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Parece "uma esquina do Bairro Alto". Barulho à noite em Lisboa chega à Praça das Flores
Na zona do Príncipe Real, esta praça está cada vez mais popular e turística. Os moradores lamentam o barulho à noite que a fama trouxe: dizem que parece o Bairro Alto - ali tão perto - porque muitas pessoas bebem e convivem aqui.
"Silêncio por favor respeite os residentes". Parece ter servido de pouco esta discreta mensagem instalada no ano passado pela Junta da Misericórdia em vários locais da freguesia, incluindo na Praça das Flores.
Por volta do meio-dia, quando a Antena 1 visita o Jardim Fialho de Almeida (o outro nome da praça), os bancos vão ficando ocupados. Quando alguém sai, outros sentam-se pouco tempo depois. Ora estão no telemóvel, ora conversam, ora leem.
“Tento vir aqui todos os dias, sobretudo durante a manhã”, diz o luso-francês Mathias Moreira, com 30 anos, enquanto escreve num diário “uma lista de gratidão com as boas coisas que me estão a acontecer”.
Mathias voltou de Paris para Lisboa há quatro anos e sente que na praça pode “reconectar com o interior, mas também ver a natureza e a vida que passa à nossa volta”.
Já Emília Gouveia, com mais de 90 anos, está sentada noutro banco a fazer algum tempo antes de ir às compras, até que passam duas vizinhas com quem troca dois dedos de conversa. Embalada pela conversa inicial com a Antena 1, as mudanças que têm atravessado este local são o tema entre as três.
“Se os andares não fossem nossos, já tínhamos ido à vida”, comentam sobre um Príncipe Real cada vez mais gentrificado e turístico.
Lurdes Homem diz que no seu prédio há vários residentes estrangeiros - o quarto e o quinto andar são franceses, o segundo é alemão - enquanto o rés-do-chão é alojamento local. Diz mesmo que a zona está a ficar descaracterizada: “Isto aqui tinha talhos, farmácias, mercearias, bancos... não temos nada”.
Foi uma mudança “tremenda” nos últimos dois anos, nota Anabela Fernandes, pois “já havia muitos turistas mesmo à noite, mas agora há muito mais”.
A Praça das Flores é um oásis verde no meio de tantas ruas onde as árvores escasseiam. Quem sobe encontra o Jardim do Príncipe Real e quem desce acaba na Praça de São Bento, ao lado da Assembleia da República.
O ambiente calmo e harmonioso descrito por vários moradores e turistas desvanece ao longo do dia. As esplanadas começam a ser instaladas com o passar das horas e vão se juntando mais pessoas. O auge do ruído é quando o sol se põe.
Cristiana Bastos vive no Príncipe Real há oito anos
“À noite é como uma esquina do Bairro Alto em ponto grande e aí é raro encontrar alguém português”, afirma Cristiana Bastos, descrevendo que fica muita gente “a conviver e a beber um copo - não fazem nada diabólico”.
Moradora umas ruas acima, mudou-se para o Príncipe Real há oito anos com o companheiro e o filho. Diz que a Praça das Flores é neste momento “um ponto mais internacional que português”, acreditando ser atrativa pelas “cinco estrelas da internet disto e daquilo” e que é um lugar de alojamento local e de nómadas digitais.
“Transformou-se muito e é um espelho do que acontece na cidade: acolheram muita gente de fora, as rendas subiram brutalmente e o espaço para as pessoas locais fica mais reduzido”, afirma.
Cristiana não deixou de vir aqui, mas confessa que já é mais raro: “O quiosque e os bancos estão sempre cheios”.
Reportagem Antena 1
Barulho? “Estou farta disto”
Com os bares e os restaurantes ainda a arrancar no final da manhã, a esplanada do Pão de Canela é das poucas que já está com fulgor. Assim será até à hora de fecho depois das 23 horas.
“Recebemos muita gente que trabalha na Assembleia da República, muitos portugueses que moram aqui e estrangeiros”, afirma Filipa Gonçalves, uma das gerentes deste restaurante aberto desde 1998. Sublinha que os estrangeiros residentes que por aqui passam cresceram depois da pandemia, acompanhando o boom turístico.
Depois de fechados os bares e os restaurantes, o convívio continua na rua
Harjeet Johal deixou o Reino Unido e instalou-se há quatro anos em Lisboa. Ainda teve outra casa antes de vir para as imediações da Praça das Flores, “um ótimo lugar para entender o estado atual de Portugal”, uma versão “contemporânea”.
Reconhece a preocupação de outros moradores, de haver cada vez mais movimento. No entanto, acha que o barulho à noite não é feito apenas de turistas. Admite até que às vezes demora a adormecer porque a rua onde vive fica “um pouco barulhenta”, mas sabia que era o caso quando comprou o apartamento. Harjeet não culpa os moradores, aponta antes às autarquias a responsabilidade de resolver.
Harjeet Johal está a aprender português
Prefere então concentrar-se nas coisas boas: Harjeet é escritor e podcaster, e tenta inspirar-se nas histórias locais para escrever. Costuma vir para o restaurante escrever, um trabalho “melhorado pelo fluxo de pessoas que passam por aqui, tanto os turistas como os moradores”.
“ Os bares fecham todos e a malta vai para o jardim”, descreve.
Mais impaciente, Maria Lucília França é taxativa: “Isto é pior que o Bairro Alto”, uma das principais zonas de diversão noturna de Lisboa e que nem a um quilómetro fica da praça.
Maria Gonçalves discorda com a cabeça, considerando um exagero a comparação, mas Lucília, que também mora virada para a praça, diz que, se tivesse dinheiro para outra renda, mudaria de casa.
“Pode ter a certeza, estou farta disto. Moro aqui há 90 anos, não há dois dias”, diz exasperada.
Reportagem emitida e publicada na manhã de 15 de setembro, atualizada posteriormente para corrigir o nome de uma entrevistada