O "general sem medo" que fundou a TAP nasceu há cem anos
O centenário do nascimento de Humberto Delgado assinala-se segunda-feira com o lançamento de um livro sobre a carreira aeronáutica do piloto-aviador que fundou a TAP a pedido de Salazar, vinte anos antes de ser assassinado pelo regime.
Conhecido pelos portugueses desde 1958, a partir da sua candidatura a Presidente da República, como o "general sem medo", Humberto Delgado notabilizou-se primeiro numa carreira militar dedicada à aeronáutica e à aviação civil, ao serviço do regime de Salazar, de quem foi admirador e, mais tarde, principal opositor.
A Fundação Humberto Delgado, presidida pela filha mais nova do general, Iva Delgado, decidiu lembrar essa faceta, lançando, na segunda-feira, o livro "Humberto Delgado e a Aviação Civil", editado pela Chaves Ferreira Publicações e pela ANA-Aeroportos de Portugal.
A obra é da autoria de Frederico Rosa, neto de Delgado, doutorado em Etnologia pela Universidade de Paris, que se dedica desde 2001 à investigação da carreira militar e aeronáutica do avô e é actualmente coordenador do Arquivo Digital da Fundação Humberto Delgado.
Nascido a 15 de Maio de 1906 em Boquilobo, Torres Novas, frequentou o Colégio Militar entre 1917 e 1922 e a Escola do Exército, onde se formou em Artilharia em 1925.
Participou no golpe militar de 28 de Maio de 1926 que depôs o regime republicano que considerava ter "degradado o país", assinalou Frederico Rosa, em declarações à Agência Lusa.
Em 1928, optou pela carreira na aeronáutica obtendo o curso de oficial piloto aviador. Em 1942, participou nas negociações com a Inglaterra para a cedência da base nos Açores e, em 1944, assume a direcção do Secretariado de Aviação Civil. Um ano depois fundou a TAP - Transportes Aéreos Portugueses.
"O centenário do nascimento de Humberto Delgado é uma ocasião única para dar a conhecer o seu papel importantíssimo para o desenvolvimento da aeronáutica e para a criação de um sonho antigo.
Era humilhante para Portugal ser o único país que não tinha linhas aéreas para as colónias e Salazar chamou-o para dar à volta à situação", afirmou Frederico Rosa.
A obra abrange um período em que Humberto Delgado "ainda não é um dissidente, é um homem do regime", que "apesar disso foi sempre muito frontal" em relação às "coisas que não gostava", referiu Frederico Rosa.
"Mas durante muito tempo, ele achou que Salazar tinha posto em ordem as finanças do país, era um seu admirador", acrescentou.
A dissidência de Humberto Delgado, no entanto, "não foi repentina nem começou apenas na década de 50", como explica Frederico Rosa: "Ainda no início dos anos 40 ele dizia que o país tinha que levar uma grande volta, ele via as injustiças da ditadura, e não gostava dos compadrios e dos favorecimentos na instituição militar".
"Não foi por acaso que Humberto Delgado nunca esteve à frente de uma unidade militar. Inspirava receios, pela sua personalidade imprevisível e por ser muito frontal, e foi sempre empurrado para missões fora do país", acentuou.
O contacto com as democracias, britânica e dos Estados Unidos, surgiu nos anos 40, em plena II Guerra Mundial, proporcionando ao que viria a ser o adversário de Américo Tomás, na campanha presidencial de 1958, a percepção definitiva de que o país tinha que dar "uma grande volta".
Na dependência directa de Oliveira Salazar, Humberto Delgado adquiriu os primeiros aviões da TAP nos Estados Unidos da América e promoveu a formação dos primeiros pilotos junto da British Overseas Airways Corporation, do Reino Unido, e da companhia Ibéria, de Espanha.
A primeira carreira regular da TAP foi inaugurada em Setembro de 1946, entre Lisboa e Madrid, mas a concretização, três meses depois, de "um antigo sonho português", a ligação de Lisboa a Luanda e Lourenço Marques foi um dos momentos mais marcantes da carreira aeronáutica do general, como documenta a imprensa da época a que o livro de Frederico Rosa dá destaque.
O "Douglas DC3" partiu de Lisboa a 31 de Dezembro de 1946 e chegou no dia 6 de Janeiro a Lourenço Marques, "à hora fixada" e poisando "airosamente no campo de Mavalane" depois de ter "descansado em Luanda para orgulho e alegria dos portugueses de Angola", escreveu o Lourenço Marques Guardian, a 7 de Janeiro de 1947.
Uma década depois, Humberto Delgado, já "admirador de Winston Churchill" e "um atlantista" assumia em definitivo a sua dissidência quando decidiu aceitar candidatar-se a Presidente da República em nome da oposição democrática, referiu Frederico Rosa.
Vítima de fraude eleitoral e perseguido, exilou-se no Brasil, onde permaneceu durante vários anos e planeou a "acção directa" para derrubar o regime pelas armas.
"Ele defendeu, durante muito tempo, que o regime só cairia por força das armas. Esteve isolado nessa ideia. Não era um esquerdista, nem tinha nada a ver com os comunistas, que no início achavam que iria haver um levantamento popular. Humberto Delgado estava só na sua ideia mas, como se viu depois, ele tinha razão", assinalou Frederico Rosa.
Introduzindo-se disfarçado em Portugal, dirigiu-se a Beja na passagem do ano de 1962 a fim de tomar parte no assalto ao quartel, naquele que ficou conhecido como o golpe de Beja.
Falhado o plano para derrubar Salazar, conseguiu sair do país, e mantendo a convicção de que só um golpe militar derrubaria a ditadura, abandonou o Brasil e foi para a República da Argélia, de onde saiu em Fevereiro de 1965, atraído por uma cilada.
Pensando que ia encontrar-se com oficiais do Exército português para mais um golpe, tinha à sua espera uma brigada da PIDE, a polícia política da ditadura, que o assassinou, juntamente com a sua secretária, Arajaryr Campos.
O corpo de Delgado foi escondido no caminho de "Los Malos Pasos", a cerca de sete quilómetros de Villanueva del Fresno.