ONGD acusam Governo de "manter no segredo dos deuses" futura Estratégia da Cooperação Portuguesa
O Governo foi hoje acusado de manter a futura Estratégia da Cooperação Portuguesa "no segredo dos deuses" e o processo de preparação da reforma foi fortemente criticado pelos intervenientes num seminário organizado pela Plataforma das ONGD em Lisboa.
"Esta estratégia de cooperação está no segredo dos deuses, não sabemos nada sobre ela, fomos consultados... Fomos chamados a colaborar por escrito, mas a partir daí mais nada", acusou Cristina Cruz, presidente do conselho diretivo do CIDAC -- Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral, uma das oradoras no seminário "Portugal e o Desenvolvimento Global num mundo em mudança", que decorreu esta tarde na Fundação Gulbenkian em Lisboa.
A ausência de qualquer representante da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação (SENEC) ou do Instituto Camões, explicada no início do evento como uma "impossibilidade de agenda" avocada por ambas as instituições, foi "lida" pela mesma interveniente como sendo um sinal de falta de "prioridade" atribuída pelo Governo à discussão do documento com a sociedade civil.
"Esta estratégia de cooperação está no segredo dos deuses, não sabemos nada sobre ela, fomos consultados... Fomos chamados a colaborar por escrito, mas a partir daí mais nada. E tínhamos a expectativa de que este encontro hoje, aqui, que foi adiado [quase dois anos], fosse um desses momentos em que tivéssemos a oportunidade de sentar os diferentes atores e conversar sobre a futura estratégia", lamentou Cruz.
"Pergunto muito sinceramente que leitura devemos fazer do facto de nem o gabinete do secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação (SENEC, Francisco André) nem o Instituto Camões se fazerem representar aqui hoje para intervir. Penso que temos que fazer uma leitura disto", continuou.
"A leitura que faço a quente é que não é uma prioridade. Não é uma prioridade a discussão com setores da sociedade civil. O documento está a ser elaborado. A experiência recente diz-nos que vai ser apresentado, provavelmente numa versão muito final, muito definitiva, vamos poder comentar, mas tenho poucas expectativas de que vamos poder, de facto, contribuir e que as nossas contribuições sejam ouvidas. É uma expectativa. Deixo aqui uma margem para ser completamente surpreendida", concluiu.
A posição de Cristina Cruz foi secundada pela generalidade dos oradores, que criticaram a forma em "petit comité" como esta reforma está a ser elaborada.
Os oradores apontaram ainda como "crucial" que a futura política pública seja feita de forma a ser "apropriada" pelos partidos representados na Assembleia da República e tornar-se um objeto de "política de estado", na expressão de Ana Paula Fernandes, responsável da unidade de Foresight, Outreach and Policy Reform da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), que participou no seminário através de uma plataforma digital.
Fernandes explicou a "prática" neste tipo de reformas nos outros países da OCDE, começando por identificar "duas responsabilidades: a do Parlamento de querer saber e a de quem é responsável pela política pública de prestar contas".
"Nessa perspetiva, em qualquer área de política pública, faz sentido que o Parlamento perceba do que estamos a falar, que tenha uma política de Estado em relação à cooperação para o desenvolvimento e queira saber. Porque se trata, não só de dinheiros públicos, mas também do potencial de visibilidade do país e da importância do país a nível internacional", sublinhou.
"Penso que a discussão no Parlamento é extremamente importante. A apropriação da estratégia pelos vários partidos no Parlamento pode ser extremamente importante, numa lógica de que a política de cooperação não tem que ser dependente de cada Governo ou das pessoas que passam pelos diferentes governos. Devia ser, de facto, uma área de consenso da política nacional", defendeu também Cristina Cruz.
O Governo deverá apresentar o documento à Comissão Parlamentar dos Negócios Estrangeiros nos próximos dias, mas Luís Mah, professor Programa em Estudos de Desenvolvimento na Lisbon School of Economics and Management do ISEG, considerou que teria sido importante que a Estratégia tivesse sido distribuída às organização da sociedade civil "para se poderem preparar, estar na comissão e poderem discutir com a comissão".
"É um bocado estranho não haver esse processo político: dos atores interessados na cooperação não terem acesso à Estratégia", acrescentou.
O seminário foi ainda palco de várias intervenções que defenderam a necessidade de Portugal respeitar os seus "compromissos internacionais" nomeadamente, nos montantes que destina anualmente à Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD).
A APD "está muito aquém do compromisso que Portugal assumiu" de destinar 0,7% do Rendimento Nacional Bruto, sendo que não chega aos 0,2%, sublinhou Ana Patrícia Fonseca, presidente da Plataforma Portuguesa das ONGD.
"Essa continua a ser uma das nossas recomendações, que Portugal possa aumentar, sobretudo, definir um roteiro para aumentar os níveis da APD até 2030, fazendo coincidir com a Agenda 2030, sobretudo num momento como este, em que a história acelerou com a questão da pandemia, as desigualdades agravaram-se e recuámos 10 anos no cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas", afirmou à Lusa Ana Patrícia Fonseca.
"Neste momento, mais do que nunca, a APD é um instrumento fundamental na solidariedade global, na cooperação internacional, e Portugal pode fazer mais e ter um compromisso mais ambicioso com o cumprimento do seu próprio compromisso", acrescentou.