Diz que não quer ir embora, mas o dia 20 de janeiro vai mesmo chegar. O embaixador e a embaixatriz dos EUA estão de malas feitas mas, para ela, é um até já: fará várias viagens para Portugal para continuar o Connect to Success, programa que criou para ajudar mulheres portuguesas a desenvolver os seus negócios. O primeiro regresso é já a 1 de fevereiro, para ir visitar as empresárias dos Açores.
Os últimos três anos foram passados em viagens entre Lisboa e Boston, porque Kim Sawyer continuou sempre a gerir a The Locator Services Group (TLSG), empresa de serviços financeiros da qual é fundadora e presidente. Diz que cedo aprendeu que a auto-suficiência é essencial na vida: com a avó, que ficou paralisada da cintura para baixo aos 40 anos; e com a sua própria deficiência de aprendizagem: Kim Sawyer não consegue ler a sua própria letra, não sabe a tabuada nem consegue atar os seus sapatos.
Em Portugal, ela (ainda é) a mulher do embaixador mais popular de Portugal, mas em Boston ele é que é "o marido de". "Nos restaurantes, o Robert é tratado por Mr. Sawyer. Tudo o que é marcações de restaurantes e hotéis fica sempre em meu nome", revela. Kim Sawyer diz-se orgulhosa do marido que lhe demorou
"muito tempo a encontrar"- casou com Robert Sherman aos 40 anos - e com quem volta agora ao país de origem. Com a saída de Obama da Presidência dos EUA, saem também os embaixadores políticos da sua equipa.
Na última entrevista enquanto embaixatriz dos EUA em Portugal, Kim partilha episódios de discriminação na sua carreira, desde os códigos de vestuário até às reuniões repletas de homens mais velhos, mas compensa com o final feliz da "história do casaco de pêlo".
Quem era a Kim Sawyer há três anos e quem é ela hoje?
(risos) A Kim era uma pessoa muito diferente. Nunca mais me vou esquecer deste episódio: na primeira semana em que cá estivemos, tivemos um pequeno almoço com a Câmara do Comércio dos EUA e foi a primeira vez em que falei da ideia de fazer um projeto para mulheres empreendedoras (Connect to Success). Comecei por me colar ao meu marido, que é um excelente orador. Quando foi a minha vez de falar, comecei logo por dizer: "Não esperem nada de jeito de mim. Nunca fiz um discurso público como deve ser e fico muito nervosa quando tenho de falar para muita gente. Por isso peço-vos já que me perdoem por todos os erros que vou cometer". Agora, três anos depois desse episódio, penso na quantidade de vezes que fiz discursos, apresentações públicas, na quantidade de vezes em que falei para plateias... Ganhei muita auto-confiança e auto-estima com essas experiências. O Connect to Sucess não ajudou só as outras mulheres, mas acabou por também me ajudar a mim.
Em dois anos e meio, beneficiaram do projeto 750 mulheres. Participaram 75 alunos de gestão e 40 empresas.
Para quem não conhece, o que é o Connect to Success?
É um projeto para ajudar mulheres empreendedoras a fortalecer os seus negócios. Tem três componentes: o corporate mentoring, onde vários profissionais de uma grande empresa são os mentores de uma mulher no seu negócio. Durante um ano, ajudam-na não só com os detalhes do dia a dia, mas também a criar um plano de crescimento a longo prazo. Temos também um programa de consultoria, feito por estudantes de MBA de gestão e business. Durante um semestre, esses estudantes vão ser os consultores de uma empreendedora, vão ajudá-la a ultrapassar obstáculos e a desenvolver o seu projeto. Isto beneficia a empresária, porque tem ajuda para resolver os seus problemas, mas também os alunos de gestão, que vão praticando aquilo que querem fazer no futuro. Vários estudantes contaram-nos que, por causa de terem tido a experiência de ajudarem a gerir os negócios destas mulheres, arranjaram emprego. Por causa da experiência que ganharam. Por último, temos os workshops gratuitos sobre técnicas de iniciação no mundo dos negócios. Muita gente quer começar o seu negócio e não têm necessariamente de ter um curso ou experiência em gestão. Eu também criei a minha firma, nos EUA, e não tinha experiência como empresária. Eu sou advogada. Por isso damos workshops de contabilidade, finanças, construção de um plano de negócios ou técnicas de soft skills, como a liderança e confiança.
Mas uma embaixatriz não tem obrigação de fazer nada no país onde está, certo? Não tem deveres a cumprir.
Não, as embaixatrizes não têm obrigações, mas eu também não faço nada por obrigação. Começar o Connect to Success foi uma decisão de coração. Sentia-me tão privilegiada por termos tido a oportunidade de vir para este lindo país que queria arranjar uma maneira de retribuir, com o melhor que sei fazer.
Pode contar-me uma história de uma mulher que a tenha impressionado?
Bom, se calhar esta não é a história que está à espera mas... Estou a pensar na minha avó. A minha avó ficou paralisada da cintura para baixo quando tinha 40 anos, depois de um acidente com um autocarro. Eu nasci nessa altura, quando ela ficou paralisada.. A minha mãe era muito nova e, por isso, foi a minha avó que me criou. Ver a minha avó que nunca desistiu, tendo uma vida tão difícil... Isso criou em mim a necessidade de ser sempre independente, e de saber sempre como tomar conta de mim própria. Além disso, a minha avó sempre me transmitiu a importância de retribuir e de ajudar os outros. Independentemente do quão difícil pudesse ser a situação dela, ela olhava sempe à volta. Independentemente do que possamos estar a passar, basta olharmos à volta e há sempre alguém que está numa situação pior. Ela inspirou-me bastante. Um dos momentos mais duros da minha vida foi perdê-la.
E ensinou-lhe a ser forte e a ultrapassar obstáculos. A Kim tem um problema de aprendizagem, certo?
Sim. Quando tinha por volta de 12 anos foi-me diagnosticada uma severa dificuldade de aprendizagem (disgrafia). Nessa altura, que foi há mais de 35 anos, deficiências de aprendizagem era um assunto de que ninguém falava. Diziam-me que eu era estúpida, que era preguiçosa e que nunca iria para a universidade. Aí tive que escolher: ou aceitava aquele rótulo e deixava-o definir-me, ou não. E eu escolhi a segunda opção. Aliás, um dos motivos para ter criado a minha própria empresa também tem a ver com as minhas dificuldades de aprendizagem. Percebi que, para ser bem sucedida como queria ser, não podia fazer as coisas como as outras pessoas faziam. Por isso, para eu própria ser dona do meu sucesso, tive de criar um ambiente que podia controlar, onde eu me iria encaixar. Um ambiente definido por mim.
Mas o que é que esse problema significa no seu dia a dia?
Não consigo ler a minha letra. Tenho muita dificuldade em escrever, em soletrar. Com 50 anos, não sei a tabuada. Não consigo atar os meus sapatos, não consigo atar os meus ténis. Ainda bem que agora fazem ténis com mais variedade (risos). Há muitas coisas básicas que eu não consigo fazer.
Há alguma maneira de o curar?
Não. É o que é. Mas em vez de me focar nas coisas que não consigo fazer, passo muito tempo a focar-me em melhorar as coisas que eu posso fazer.
Como disse, criou o seu negócio: uma empresa de serviços financeiros. Mas aí sofreu algum preconceito...
Aí e durante toda a minha carreira. Enfrentei muita discriminação por ser mulher. Desde haver peças de roupa que não me eram "permitidas" usar, até não ser escolhida para determinadas tarefas ou cargos por ser mulher. Assédio sexual. Vivi tudo isso.
Quando eu criei a minha empresa tinha 28 anos. Era muito jovem ainda. Ia a muitas reuniões com homens muito mais velhos do que eu e, quando eles olhavam para mim, subestimavam-me imenso. O que é que eu podia fazer? Eles estavam à espera que eu não percebesse nada dos assuntos... Quando me apercebi disso, fiquei super chateada. E decidi que ia usar essa subestimação deles a meu favor. A partir daí, decidi que ia entrar em qualquer sala de reuniões a saber mais do que qualquer pessoa que estivesse naquela mesa. E foi isso que fiz. Ser bem sucedido é saber transformar os obstáculos em oportunidades.
A confiança é a chave?
Absolutamente. Quando és uma mulher muito nova e tens de entrar numa sala de reuniões cheia de homens muito mais velhos, tens de estar confiante e confortável. Para te levantares e falares em frente a 500 pessoas, precisas de confiança. Para mudares de carreira, precisas de confiança. Por exemplo: tu vais estudar jornalismo, mas se um dia decides que afinal queres ser médica, tens de ter confiança para mudar. Para fazeres algo que as pessoas não esperavam de ti. Tudo isso implica confiança.
E como é que se cria essa confiança?
Acho que é mesmo aprenderes a partir dos falhanços. É aí que crias confiança. Não deixares que os erros te deitem abaixo, mas olhar para eles como mais um passo em direção ao sucesso.
As mulheres portuguesas têm medo de falhar?
Os portugueses de uma forma geral têm medo de falhar, sim. Uma das diferenças culturais entre os EUA e Portugal é a forma como se olha para o falhanço. É muito normal nos Estados Unidos que as empresas não estejam sempre a ser bem sucedidas e que haja muitas falhas ao longo do caminho. Não é tão mal visto como é em Portugal. Aqui há sempre o medo de que a determinada altura alguém te vá dizer: "Eu avisei-te".
"O Connect to Success orgulha-me muito. Ver todas aquelas mulheres com confiança, a arriscarem, a fazerem coisas que antes nunca teriam feito..."
Agora que se vai embora para Boston, qual é o futuro do Connect to Success?
O meu marido e a embaixada asseguraram logo no início uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) para a sustentabilidade do projeto. E eu também venho cá várias vezes para continuar a trabalhar nele.
Então não é um adeus.
Não, é um... até já.
Há uma história sua com um casaco. Quer contar?
(risos) Posso contar. Eu estava numa relação com uma pessoa, e essa pessoa queria comprar-me um casaco de pêlo. A relação estava mal e eu só queria acabar aquilo, por isso não queria aceitar o casaco de pêlo daquela pessoa... Mais tarde, consegui um emprego novo e ganhei algum dinheiro. Então, decidi que ia comprar eu própria o meu casaco de pêlo. Mas eu não percebia nada de casacos de pêlo... Entrei numa loja, peguei num casaco de pêlo espetacular, estava super entusiasmada com aquilo. Dirijo-me à caixa para pagar e a mulher que me estava a atender pergunta-me: "O que é que quer pôr como monograma (letras ou elementos gráficos) no seu casaco?". E eu perguntei: "Como assim?", e ela explicou "As pessoas costumam pôr as iniciais do seu nome no casaco, para que consigam identificá-lo depois". E eu perguntei: "Ah.. Mas têm de ser as minhas iniciais?". E ela disse "Não, pode escolher", e eu respondi: "Ok, dê-me só uns minutos". Afastei-me, fiquei a pensar naquilo, depois voltei à caixa e disse-lhe: "Ok, já sei", e ela perguntou: "Então quais são as suas iniciais?", e eu disse "Mas a senhora disse que não tinha de ser as minhas iniciais!", e ela respondeu: "Ok, então o que é que quer pôr no casaco?", e eu disse: "Auto- suficiência". E foi o que ela colocou dentro do casaco: "Auto-suficiência" (risos).
Mas a história ainda melhora! Naquela altura eu era jovem, era solteira, e saía à noite com as minhas amigas. Quase sempre vinham rapazes ter comigo e perguntavam-me: "Quem é que te comprou esse casaco de pêlo?", e eu abria e mostrava: "Foi a auto-suficiência" (risos). Uns anos mais tarde, comprei a minha primeira casa num condomínio muito bom de Boston. Estava a entrar no elevador, um rapaz olha para mim, aponta e diz: "Auto-suficiência!" E eu comecei a rir-me, porque ele foi um daqueles rapazes que se meteu comigo e perguntou "quem é que te comprou esse casaco?", e reconheceu-me de uma dessas noites. Eu olhei para ele e perguntei-lhe: "Também compraste um apartamento aqui?", e ele: "Não, estou a pagar uma renda!", com uma expressão zangada (risos).
"Podes ler a Vogue e a Economist. Não são incompatíveis. Podes usar saltos altos e ser competente. E os meus saltos são bem altos (risos)".
E agora está com um homem que está muito orgulhoso de si.
E eu estou muito orgulhosa dele. Demorei muito tempo a encontrá-lo! (risos) Só me casei aos 40 anos e a espera valeu bem a pena! Encontrar alguém que é realmente um companheiro, que gosta de mim por aquilo que eu sou... Esse é o verdadeiro companheirismo. E eu gosto dele por aquilo que ele é.
E a Kim estava constantemente a viajar entre Lisboa e Boston. Vocês tinham mesmo de confiar um no outro.
Temos de estar sempre lá um para o outro, mesmo que não estejamos fisicamente juntos. Tenho muita sorte. O Bob pode ser um exemplo para os homens portugueses: não há problema de ter uma mulher que não está a viver sempre contigo, que trabalha, que tem a sua própria carreira, que tem a sua própria identidade. O Bob está muito orgulhoso de mim e faz questão de o dizer. E isso é muito importante. Uma das coisas que ouvi em Portugal é que uma mulher, para ser bem sucedida, tem de ser masculina ou muito agressiva -- e esta ideia foi-me dita por outras mulheres. E isso não é verdade.
A Kim tem o seu próprio negócio, o seu próprio dinheiro...
E escolhi ficar com ele. Isso é que é importante: a possibilidade de escolha. Por isso é que a independência financeira é essencial. Quando tens essa auto-suficiência, só estás numa relação ou só fazes determinadas coisas porque queres, e não porque tens de.
Kim e Robert têm 13 anos de diferença de idade.
E também sofreu algum preconceito porque ele é um bocadinho mais velho.
É um bocadinho, sim (risos). O que é engraçado é que as pessoas assumem que, por ele ser mais velho que eu, ele é mais bem sucedido financeiramente do que eu -- e isso não é verdade. As pessoas tiram muitas conclusões. É muito engraçado que, quando estamos em Boston e entramos num restaurante, as pessoas chamam-lhe Mister Sawyer (risos).
Pois, a mulher é que costuma ser conhecida pelo apelido do marido. Porque é que no vosso caso é ao contrário?
Porque eu estive sempre em Boston e estive solteira durante muito tempo. Ia muitas vezes a restaurantes com os clientes, porque fazia parte do negócio, por isso os restaurantes conhecem-me a mim. A vida do Bob foi diferente. Nós agora vivemos juntos mas.. quando entramos num restaurantes juntos, os funcionários conhecem-me a mim, por isso assumem que ele é o senhor Sawyer.
Quando marca um hotel, por exemplo...
Fica tudo em meu nome. Nunca fica em nome do Bob.
E isso incomoda-o?
Não, não incomoda nada. A nossa relação é uma parceira. Tem tudo a ver com a partilha.
Qual é o seu sítio favorito em Portugal?
Acho que é a nossa casa, o nosso terraço. Tem uma vista linda de Lisboa. Adoro. Isto é mesmo um lar para mim.
E de que é que gosta mais em Portugal?
As pessoas. Viajo bastante e nunca conheci pessoas tão calorosas como em Portugal. Desde o dia em que cá chegámos, receberam-nos de coração. Quando formos embora, vamos deixar parte do nosso coração aqui também.
Vocês têm tanta coisa para oferecer aqui! As pessoas estão no número 1 do top, mas também têm um vinho fantástico, o vosso peixe, o vosso tempo, as vossas montanhas, o vosso ar, o vosso queijo -- há sempre um queijo melhor que o outro (risos). Têm tudo aqui.
Tem noção de que o seu marido é um embaixador muito particular? Não estamos muito habituados a um estilo tão informal.
Às vezes nem eu estou habituada! (risos) O Bob cresceu numa casa com dois quartos, foi a primeira pessoa na família a ir para a faculdade, cresceu numa área com uma grande comunidade de portugueses, e é um homem muito especial. É muito genuíno, é muito caloroso. Ele é mesmo assim. E adora a vossa equipa de futebol!
Além de Lisboa, visitaram outras cidades numa mota Harley Davidson. Certo?
Sim, andámos pelo Alentejo e fomos também a Sesimbra. Andar numa mota Harley é a melhor maneira de ver este país! (risos) Estás a viajar e sentes o ar fresco na cara e o tempo fantástico que há em Portugal. Vês coisas que nunca consegues ver quando viajas de carro. Fomos a praias fantásticas. Foi espetacular.
E agora vão embora.
Sim. E estamos os dois muito tristes com isso. Hoje de manhã estava a contar a alguém que passei a minha última viagem de Boston para Lisboa acordada, sem conseguir dormir. Estava demasiado triste. Até chorei. São lágrimas de tristeza mas também de alegria, por termos tido tanta sorte nestes três anos.
Como vai ser a vossa vida a partir do momento em que chegarem a Boston?
Vou voltar para o meu negócio, o Bob vai arranjar uma nova aventura, a Zoe (cadela) vai para casa connosco. Mas eu vou voltar muitas vezes a Portugal! Já no dia 1 de fevereiro vou aos Açores por causa do Connect to Success. Vão ser só dez dias até voltar a Portugal outra vez.