizarem um "acidente" para eliminá-lo. Aparentemente, Canaris terá sido um dos partidários da eliminação, que finalmente não foi consensual.

Seguiu-se uma rocambolesca cadeia de acontecimentos, com Schmidhuber a fugir para o norte de Itália, a preparar a sua fuga para Portugal, e a ser tranquilizado pelo chefe da Legação portuguesa em Roma, Lobo d'Ávila Lima, com a quase certeza de que a polícia italiana em caso algum o entregaria à Gestapo. Confiante nessa informação, Schmidhuber, teve a surpresa de ser detido pela dita polícia italiana na véspera da partida e, previsivelmente, entregue aos alemães em 31 de Outubro de 1942.

O cônsul-delator

Nas mãos dos seus captores, o cônsul de Portugal pôs-se imediatamente a contar tudo o que sabia. Nessas confissões envolveu os nomes de Joseph Müller e de Hans Oster e Hans von Dohnanyi, ambos muito ligados a Canaris.

Neste ponto, uma intervenção das SS veio salvar a vida do cônsul. Ao sentir-se apertado, pouco antes da sua fuga para Itália, Schmidhuber enviara uma carta a Walter Schellenberg, o chefe do serviço de informações das SS, oferecendo-se para trabalhar como seu informador. Para mostrar o que valia, juntara à candidatura um relatório sobre as actividades da Resistência francesa. Schellenberg rapidamente chegou à conclusão que a oferta não lhe interessava, mas foi um dos seus subordinados, o chefe de brigada das SS Hans Rattenhuber, que convenceu Schmidhuber a apresentar-se daí em diante como mero traficante de divisas e a despolitizar completamente as suas declarações.

Por sorte, o chefe da Gestapo, Heinrich Müller, achava o cônsul de Portugal um charlatão e não tinha acreditado cegamente nas suas confissões mais políticas. Dizia ele que, "considerando a personalidade inconsistente e o carácter pouco convincente de Schmidhuber, tem de admitir-se que ele possa tê-las prestado [as declarações] com o objectivo de criar para si próprio uma posição mais favorável no processo que o espera, à custa do comprometimento de outras personalidades, mais altamente colocadas".

O cônsul indesejado

Entretanto transferido para uma prisão em Berlim, Schmidhuber foi aí visitado em Dezembro de 1942 pelo secretário da Legação portuguesa, Manuel José Homem de Mello, que tentou convencê-lo a demitir-se do cargo de cônsul. Aí começou uma série de pressões portuguesas, a que Schmidhuber tenazmente resistia, agarrando-se a essa última tábua de salvação.

O chefe da Legação portuguesa, Pedro Tovar de Lemos, dizia entretanto às autoridades alemãs que o passaporte português de Schmidhuber era falsificado e que, "por eles, os Portugueses estão evidentemente dispostos a deixar cair Schmidhuber". Finalmente, em Abril de 1943, Tovar de Lemos anunciava ao Auswärtiges Amt que o decreto de exoneração de Schmidhuber estava pronto e à espera duma assinatura do presidente da República. Em Fevereiro de 1944, Schmidhuber foi julgado já sem qualquer protecção portuguesa e condenado por tráfico de divisas a quatro anos de prisão.

Menos sorte tiveram os seus companheiros de conspiração, quase todos mortos na vaga repressiva que se seguiu ao atentado anti-hitleriano de 20 de Julho de 1944. Hans Oster, o militar, Hans von Donahnyi, o jurista, Dietrich Bonhoefffer, o teólogo, Wilhelm Canaris, o chefe da espionagem, todos foram executados.

 

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