Internet, compras e telemóvel... novos vícios que rivalizam com as drogas

Os técnicos da área da toxicodependência começam a confrontar-se com a emergência de novos vícios sem drogas, como estar "agarrado" à Internet, ao telemóvel, às compras ou ao jogo, chegando mesmo estes doentes a "ressacar" quando não consomem.

Agência LUSA /

Embora com implicações muito diferentes das que decorrem do uso de drog as, estas patologias carecem igualmente de tratamento, sob pena do viciado poder viver situações dramáticas.

Em entrevista à agência Lusa, o psiquiatra Luís Patrício, que dirige o Centro de Atendimento a Toxicodependentes (CAT) das Taipas, em Lisboa, sublinhou que a sociedade de consumo e o aumento da oferta estão a criar fortes dependênc ias patológicas sem substâncias psicoactivas (drogas), não só nos toxicodependen tes em tratamento como no cidadão que nunca consumiu qualquer droga lícita ou il ícita.

Luís Patrício vai mesmo mais longe e argumenta que "cada vez mais deixa mos de falar em toxicodependência para começarmos a falar de adictologia".

Face a esta preocupação, o "XIX Encontro das Taipas", que reúne em Lisb oa segunda e terça-feira cerca de 400 técnicos nacionais e estrangeiros na área da toxicodependência, inclui no seu programa um painel de debate sobre "Dependên cias Patológicas sem Substâncias Psicoactivas", que terá como orador o professor Carlos Alvarez Vara, da Agência Antidroga da Comunidade de Madrid.

Luís Patrício frisou que a derivação do consumo de heroína ou cocaína p ara o álcool ou para "a batota" era relativamente comum, mas os técnicos constat am também uma crescente derivação para as compras compulsivas, o vício da Intern et, os jogos de consola, o telemóvel e o sexo, criando dependências patológicas.

"Estamos a falar de dependências patológicas que têm tradução de depend ência bioquímica muito semelhante à dependência das drogas", vincou o clínico, a crescentando que estes doentes têm um sofrimento e um desgaste violento, "consta tando-se mesmo a existência de síndrome de privação, que alivia quando a pessoa realiza esse comportamento.

"Enquanto antigamente havia muitos toxicodependentes que derivavam para esses consumos, hoje há pessoas que nunca foram toxicodependentes que começaram a derivar para as tendências patológicas".

De acordo com o psiquiatra, "isto cria vivências muito angustiantes par a o próprio, para as pessoas que vivem com ele, tem sequelas a nível do trabalho e a nível das actividade lúdicas", pois em vícios como o da Internet as pessoas "não saem sequer de casa".

No caso da dependência patológica da Internet, Luís Patrício deu como e xemplo casos de doentes que estão 18 ou 19 horas "agarrados" ao computador, "não importa a fazer o quê, a falar com quem, a consultar o quê".

"A pessoa fica na Internet até às 07:00 da manhã. Durante a noite vai c onsumindo estimulantes (como a cafeína ou comprimidos) para se manter em ligação . Deita-se quase de manhã, não vai descansar o que necessita porque tem de ir tr abalhar e, assim, vai aumentando o cansaço e o consumo de estimulantes. Quando a corda, a primeira coisa que faz é ligar a Internet e saber o que se passa", exem plificou.

"Então falamos de quê hoje em dia em termos de dependências patológicas sem substâncias? Falamos de Internet, de jogos vídeo, jogos de consola, do tele móvel, do sexo patológico, que inclui também as linhas telefónicas eróticas. Dep endência de televisão, dependência de filmes".

A nível de exemplos destas patologias, Luís Patrício referiu o caso de uma pessoa que com uma vida sexual organizada, mas que dia sim, dia não, precisa va de ter mais um comportamento sexual, habitualmente com algum risco físico, po r recorrer à prostituição.

No caso dos telemóveis, o doente "não é capaz de estar sem ele. Há que jogar, enviar mensagens, falar. É uma relação de tal maneira intensa com o objec to, que chega mesmo a provocar determinado tipo de lesões nos dedos por +teclar+ ".

Outra das dependências citadas à Lusa pelo psiquiatra como "muito desga stantes para quem dela sofre e para a família" são as compras patológicas.

"Existe o prazer de comprar, nomeadamente porque há o alívio da tensão do desejo de ir. A pessoa compra e alivia-o. Compra, não interessa o que for e d e que jeito. Muitas vezes não tem dinheiro suficiente para gastar e cria dificul dades no orçamento individual, no orçamento familiar", relatou.

Luís Patrício explicou que estes viciados fazem por vezes compras avult adas, mas também em lojas de artigos baratos. Coisas "que levam para casa, não a brem o embrulho, atiram para qualquer lado sem sequer ver o que é".

Os jogos de sorte ou azar são outro dos problemas apontados. Estes depe ndentes tanto jogam nos casinos legais, como nos ilegais, em locais de batota ou de aposta.

No caso dos casinos legais, Luís Patrício sublinha a curiosidade de exp lorarem muito bem a iluminação, criando a ilusão de que o dia se prolonga: "Há p essoas que, devido à iluminação, perdem referência do tempo. Entra-se num casino , as luzes são abundantes, não é de dia nem de noite, o ambiente vai sendo sedut or, vêem-se as moedas, as máquinas seduzem, estão quase a dar prémio, a pessoa t enta a sorte e vai sempre na expectativa de conseguir e a tensão emocional é de facto muito violenta".

Há também a dependência patológica do trabalho, em que a pessoa vai con sumindo estimulantes também (lícitos em princípio, mas há casos que passam aos i lícitos) para ter determinado tipo de prestações e tudo isso, às tantas, passa a ser uma forma própria de gratificação em termos de realização profissional mas sempre sobre o efeito desta tensão muito elevada.

"Na sociedade consumista que temos há um leque de comportamentos de dep endência patológica onde de facto não há uma substância psicoactiva que esteja a ser consumida (fumada, inalada, injectada), mas sim um comportamento, uma atitu de".

No tratamento, estas patologias levantam, diz o especialista, aspectos curiosos, porque se é possível dizer a uma pessoa que esteja a consumir uma subs tância que é necessário suspender esse uso (seja legal como o álcool, sedativos, tabaco, ou ilegal, como heroína ou cocaína), a pessoa tem que suspender, já no caso da dependência sem substâncias é mais difícil.

"Na dependência patológica sem substância há comportamentos que a pesso a tem que suspender e outros que não pode suspender e tem é que saber estar com eles de outra forma", enfatizou.

"Por exemplo - acrescentou - é possível dizer a alguém: você não utiliz e a Internet. Já é mais difícil dizer para não utilizar o computador. Mas é impo ssível dizer a alguém: você nunca mais compra nada. A distância de justa medida entre a compra patológica e a compra necessária é uma maturação que tem de ter a juda para ser desenvolvida. à pessoa que tem sexo patológico não se pode dizer p ara nunca mais ter actividade sexual".

Luís Patrício sublinhou que estas dependências, que não são novas, têm agora uma dimensão grande, já que a sociedade promove também este tipo de atitud es: "Há uma tendência para a adição. Em saúde não pomos a questão tanto na persp ectiva se a substância é licita ou ilícita, pomos a questão na substância e na p essoa, no momento da sua vida e no dano que daí pode advir se houver uma relação patológica com essa substância ou com esse comportamento".

O psiquiatra destaca a importância dos pais estarem atentos aos comport amentos das crianças e dos jovens relativamente a estas questões: "Por hipótese, quando os pais colocam uma televisão, uma consola de jogos, um computador com I nternet em todas as salas de casa e quando, mercê disso, as pessoas deixam de co municar umas com as outras e comunicam com quem não conhecem, podemos estar pert o de uma situação com algum risco e por isso é preciso prevenir".

"A sociedade apela a que estejamos a gastar sistematicamente, estejamos a consumir. É preciso levar as pessoas a pensar, a crescer, para poderem escolh er", concluiu.

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