Lisboa - "Moedinha para o Santo António", uma tradição à beira do fim

São cada vez menos os meninos dos bairros lisboetas que aproveitam as Festas da Cidade para pedir "uma moedinha para o Santo António". A tradição começou há 250 anos e parece estar a chegar ao fim.

Sílvia Maia, Agência LUSA /

Abandonado na soleira da porta de casa, um pequeno altar improvisado com uma caixa de sapatos e um 'naperon' acolhe um Santo António de barro simetricamente colocado entre dois pequenos vasos de flores.

O despretensioso santuário chama a atenção dos turistas que passam na estreita ruela de Alfama. Durante um passeio pelos bairros da Graça, Mouraria, Castelo e Alfama este foi o único altar encontrado na rua.

"É difícil pensar que aqui há uns anos, por esta altura, o bairro estava cheiinho de tronos feitos pelos miúdos. Hoje, quase não se vêem, também há muito menos crianças", lamenta Anabela Lourenço, dona de uma pequena tabacaria em Alfama.

Além de serem menos, os catraios dos bairros históricos já não brincam na rua como dantes. Hoje, os computadores, a televisão e os ATL`s (Actividades de Tempos Livres) fecham-nos entre quatro paredes.

André Domingos e Paulo Lobo são uma excepção: nasceram em Alfama e fazem questão de manter a tradição, mesmo não sabendo que esta surgiu logo após o terramoto de Lisboa.

"A Igreja de Santo António era muito importante na cidade, chegou a funcionar lá a Câmara Municipal de Lisboa. Com o terramoto ficou completamente destruída e por isso foi lançado um peditório para a reconstruir", explica a olissipógrafa Marina Tavares Dias.

O peditório era feito pelos meninos do coro da igreja que, com pequenos tronos improvisados para o santo padroeiro, pediam às gentes de Alfama para ajudar na reconstrução.

Mesmo em ruínas, a igreja foi aberta aos fiéis um ano após o terramoto e em 1764 foi lançada a primeira pedra para a construção do novo templo, recorda Marina Tavares Dias.

Na segunda década do século XIX, a igreja estava de pé, mas a moda tinha pegado e os miúdos continuaram a pedir "cinco reizinhos para o Santo António". Com a instauração da República, passou a "meio tostãozinho".

Hoje as crianças continuam a usar a mesma lengalenga, mas esperam ver sair das carteiras dos turistas e vizinhos mais generosos uma moeda de euro ou mesmo uma nota.

"No ano passado, um senhor de Trás-Os-Montes deu-me uma nota de cinco euros", recorda orgulhoso Paulo Lobo, a morar em Alfama desde que nasceu, há 12 anos.

Longe da imagem dos meninos de coro da igreja, Paulo Lobo fala daquela ocupação de férias como se de uma empresa com contabilidade organizada se tratasse: "em 2003, deu 35 euros e em 2004 consegui 24,5 euros. Eu sei porque faço as contas e escrevo tudo num papel".

O discurso matreiro de Paulo Lobo é ouvido com atenção pelo seu companheiro de cinco anos, André Domingos, novato nestas andanças.

"Eu tinha um Santo António, mas partiu-se. A minha mãe tem lá um em casa, mas não mo deixa trazer para a rua", conta o pequeno André.

Os grandes olhos azuis da criança não escondem a ansiedade de ver os dias passar sem saber se a mãe lhe empresta o Santo António, que "tem guardado no móvel da sala", para fazer um altar na soleira da porta de sua casa e conseguir mais uns tostões.

Enquanto aguarda pela autorização da mãe, André calcorreia as ruas de Alfama acompanhado pelo amigo à procura de turistas que queiram dar "uma moedinha para o Santo António". O dinheiro ganho, dizem, é para comprar as guloseimas proibidas pelos pais: chocolates, bolos, hamburgers e pastilhas.

"Hoje quase todos os miúdos têm mesadas e preferem ficar em casa a ver televisão ou na internet. No meu tempo pedíamos +um tostãozinho para o Santo António+ porque era uma forma de ter algum dinheirinho", explica José Levita, presidente da Junta de Freguesia do Socorro.

A peixeira de Alfama Maria Fernanda Lola também é do tempo em que as crianças aproveitavam todo o mês de Junho para fazer "uns trocos".

"Primeiro pedíamos para o Santo António, depois para o São João e ainda para o São Pedro. O dinheiro era para pôr comida na mesa". Com um banquinho estrategicamente colocado na escadaria da igreja, a mulher fazia um altar que engalanava com "florinhas apanhadas na rua".

Já o presidente da Junta de Freguesia do Castelo, Carlos Lima, prefere lembrar o dinheiro que era usado pela comunidade para alindar as ruas.

"Eu nasci na Rua das Cozinhas e como tínhamos muito orgulho na nossa rua arranjávamos dinheiro para a enfeitar. Era um espírito de bairro que agora já não existe. Agora, os miúdos não querem saber disso para nada", garante o presidente da freguesia onde "não vivem mais de dez crianças".

Já em Santo Estevão começam a instalar-se casais mais jovens.

"Agora é +in+ viver em Alfama, o problema é que os novos moradores não têm qualquer ligação afectiva com o bairro e por isso não mantêm as tradições", salienta a presidente da junta, Maria de Lurdes Pinheiro.

"A maioria das crianças passa o dia na Junta a brincar na Internet e quando lhes falamos em reanimar as tradições estranham", lamenta Maria de Lurdes Pinheiro, louvando os poucos jovens que ainda pedem um tostãozinho para o Santo António, como André Domingos e Paulo Lobo.

Com pose de homem feito, Paulo diz, no entanto, ter um problema com esta prática: "lembro-me que andei a pedir para o Santo António e depois apanhei o vício. Agora peço sempre, todos os anos".

Um "vício" que podia ser a salvação da tradição caso mais crianças experimentassem.


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