Família angolana leva nova vida a Freixo de Espada à Cinta
Uma praceta com risos e brincadeiras de crianças é um cenário cada vez mais raro nas despovoadas aldeias transmontanas, sobretudo sendo todas elas de uma mesma família que chegou de Angola para pegar em terras agrícolas abandonadas.
A família de João e Helena Pelicano, com 50 anos, tornou-se num caso único na aldeia de Poiares, no concelho de Freixo de Espada à Cinta, no sul do Distrito de Bragança.
Dez filhos, quatro netos, noras, genros e um colorido africano que contrasta com a pacatez da aldeia, que, depois da surpresa inicial, vê nesta família o modelo para inverter o envelhecimento, despovoamento e abandono da agricultura.
"Olhe o que aqui vem de pequeninos, precisávamos cá de mais gente assim", observa Virgílio Roxo, perante o grupo dos mais novos que passa na rua.
"São amigos, muito honestos e trabalhadores", acrescenta, secundado por outro habitante, António Tavares, para quem não restam dúvidas sobre a aceitação desta família, oriunda de uma cultura diferente.
O patriarca, João, é filho da terra, mas emigrou aos 17 anos para Angola, onde permaneceu durante mais de 30, constituindo família, e de onde nunca pensou regressar.
Até que, segundo contou à Lusa, "as saudades eram tantas" que resolveu, há nove anos, visitar a aldeia.
Em Poiares esperavam-no duas surpresas.
O pai, que nunca o tinha reconhecido, decidiu perfilhá-lo e lançar-lhe o desafio de tomar conta das terras abandonadas, devido à sua idade avançada e pela falta de mão-de-obra.
Um ano depois, João voltava de avião com a mulher e os filhos - um ainda a caminho - numa inesperada mudança da zona do Lubango, em Angola, para Trás-os-Montes.
Na aldeia transmontana encontraram a segurança que não tinham em África, mas Helena ainda não está completamente convencida.
"Se o meu marido decidisse regressar, eu ia logo", garante, expressando o desejo de voltar a Angola, nem que seja de férias ou para visitar os amigos e as irmãs que por lá ficaram.
João admite que inicialmente sentia alguns "murmúrios" por parte da população local em relação à sua família, mas está convencido de que já passaram.
O mais importante para ele é, além da segurança, os filhos mais novos poderem estudar, o que os mais velhos não conseguiram fazer em Angola.
Já Helena preferia "arriscar mais um pouco lá", onde considera que "com menos se vive melhor do que cá, onde a vida é mais dura".
João concorda que "em Portugal há melhores condições, mas que é preciso trabalhar no duro".
"E eu que o diga", é o que aprece expressar a risada com que reage a filha mais velha, Iolanda, que desde que veio para Portugal trabalha na agricultura.
Outros trabalham na construção civil e todos ajudam João e Helena a trabalhar as terras da família, de onde tiram o sustento.
Recuperaram o que era possível no olival, amendoal e vinha, e "vai dando para viver", embora João admita que é "difícil".
O mais difícil para Helena é enfrentar os rigorosos Invernos transmontanos, que coincidem com a apanha da azeitona.
Nos primeiros anos, as mãos congelavam com as geadas típicas da época e o frio, a que Helena ainda não conseguiu habituar-se.
O conforto das lareiras minimiza a situação, mas não consegue preencher o vazio da "falta de amigos" numa terra que ainda lhe é estranha.
Quem parece completamente à vontade é o mais novo, Eduardo, agora com oito anos, que já nasceu em Portugal e aprecia, sobretudo, as viagens de autocarro que faz diariamente para a escola, na sede de concelho.
João não teve problemas para legalizar os filhos mais novos, mas ainda não conseguiu resolver a situação dos mais velhos.
"Parece que desconfiam de que não são meus filhos. Até o comprovativo do baptizado já me pediram", contou, exemplificando a burocracia que têm enfrentado os três dos filhos, o mais velho com 32 anos.
Um cunhado foi agora a Angola buscar mais "papelada" e todos esperam que seja desta vez que se conclua um processo que nem a intervenção dos patrões, comprovando que trabalham, tem conseguido resolver.
A numerosa família Pelicano não foi suficiente para impedir o fecho da escola primária desta aldeia com menos de 500 habitantes.
O principal café enche-se ao fim-de-semana, mas 80 por cento dos clientes são reformados, como observa o filho do proprietário e presidente da junta de freguesia, um jovem de 31 anos.
Rui Portela confessa que não há alternativas para aliciar os jovens a permanecerem na aldeia, que fica a oito quilómetros da sede de concelho.
Existem infra-estruturas, nomeadamente de lazer, mas falta o essencial, que é o emprego e, não fossem algumas quintas do Douro de capitais estrangeiros a dar sustento a algumas dezenas de famílias, o autarca admite não saber "o que seria desta gente".
Para o vice-presidente da Câmara de Freixo de Espada à Cinta, Pedro Mora, só um verdadeiro "plano de salvação do interior pode inverter esta situação".
"Não adianta às câmaras criar incentivos à natalidade ou outros porque, depois, falta o essencial", considerou.
Para o autarca, "este programa tem de ser um desígnio nacional que envolva Portugal inteiro, desde o governo, a autarquias, comissões de coordenação regionais, e que crie condições para os emigrantes regressarem e as famílias do litoral virem viver para cá.