O que ganhamos ao dormir em concha? Lições de um pequeno mamífero

por Nuno Patrício - RTP
Foto:Ciências ULisboa/DR

Estamos a chegar ao inverno e com ele regressam as noites frias. Temperaturas menos apelativas que tentamos anular com recurso a roupas, a equipamentos térmicos ou mesmo uma boa fogueira. E se não houvesse tais recursos? Como é que, na verdade, faz a maioria dos animais para compensar essa lacuna? Ao que parece, "dormir em concha", algo que o ser humano também faz, parece ser a solução para pequenos mamíferos alvo de estudo do CESAM, do pólo de Ciências da Universidade de Lisboa.

Ter formas de controlar ou minimizar o frio, para o ser humano, foi desde a descoberta do fogo um meio de sobrevivência. Mas este feito é algo apenas adquirido por nós.

No inverno, as pessoas procuram estratégias que permitam conservar o calor corporal, passa-se mais tempo no interior de casa e usa-se roupa mais quente para sair à rua.

Na natureza o mundo animal teve de criar outras formas de superar esta barreira climática. Mais pêlo, mais gordura, mais penas, mais camadas adiposas, menos atividade física, enfim, um conjunto de soluções sempre no sentido de uma maior resistência às baixas temperaturas.

Mas ainda existem outras soluções e uma outra forma de conservar o calor durante o inverno é através da aglomeração de vários indivíduos. Um estudo realizado na Suíça, há três décadas, demonstrava que indivíduos de espécies que são predominantemente solitárias e vivem a maior parte do tempo sozinhos acabam por se juntar em abrigos durante os meses mais frios de forma a conservar o calor.

Fonte: livrovermelhodosmamiferos.pt/galeria/

Esta estratégia de ajuntamento é cientificamente apelidada de termorregulação social e é usada por pequenos mamíferos da espécie musaranho-de-dentes-brancos.
Durante a época de reprodução, machos e fêmeas formam casais monogâmicos e excluem outros indivíduos do seu território partilhado.
Os musaranhos-de-dentes-brancos partilham o seu território com vários indivíduos da mesma espécie e juntam-se no mesmo abrigo, quando não estão ativos, para se aquecerem e conservarem energia.

Estes estudos sugerem que esta espécie só utiliza a termorregulação social nos meses mais frios do ano.

O grupo de investigadores deste estudo conseguiu demonstrar ainda que os relacionamentos sociais não são exclusivamente determinados pela termorregulação, trazendo esta estratégia benefícios para os musaranhos, para além da economia de energia.

E a prova de que esta estratégia funciona é que nós, os seres humanos, também tiramos “vários benefícios” deste tipo de termorregulação natural.

Fonte: GQM2BIO/DR
Musaranhos estudados no Parque Natural de Sintra-Cascais

Para entender se esta estratégia decorria apenas nas espécies que habitavam no norte da Europa, investigadores portugueses quiseram replicar a experiência e capturaram musaranhos selvagens no Parque Natural de Sintra-Cascais em duas estações do ano, no inverno e no verão.

Os pequenos mamíferos foram depois transportados para um biotério e divididos em grupos de seis indivíduos, para que o seu comportamento social pudesse ser observado.

Mais tarde, foi medido o consumo de oxigénio dos diferentes grupos de indivíduos para avaliar a poupança de energia durante a termorregulação social.

No decurso da observação, os investigadores registaram alguns comportamentos curiosos.


Três musaranhos-de-dentes-brancos partilham um abrigo
Fonte: Flávio Oliveira / CESAM


O responsável pelo estudo, Flávio Oliveira, doutorado em Biologia e Ecologia das Alterações Globais pela Ciências ULisboa, diz que os indivíduos se juntam no mesmo abrigo no inverno, mas, surpreendentemente, também se ajuntam no verão.

“No inverno a partilha de abrigos é motivada pela poupança energética pois quanto mais animais ocupam o mesmo abrigo, menor o consumo de oxigénio; no verão, a poupança energética só se verificou em ajuntamentos até três animais, não se tendo verificado a mesma poupança em ajuntamentos com mais de três musaranhos”, explica.

O grupo de investigadores conclui ainda que a termorregulação social traz mais benefícios energéticos para os musaranhos no inverno do que no verão. No entanto, a aglomeração de indivíduos também ocorre em temperaturas quentes, quando os benefícios energéticos já não são significativos.

Estas observações sugerem que os ajuntamentos trazem benefícios para os musaranhos para além da economia energética. A interação social entre os indivíduos também influencia a massa corporal, a alimentação e o torpor diário - estratégia de conservação de energia, que consiste na redução do metabolismo e da temperatura corporal dos indivíduos durante um curto período de tempo.

“Esta estratégia foi usada com mais frequência quando os musaranhos estavam isolados, ou seja, é provável que a termorregulação social compense a poupança energética que advém do torpor, e não seja necessário recorrer a essa estratégia”, esclarece o técnico superior do DBA Ciências ULisboa, Joaquim Tapisso.

Fonte: Free nature images/DR

Uma outra observação que o grupo registou relaciona-se com a competitividade entre os indivíduos da espécie.

Observaram que há uma grande competitividade por alimento no inverno, durante os primeiros dias após os musaranhos se juntarem, um comportamento que não se verificou no verão. “Parece contraditório que a estação do ano em que mais se esperava que a socialidade fosse superior seja também aquela em que se observa mais competição”, afirma Rita Monarca, investigadora pós-doutoral no CESAM Ciências ULisboa.

Também a participar neste projeto, a professora do Departamento de Biologia Animal Maria de Luz Mathias refere que“é sempre interessante estudar o comportamento das espécies que vivem perto de nós e apercebermo-nos que o conhecimento existente noutros contextos não se replica na nossa realidade próxima.”

Na Suíça, os invernos são mais frios e chuvosos, o alimento não é tão abundante, e esta espécie enfrenta competição de outras espécies de musaranhos pelos recursos disponíveis. Assim, a reprodução ocorre apenas na primavera e verão.
A equipa de investigação admite que a discrepância entre resultados poderá dever-se às diferenças na competitividade e nas condições ambientais entre Portugal e a Suíça.

Em Portugal, as condições climáticas são relativamente mais estáveis, a espécie é o musaranho dominante em praticamente todos os habitats e reproduz-se durante quase todo o ano. É provável que o comportamento social reflita estas diferenças e seja menos variável ao longo do ano em habitats onde as condições ambientais são mais constantes.

Os investigadores consideram que há ainda muito a aprender sobre as respostas ecológicas e comportamentais dos animais face às condições ambientais, nomeadamente de que forma o comportamento social da espécie irá alterar tendo em conta o fenómeno das alterações climáticas.

O estudo contou com a participação do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM) polo da Ciências ULisboa lidera descoberta sobre o comportamento social do musaranho-de-dentes-brancos. “Social thermoregulation in Mediterranean greater white-toothed shrews (Crocidura russula)” é o título do artigo publicado em outubro deste ano, no 75.º volume da revista Behavioral Ecology and Sociobiology.

Este trabalho - financiado pela FCT e realizado em colaboração com a empresa Parques de Sintra – Monte da Lua - é resultado do trabalho de colaboração entre cinco coautores: Flávio G. Oliveira, recém-doutorado em Biologia e Ecologia das Alterações Globais pela Ciências ULisboa; Rita I. Monarca, investigadora pós-doutoral no CESAM Ciências ULisboa desde 2026; Leszek Rychlik, professor da Faculdade de Biologia da Universidade Adam Mickiewicz de Poznań, na Polónia; Maria da Luz Mathias, professora do Departamento de Biologia Animal e Joaquim T. Tapisso, antigo aluno da Faculdade, técnico superior do DBA Ciências ULisboa desde 2017 e colaborador do CESAM Ciências ULisboa.

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