Estudo. Aeroporto do Montijo viola pilares do Pacto Ecológico Europeu

por Inês Moreira Santos e Nuno Patrício - RTP
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O Governo quer avançar com a construção do aeroporto do Montijo, mas esta é uma decisão que não agrada a todos, principalmente à maioria dos especialistas e ambientalistas, desde há muito. Agora uma equipa de investigação revela que construir este novo aeroporto viola dois dos principais pilares do Pacto Ecológico Europeu: combater a mudança climática global e reverter a crise da biodiversidade.

O artigo, sob o título "Aeroporto do Montijo em rota de colisão com o Pacto Ecológico Europeu", revela que há uma contradição entre a intenção da Comissão Europeia em alterar as economias europeias para modelos mais sustentáveis - o Pacto Ecológico Europeu - e a autorização ambiental emitida por Portugal para a construção do aeroporto do Montijo - no coração da maior zona húmida do país, o estuário do Tejo.

Publicado esta quinta-feira na revista Science, o estudo refere ainda a que a importância do estuário do Tejo para a biodiversidade se estende muito para além das fronteiras Portuguesas, sendo designado como Reserva Natural na lei portuguesa, Zona de Protecção Especial (Directiva Aves da Uniao Europeia), Zona Húmida de Importância Internacional (Convenção de Ramsar) e Área Importante para as Aves (Birdlife Internacional).

Para os autores - José Alves, investigador no Departamento de Biologia e no Centro de Estuados do Ambiente e do Mar da UA, e Maria Dias, coordenadora científica do programa marinho na organização BirdLife International - é evidente que a decisão do estado Português viola dois dos principais pilares do Pacto Ecológico Europeu: combater a mudança climática global e reverter a crise da biodiversidade.

O estuário do Tejo é, como explicam os autores, "um grande hub internacional para as aves migradoras que usam a rota migratória do Atlântico Este, servindo de ponte entre as áreas de reprodução localizadas no hemisfério norte e as áreas de invernada no sul da Europa e em África, estimando-se que seja utilizada por cerca de 300 mil aves aquáticas". É também neste estuário, onde será construído o aeroporto do Montijo, que se concentra "o maior número de aves aquáticas em Portugal, sendo o segundo mais importante na península ibérica e um ponto de ligação crucial entre a Europa do norte e África para as aves migradoras".

Mas uma das grandes questões que suscita a construção desta estrutura é de que forma pode afetar ou prejudicar a biodiversidade e os habitats destas espécies.

Segundo os investigadores está previsto que as rotas dos aviões impliquem voos a menos de 200 metros de altitude dentro da área protegida, o que perturba "várias das áreas mais importantes para as aves aquáticas e para as quais a reserva do estuário do Tejo foi estabelecida".

"O impacto que há sobre a biodiversidade é muito assinalável", afirmou à RTP o investigador José Alves. 

Por isso, os autores pretendem com este artigo "fazer chegar esta informação à comunidade internacional", aos "vários países que também têm aves migradoras que vêm para o estuário do Tejo" e que tenham "programas de conservação nas suas zonas de reprodução que serão afetadas pelo novo aeroporto do Montijo, se realmente se concretizar".
Recorde-se que Lisboa é, atualmente, a Capital Verde Europeia e que, apesar do aumento substancial nas emissões de carbono que um segundo aeroporto na área da capital irá gerar, o governo quer avançar com a projeto.

"Ironicamente, a candidatura de Lisboa a este galardão beneficiou da proximidade com a reserva do estuário do Tejo, apesar do traçado agora proposto para as rotas dos aviões implicar voos a menos de 200 metros de altitude dentro da área protegida, perturbando de forma muito assinalável várias das áreas mais importantes para as aves aquáticas", lembram os autores.

Este artigo não apresenta "um estudo com dados novos", esclareceu o investigador. "É apenas um artigo em que debatemos estas ideias e esta proposta do aeroporto do Montijo. (…) O que fará é pôr ainda mais claro os impactos negativos e de alguma maneira o incumprimento que Portugal terá em termos de emissão de nível de carbono, em termos de conservação da biodiversidade, se o aeroporto do Montijo for para a frente".
Habitats em risco

O estuário do Tejo é o habitat de milhares de animais e o local de reprodução de muitas espécies migradoras. Muitas destas espécies encontram-se "em declínio acentuado" e "dependem do estuário do Tejo".

"Estas aves movem-se no estuário do Tejo em bandos que podem ser formados por dezenas de milhares de indivíduos, tirando partido do complexo mosaico de habitats estuarinos esculpidos ao longo de milénios, tais como sapais e bancos de vasa e mais recentemente, pela intervenção humana, salinas e arrozais", apontam no estudo os autores.

Os cientistas dão como exemplo os bandos de até 80 mil maçaricos-de-bico-direito que se reproduzem na Islândia e Holanda e que se concentram no estuário do Tejo todos os anos para se alimentarem e repousarem, no decurso da sua migração anual. Mas esta zona "alberga também populações muito importantes de outras aves aquáticas, nomeadamente flamingos, colhereiros e garças-reais".

Mas, para os especialistas, a construção de um aeroporto, os voos de baixa altitude nesta área protegida e o nível de ruído que vai gerar, vai afetar, logicamente, a vida destas espécies.

"Os impactos nas aves vão ser muito assinaláveis", voltou a salientar José Alves à RTP. "Vão ser assinaláveis justamente porque decorrem em grande parte dentro da área protegida, da zona de proteção especial, nas zonas de alimentação destas aves, nas zonas intertidais".
O investigador e coautor deste artigo explicou que com o artigo, divulgado esta quinta-feira, e "outros trabalhos com dados empíricos" pretende-se demonstrar, "com muita clareza, a conectividade do estuário a nível internacional, mas também a utilização de vários habitats destas aves dentro do estuário".

A construção do aeroporto do Montijo significa, "na prática, uma perda de habitat". Isto porque, com os níveis de ruído a que ficarão sujeitas, as aves vão voar "para fora destas zonas". E, explicou ainda o investigador, "quando há perda de habitat há impactos nas populações de aves".
Governo ignora diretrizes ecológicas e de conservação

O estudo de impacto ambiental do aeroporto do Montijo tem sido, desde que surgiu a proposta, "muito criticado, devido à falta de dados e informação, erros técnicos e adoção de critérios subjetivos", apontam os biólogos.

E as medidas de compensação propostas para as aves "não são eficazes, uma vez que praticamente metade do estuário do Tejo será impactado e não pode ser substituído".

Apesar do impacto da Covid-19 teve no tráfego aéreo nos últimos meses, "a empresa privada que promove e financia o aeroporto do Montijo anunciou que permanece firme no seu compromisso de avançar com o projeto e o governo Português anunciou publicamente o seu apoio ao mesmo em junho, julho e setembro, quando as consequências da pandemia na indústria da aviação já eram claras".

Na perspetiva dos especialistas, a decisão do estado Português em avançar com o projeto do novo aeroporto viola dois dos principais pilares do Pacto Ecológico Europeu.

No entender de José Alves e de Maria Dias, "este é um exemplo evidente de uma tentativa de um Estado-membro em desconsiderar diretrizes de conservação, acordos internacionais de proteção de espécies e habitats e os anúncios que o próprio governo faz na promoção de um futuro mais sustentável e sem emissões de carbono".

Segundo os autores, considerando a função do estuário do Tejo em albergar espécies de toda a rota migratória, incluindo aquelas que beneficiam de programas de conservação financiados publicamente noutros locais da sua área de distribuição, "outros países irão muito provavelmente considerar Portugal como responsável pelas consequências negativas deste desenvolvimento no estuário do Tejo".

Nesse sentido, a intenção da publicação deste artigo é "fazer ver que este aeroporto causará impactos que vão muito para lá do estuário do Tejo".

No estudo de impacto ambiental, esta questão não está "bem considerada", mas os autores acreditam que "há outros países que vão ter impactos de forma desfasada". Isto porque estas aves estão numa fase do ano em reprodução em Inglaterra ou no norte da Europa, por exemplo, e noutra estão em Portugal.

"Queremos chegar a esses países, mostrar o que se está a passar em Portugal", afirmou José Alves.

"Fazemos um apelo ao Governo português": usar esta oportunidade de relançamento da economia, para "ter Portugal como um país líder nas questões ambientais, nas questões da biodiversidade, seguindo as diretrizes do Pacto Ecológico Europeu e também a estratégia nacional para a conservação da biodiversidade".

Os autores do apelam, assim, ao Governo português que reconsidere a decisão de autorizar a construção do aeroporto do Montijo e aproveite a oportunidade de Lisboa ser a atual Capital Verde Europeia para demonstrar uma verdadeira liderança ao nível internacional no movimento global para um futuro sustentável, fazendo de Portugal um caso de sucesso na implementação do Pacto Ecológico Europeu.

Este artigo "não é vinculativo" nem tem como impedir o processo da construção do aeroporto do Montijo, mas poder servir como forma de alerta, concluiu o biólogo José Alves.
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