Da "desolada terra" à Lisboa iluminada
O sábado 01 de Novembro de 1755 amanheceu calmo e agradável e nada fazia adivinhar a tragédia que se preparava. As pessoas diri giram-se às igrejas para rezar, no Dia de Todos-os-Santos, e muitas acabaram por encontrar ali a morte, no dia do terramoto.
Aos três abalos que se sucederam em menos de dez minutos seguiu-se um " maremoto" e um incêndio que se prolongou por cinco ou seis dias, com efeitos mai s devastadores do que o próprio terramoto.
Apenas três dias após a catástrofe, o núncio Filippo Acciaiuoli envia u ma carta ao seu irmão, no Vaticano, da "desolada terra que na passada sexta-feir a era Lisboa", segundo documentos lançados recentemente pela editora Alêtheia.
A catástrofe foi tão forte que estabeleceu um novo máximo na escala de Richter: cerca de 8,75 ou 09 graus.
O terramoto, cujas réplicas se prolongaram por mais de duas semanas, te ve também efeitos no Algarve, no sudoeste de Espanha e no norte de África e foi sentido em toda a Europa.
Das 200 a 300 mil pessoas que viviam na cidade, terão morrido cerca de 15.000, defende o historiador Rui Tavares, ou cerca de 30.000, 40.000 ou mesmo 6 0.000, segundo outros números.
De acordo com relatos da época, dois terços da cidade foram arrasados, e ficaram totalmente destruídos edifícios como o Paço Real, o Palácio da Inquisi ção, a Alfândega, a Casa da Índia ou o Senado da Câmara, a Real Ópera, com apena s sete meses, além de vários ministérios, tribunais, cadeias, igrejas, mosteiros , conventos e palácios, descreve João Duarte Fonseca, no livro "1755 - O Terramo to de Lisboa".
"De 65 conventos, só 11 ficaram habitáveis. De sete albergues de acolhi mento, só um podia ser habitado depois da catástrofe. Nenhum dos seis hospitais escapou ao incêndio. 33 palácios das maiores famílias do reino foram destruídos" , narra o dossier de candidatura da Baixa Pombalina a património da Humanidade.
Se os efeitos físicos do cataclismo atingiram quase toda a Europa, a di scussão filosófica e intelectual que se seguiu teve consequências mais duradoura s, envolvendo pensadores como Voltaire, que escreveu, sobre o tema, "O Poema sob re o Desastre de Lisboa" e "Cândido ou o Optimismo", Rousseau e Kant, que debati am a origem do sismo: um castigo divino ou de responsabilidade humana.
Como defende o historiador Rui Tavares, o terramoto foi "um acontecimen to total", porque afectou todas as esferas, da política à religião e ao urbanism o, com expressões na filosofia mais erudita e nos gestos do quotidiano.
Nos dias seguintes à catástrofe, debateu-se o que fazer daquela cidade arruinada.
Entre a possibilidade de construir uma nova cidade entre Alcântara e Pe drouços e a hipótese de reconstruir a zona tal como era antes do terramoto, deci diu-se arrasar toda a área, usando o entulho para subir o nível do solo e conceb er um novo plano urbanístico.
"Concebeu-se um desenho urbano, planeou-se uma estandardização dos elem entos arquitectónicos, definiram-se as infra-estruturas de saneamento e de circu lação viária", explicou à Lusa o coordenador da candidatura da Baixa Pombalina, Mascarenhas Mateus.
A protecção anti-sísmica e contra incêndios foi na altura um aspecto in ovador, com o recurso à gaiola pombalina, uma estrutura de madeira introduzida n o miolo das paredes, conferindo elasticidade ao edifício, e as paredes corta-fog os entre os edifícios.
"A Baixa Pombalina é um modelo da reconstrução iluminada de uma cidade depois de um cataclismo natural. É a afirmação da capacidade racional do Homem c ontra a adversidade, mas também da clarividência", sustentou Mascarenhas Mateus.
Na opinião de Rui Tavares, autor d` "O Pequeno Livro do Grande Terramot o", recentemente publicado, o "desastre de Lisboa" é a "primeira catástrofe mode rna" da história.
"Há um momento de viragem, quando passa a ser dominante a ideia de que as catástrofes podem ter uma origem natural, e não apenas divina, mas têm de ter uma resposta humana", explicou à Lusa.
Segundo o historiador, "a grande lição do terramoto é a tentativa de pr eparar melhor a sociedade para as catástrofes naturais".
Se, como defende, o desastre chegou aos dias de hoje através da memória colectiva, o desafio que se coloca actualmente aos decisores, mas também à comu nidade, é a "preservação da noção do risco numa cidade em que as ocorrências des te tipo são muito espaçadas no tempo".
E questiona: "Como preparar as pessoas para algo que não está ao virar da esquina?"