Faro. O que nos conta um dado romano perdido numa cloaca

por Carla Quirino - RTP
Foto: Era-Arqueologia

As obras do número 16 da Rua Ivens, em Faro, revelaram aos arqueólogos estruturas romanas associadas a um conjunto de artefactos de qualidade. Um dado invulgar, fragmentos de vidro e de cerâmica vão ajudar a conhecer mais uma página de história da cidade algarvia.

Entre as ranhuras de uma cloaca romana, a pouco mais de um metro de profundidade, o pincel do arqueólogo Carlos Vilela revelou um pequeno dado retangular que, tudo indica, terá sido jogado pela última vez em meados do século I ou início do século II d.C.
A equipa de escavação da Era Arqueologia encontrou numa área de caneiro romano "material arqueológico de boa qualidade", explica à RTP Francisco Rosa Correia, arqueólogo da empresa responsável pelos trabalhos.

Fragmentos de cerâmicas de grande qualidade - conhecidos por terra sigillatas -, de lucerna com marca do oleiro produtor, de vidros de janela e ainda pequenas peças para a construção dos mosaicos (tecelas), foram encontrados entre as ranhuras e debaixo de telhas romanas (tégulas) que compõem a base da cloaca (sistema de saneamento romano).

Esta zona da baixa de Faro está identificada como área habitacional romana, não sendo anormal encontrar testemunhos arqueológicos do período de expansão inicial do imperador Augusto.

João Pedro Bernardes, professor no Departamento de História, Arqueologia e Património da Universidade do Algarve, sublinha que na Faro romana, conhecida como Ossonoba, as "casas ricas tinham água canalizada e esgotos, ao contrário de muitas outras habitações mais modestas". É parte de uma destas condutas que foi agora encontrada.

O investigador ouvido pela RTP acrescenta que "o escoamento ou cloaca tinha origem numa dessas domus ricas cujas ruínas se devem situar sob a atual rua Ivens ou sua proximidade. Dirigia-se para a zona ribeirinha que era mais recuada que atualmente e durante a maré alta a água penetrava bem dentro da cidade através de um conjunto de esteiros". Dos recentes achados, destacam-se "entre os sedimentos do interior da canalização alguns artefactos, entre os quais o dado em osso, que teriam sido arrastados para o cano onde acabaram depositados", explica João Pedro Bernardes. 


O subsolo da cidade de Faro continua a ter muitas histórias para contar. São pelo menos três mil anos de ocupação humana, que podem ser encontrados em camadas sobrepostas. O mar que banha este território trouxe muitas gentes do Mediterrâneo oriental que se instalaram, inicialmente, na "zona amuralhada conhecida como Vila-Adentro", tiraram proveito dos recursos marinhos e engrossaram laços comerciais com a atual Andaluzia. Nas várias camadas podem encontrar-se vestígios fenícios, romanos, islâmicos e cristãos.

Faro é por isso uma "área com sensibilidade arqueológica elevada", salienta  Francisco Rosa Correia. E acrescenta: "A lei obriga à realização de sondagens arqueológicas prévias a qualquer remeximento do subsolo".

Neste caso, para adaptar o local ao projeto de restauração, seria necessário remexer essas camadas.
Alea jacta est

"Jogar durante a época romana era uma atividade frequente e amplamente apreciada", diz Lídia Fernandes, arqueóloga e coordenadora do Teatro Romano-Museu de Lisboa, que partilha o estudo sobre o dado de Ossonoba com a RTP, relembrando a expressão atribuída a Júlio César, "Alea jacta est - o dado está lançado". "A introdução de jogos nos confins do império romano deveu-se, em grande medida, à conquista militar" e algumas destas práticas lúdicas "implicavam o uso de dados".

Uma das mais-valias deste dado é ter sido encontrado em contexto arqueológico, o que é raro em território português.

Os vidros e as cerâmicas associadas ajudam a atribuição da cronologia romana, "com alguma fiabilidade, embora pouco precisa".


Foto: Nuno de Santos Loureiro - barlavento

Com uma dimensão de 12 por sete milímetros, a morfologia do dado é retangular e a matéria prima, após análise laboratorial, revelou ser osso

A inscrição do valor das faces do dado revelam algumas particularidades.

Apresentam-se "em duplos círculos concêntricos, apesar de se encontrarem especialmente bem marcados, não estão alinhados" explica a arqueóloga exemplificando com a face de três e cinco pontos. "Nesta última, ocorreu um erro na gravação do ponto central, encontrando-se um círculo a mais do que nos restantes e apresentando-se descentrado".

Para a Lídia Fernandes, os aparentes "erros" dos círculos tem uma possível interpretação e o dado em causa poderia pertencer ao universo dos dados viciados

Embora não seja exemplar único em território nacional, o dado encontrado na Baixa de Faro "representa um dos melhores exemplos deste tipo de objetos de caráter lúdico", afirma a arqueóloga. Um objeto similar, com forma cúbica, foi encontrado em Conímbriga. Ali trata-se de "uma peça em osso, retangular com dimensões de 16 por sete milímetros", mas aparentemente inacabada pois não tem gravação de pontos nas faces.

O dado de Ossonoba apresenta um bom estado de conservação e tem um acabamento delicado. "O talhe, da peça, com esquinas um pouco boleadas, o polimento da superfície e a boa marcação dos pontos de cada uma das faces, assim como a sua distribuição, constituem indicadores de se tratar de uma peça que mereceu o apreço do seu possuidor", sublinha a investigadora.

Francisco Rosa Correia conta-nos que "foram ainda exumados três peças de jogo, fragmentos de cerâmica que foram arredondados, possivelmente utilizadas no jogo Ludus latrunculorum e o Duodecima scripta, que deram origem ao jogo do Gamão".

Questionado sobre quem seriam os jogadores, o arqueólogo esclarece que "poderíamos especular quem eram, mas numa seria uma realidade absoluta, apenas sabemos que os materiais que temos e a riqueza destes, pertenceriam a pessoas de posse da cidade de Ossonoba.”

João Pedro Bernardes acrescenta que estes testemunhos "pertenceriam a uma elite ligada sobretudo ao comércio marítimo revelada por uma abundante epigrafia funerária e votiva oriunda da cidade".

Na mesma escavação, entre estruturas correspondentes a outros períodos temporais da cidade, está "um poço com diâmetro interno de 60 centímetros, possivelmente, construído ainda em época medieval" descreve Francisco Rosa Correia.


Foto: Era-Arqueologia Valorização patrimonial
O espólio arqueológico e todo o registo das estruturas encontradas estão a ser alvo de estudo e os resultados serão divulgados."Os materiais arqueológicos serão por fim entregues ao município de Faro", diz à RTP Miguel Lago, arqueólogo e administrador delegado da Era-Arqueologia. 

Perante estas pequenas janelas que se abrem para o passado e vão contribuindo para a memória do sítio, João Pedro Bernardes afirma que a cidade de Faro "mantém um dos subsolos mais bem preservados do território português". E defende que "o ideal seria que alguma coisa desse subsolo se pudesse preservar e musealizar, para lembrar e mostrar a residentes e visitantes que esta cidade se foi construindo com vários povos, diálogos e desavenças ao longo de muitos tempos, sendo hoje fruto de uma longa história que a torna única e diferente das demais".
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