Historiador crê que vidente foi "peão para leituras políticas"
O historiador Luís Filipe Torgal julga que a vidente de Fátima irmã Lúcia "foi aproveitada, serviu de peão, para as leituras políticas de cada momento" histórico.
O autor de uma tese de mestrado sobre as aparições de Fátima, já publicada pela editora "Temas e Debates", salientou hoje que existem "contradições profundíssimas" entre os depoimentos prestados após o fenómeno e as memórias da Irmã Lúcia, elaboradas duas décadas depois.
"É interessante verificar que os depoimentos de 1917, 1918, 1919 e 1920 não coincidem de maneira nenhuma com as memórias que terão sido redigidas por ela a pedido do Bispo de Leiria", afirmou, em declarações à Agência Lusa.
Luís Filipe Torgal diz que esses depoimentos "são breves, pouco dizem, ao contrário das suas memórias".
"Após os acontecimentos, nos depoimentos ao pároco de Fátima e a Nunes Formigão, pouco têm a dizer, mas depois reconstrói as memórias com muitos pormenores", sublinha.
Autor de "As aparições de Fátima imagens e representações (1917-1939)", para exemplificar, Luís Filipe Torgal diz que nos primeiros depoimentos não há qualquer alusão ao comunismo, e que a questão da conversão da Rússia só aparece nas suas memórias.
Também num depoimento sobre a aparição de Outubro de 1917 - acrescenta - "Nossa Senhora terá dito que a guerra terminara, mas só termina em finais de 1918. Então os cronistas católicos tiveram necessidade de fazer a rectificação posterior, porque essa profecia estava errada".
"Todo o processo de Fátima é repensado e reconstruído em função do quadro económico e social de cada momento", considera Luís Filipe Torgal, acrescentando que no início "é utilizado como reacção católica à República anti-clerical".
Na década de 1930 - acrescenta - "há o receio do Estado Novo, que estava no poder, e da Igreja, de que o comunismo vença em Espanha, com a guerra civil, e reconstrói-se uma nova mensagem de Fátima, de combate ao comunismo".
Luís Filipe Torgal considera da maior importância estudar essas contradições, fazer uma análise comparativa, e lamenta que até agora "a Igreja não tem valorizado esses aspectos".
A mensagem de Fátima - refere - "vai-se adaptando às circunstâncias e ao momento", ao ponto de julgar que "a Irmã Lúcia foi um peão, para as leituras do momento", e essa convicção reforça-a com a questão: porque razão essa vidente nunca deu entrevistas ao longo da vida.
"É muito importante que esse estudo seja feito, com rigor, por historiadores. É um trabalho que não é monopólio da Igreja", sustenta o investigador, frisando que para isso era essencial que a instituição religiosa abrisse os arquivos aos historiadores.
Agora, após o falecimento da Irmã Lúcia, crê que numa primeira fase "o mundo católico vai reforçar a sua devoção por Fátima", e depois se assistirá à sua beatificação, culminando um processo já iniciado.