Mulher de 88 anos diz que as noites da sua infância eram mais frias porque passava fome
Porto, 14 Jan (Lusa) - Adelaide da Conceição, de 88 anos, enfrenta sozinha em Trovoada, uma aldeia de Lousada perdida entre as serras do Marão e Aboboreira, as noites frias, mas diz que os Invernos de outrora eram ainda mais duros porque as pessoas passavam fome.
"Era muito frio, muito mais do que agora, também porque tínhamos fome. Antigamente até chovia três meses seguidos, impedindo-nos de apanhar lenha para aquecer as casas, contou à Lusa.
"Havia muita miséria", acrescentou.
A octogenária, solteira, habita sozinha, há mais de 20 anos, uma pequena casa na aldeia de Trovoada, na partilha entre os concelhos de Lousada e Amarante.
A terra faz jus ao nome, porque é conhecida por estar muitas vezes sujeita a correntes de ar muito frio e cruzado entre as serranias da proximidade, como o Marão e a Aboboreira.
Nos dias de Inverno rigoroso, assusta ouvir o murmúrio do vento, que parece querer cortar a pele do rosto de quem por ali mora.
"Faz muito frio, mas quando era pequena fazia mais", disse a idosa, apreciada pela sua destreza para contar histórias.
"Hoje, meto-me na cama com muita roupa e aqueço logo", acrescentou, garantindo que não usa a velha lareira lá de casa: "tenho medo que arda a casa. Sabe, o tecto é muito baixo", explicou.
A idosa passa as noites sozinha, mas durante o dia está no centro de dia do Sonho de Vida, uma instituição de solidariedade social em Mancelos, Amarante.
Adelaide Conceição, a oitava de sete irmãos, não esquece a "fome negra" que quase todos na aldeia sentiam quando eram pequenos e como isso "ainda arrefecia mais" o corpo.
Lembrou que nos períodos mais longos de chuva, que chegavam aos três meses, era mais difícil, porque a lenha que se recolhia nos montes da redondeza, tantas vezes roubada, estava húmida e não alimentava as lareiras que aqueciam os lares mais humildes.
"Nesse tempo, quando as casas eram iluminadas com candeias a petróleo, não havia nada. Não havia luz, nem gás, éramos muito pobres e sofríamos com o frio", insistiu.
Olhando a janela com uma expressão serena, acomodada ao cinzento que escondia as serranias, foi discorrendo sobre as privações de outrora. A propósito da II Guerra Mundial, falou dos estranhos feijões que se comiam na altura, importados de países distantes cujo nome não sabia.
"Nesse tempo, passava-se fome negra. Não havia pão, nem couves, nem batas. Era fome de cão. Comprava-se um quilo de pão que tinha de ser dividido por dez pessoas. Quase só o cheirávamos", recorda.
Mais tarde, com cerca de 35 anos, quando a vista lhe começou a fugir por tanto bordar para ganhar a vida, teve de procurar outro modo de sustento.
Acabou como ajudante de doceira, numa padaria da zona.
Ali, mesmo nas noites mais gélidas, deixou de sentir frio, porque os fornos em brasa e o açúcar a ferver lhe aqueciam a alma e até, não raras vezes, queimavam as mãos a quem devia tantas horas ao descanso.
"Num dia trabalhava-se dia e meio para ganhar mais uns tostões", disse num tom trémulo, enquanto exibia as mãos enrugadas.
Mas depressa a sua expressão se alegrou quando lhe pedimos que descrevesse os doces que fazia.
Segurou o ombro do jornalista e disse prontamente: "Eram para gente pobre, mas saborosos. Rosquilhos e reloginhos, que eram vendidos nas feiras e festas".
Mas uma conversa da Lusa com Adelaide da Conceição não ficaria completa se a idosa não falasse do dia em que, com cerca de vinte anos, vestida de lavradeira, carregou na cabeça um açafate em vime, do qual tirou flores destinadas a António Salazar.
O governante de então - conta a octogenária - visitava Lousada e toda a população do concelho fora mobilizada.
"Estavam lá legionários de todo o concelho Tinham fardas muito lindas, com um barretinho na cabeça. Iam a cantar por Lousada fora. Foi uma festa muito linda, com música e foguetes. Vieram até aviões a botar flores e voavam rentinhos à casa", contou quase se atropelando nas palavras.
Nesse longínquo dia da década de 40 - afirmou - o homem mais rico de Lousada, Jaime de Pinho, que era conhecido de Salazar, ofereceu ao povo uma refeição, servida na sua grande quinta, o que fazia todos os anos.
"Matávamos a fome nesse dia. Andei oito quilómetros a pé para comer", acentuou.
Nos avanços e recuos da conversa, vezes sem conta marcados por expressões de um português já em desuso, que irradiavam uma energia contagiante, a idosa deteve-se noutro período que lhe deixou marcas profundas: quando viu partir os sobrinhos para o Ultramar:
"Chorávamos quando eles iam para a guerra. Pensávamos que nunca mais os iríamos ver. Mas quando regressaram os rapazes foi uma grande festa. Até se deitaram foguetes na aldeia", disse, quase chorando.