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Pedrógão Grande. Viagem às estórias que o fogo deixou pelas aldeias

Na última semana, Portugal assistiu ao mais mortífero incêndio de sempre em território luso. Sessenta e quatro pessoas morreram, houve aldeias ceifadas e vidas destruídas. O medo viveu ao lado de histórias de heroísmo. Contamos as estórias que agora preenchem dezenas de aldeias esquecidas, muitas delas pintadas a cinza.

O fogo começava a 17 de junho de 2017. Em Escalos Fundeiros, tinha início o incêndio que se tornaria no mais mortífero fogo de que Portugal tem memória. A Proteção Civil registava a ocorrência às 14h43 de sábado, era então um fogo como há centenas, todos os anos, em Portugal.

As chamas ganhavam dimensão ao longo do dia, e maior notoriedade nos órgãos de comunicação social. Ao início da noite, as notícias de feridos. Mas nada fazia prever o anúncio feito pelo secretário de Estado pouco antes da meia-noite. A expressão "19 vítimas mortais" parecia irreal.

Mas o pior ainda estava para chegar. Agora, sabemos que o fogo de Pedrógão Grande matou pelo menos 64 pessoas, dizimou dezenas de milhares de hectares de floresta e várias aldeias da região centro.

Os portugueses habituaram-se nos últimos dias a ouvir falar em Escalos Fundeiros, Cadafaz, Pobrais, Nodeirinho e outras tantas aldeias próximas de Pedrógão Grande. São territórios, por vezes esquecidos, que as chamas trouxeram para a ordem do dia.

O fogo matou, ceifou aldeias e deixou estórias naquele território. Há vidas arruinadas, empresas destruídas, heróis desconhecidos e locais que se salvaram. Viajamos pelas estórias das povoações afetadas pelo fogo nos territórios que a tragédia resgatou do esquecimento a que interioridade as tinha condenado.



Pobrais
“Nunca mais. Nunca mais na vida”. A convicção é apresentada por Emília, uma das sobreviventes de Pobrais, a aldeia mais próxima da fatídica estrada nacional 236-1. Depois da tragédia, a aldeia nunca mais será a mesma.

No passado sábado, Pobrais perdeu pelo menos 11 dos seus 38 moradores. O fogo chegou àquela pequena aldeia num breve instante. Quem decidiu fugir acabou por ser apanhado pelas chamas.

Emília também pensou em fugir mas não conseguiu abrir o portão. “Não fechava, nem abria. Ficámos ali um bocado e eu disse: temos de ficar. O portão não se abre e já não se vê estrada, não se vê nada por onde sair”, relata à RTP. Talvez tenha sido melhor assim.

Claudino ainda pegou no carro mas conseguiu escapar a tempo, conta à agência Lusa. "Ia na estrada da morte e voltei para trás sempre debaixo de fogo" e "fartei-me de gritar", alertando outros automobilistas para fazerem o mesmo, mas nem todos o ouviram ou entenderam que essa era a melhor solução, lamenta.



Nodeirinho
Cinzas, carros queimados, casas em ruína e telhados no chão. Era este o cenário à entrada de Nodeirinho, a povoação chamada de aldeia mártir dos incêndios. Quando a RTP chega ao local, na passada segunda-feira, não havia forma de chegar de carro à aldeia.

Mal se entra na povoação, dois carros carbonizados, no meio da estrada, são o sinal do desespero vivido no dia 17 de junho. O chão está em cinzas, as árvores assemelham-se a esqueletos que ficaram de pé. De uma casa, restam só as paredes. As portas arderam, o telhado cedeu.

O cenário retrata a dor da população. Naquela pequena aldeia do norte do distrito de Leiria, não há família que tenha escapado à tragédia. “Nós conhecemos toda a gente, as pessoas que morreram. Conhecíamo-nos todos muito bem”, conta Fernando.

Naquele sábado, decidiu ficar em casa. É um dos sobreviventes de Nodeirinho. A aldeia perdeu 11 dos seus habitantes, cerca de um terço da população.


Figueira
A sul do IC8, também a aldeia de Figueira foi afetada pelo fogo. Apesar das chamas, Celeste decidiu ficar na aldeia. "Eu não fujo. Parece o fim do mundo. Se a gente tiver de morrer, se há de morrer noutro lado, morre aqui", justifica a habitante de Figueira.

A morte não chegou a Figueira mas há quem tenha perdido quase tudo. Logo na terça-feira, a povoação tentava recomeçar do zero. Com a casa destruída e sem dinheiro, resta pedir ajuda. É preciso comida mas também apoio psicológico.

Rosalinda perdeu tudo no fogo. "Fiquei só com a roupa do corpo", conta à RTP. Perderam-se os "móveis antigos que eram a coisa mais antiga do mundo" e toda a casa. Celeste queixa-se do mesmo. Será possível ultrapassar isto? "Não há outro remédio. Se Deus quiser há de ajudar a gente", acredita.


Mó Pequena
Vinte e quatro horas mudaram por completo o trajeto até Mó Pequena. De tal forma que a família Antunes mal reconhece a paisagem quando regressa a casa no domingo.

A RTP acompanha o regresso a casa de Fátima e das filhas Susana e Alice. A mãe já sabe o que a espera. Esteve em casa às primeiras horas da manhã de domingo para constatar os estragos. Para ver o que perdeu e preparar as filhas para o que encontrariam. Mas não há preparação possível.

O cenário é desolador. A habitação está destruída. Vê-se um carro carbonizado, uma mota desfeita, uma fogueira ainda acesa, a vegetação moribunda. O fogo engoliu ainda o enxoval da filha de Fátima. Sobreviveram alguns animais. "Não sei como estes animais se salvaram. Mesmo assim ainda é o nosso consolo", diz à RTP.


Salaborda Velha
Enquanto Portugal segue o combate às chamas e a contagem de vítimas pela televisão, o cenário é outro no terreno. Nas aldeias afetadas procuram-se respostas, buscam-se os rastos de quem está desaparecido.

Assim foi em Salaborda Velha. Durante dois dias, vários habitantes da povoação procuram os Lindeboom, uma família holandesa que mora naquela aldeia perdida no meio da serra.

“É um casal jovem, talvez na casa dos 40 anos. Os filhos nunca os consegui contar, mas sei que eram muitos”, conta Jorge. Ao todo são seis filhos.

A boa notícia acaba por chegar dois dias depois do incêndio. Os Lindeboom estavam fora de casa quando o fogo começou e regressaram bem, já depois das chamas terem passado por ali. Ao contrário de Jorge, não assistiram ao fogo.

“Isto foi cada um por si. Não fugi, fiquei em casa. E assim talvez tenha salvo a minha casa”, conta.


Quinta da Fonte
No meio de dezenas de quilómetros de terra queimada há uma quinta que escapa ao incêndio. O fogo destrói tudo em redor, assusta os proprietários, com o fogo a lavrar descontrolado.

Parece por isso inexplicável que, apesar do inferno ali vivido, a Quinta da Fonte de Liedewij Schieving escape. A resposta estará na vegetação ali colocada. Não são pinheiros. Não são eucaliptos.

As árvores centenárias da quinta continuam de pé: as oliveiras, os carvalhos, os sabugueiros e os castanheiros. Espécies que são mais resistentes ao fogo e que, já em incêndios passados, tinham escapado à fúria das chamas.

Para Liedewij, este cenário mostra como é tempo de pensar a floresta e reordenar o território. “A monocultura é uma ideia muito má. Por isso é que avança tão rápido”, afirma. A proprietária da Quinta da Fonte acredita, mesmo assim, que poderia ter sido pior. Se alguns dos eucaliptos não tivessem sido cortados recentemente.


Cadafaz
A ordem é para sair. Retirar a população o mais rapidamente possível para evitar novas vítimas. A instrução repete-se em muitas aldeias do centro do país e chega também a Cadafaz, no concelho de Góis.

A aldeia é evacuada mas nem toda a gente resistiu a ficar longe. Com as chamas por perto, seis homens decidem regressar ao lugar onde nasceram para desafiar o perigo e defender as habitações rodeadas pelo fogo.

“Estamos aqui para baixo e para cima a ver se não arde nenhuma casa”, explica um dos homens à RTP. A falta de meios é evidente, sem terem mangueiras para dar uso às bocas-de-incêndio da localidade.

Ficam por sua conta e risco, apesar da insistência das autoridades para que abandonassem o local. “A GNR ameaçou. Conseguiu mandar o meu pai embora. A autoridade estava até um bocado bruta para nos obrigar a sair”, conta Álvaro. “A GNR até disse: não querem ir, ficam à vossa responsabilidade”, complementa um dos seus companheiros.

A ação do "grupo dos seis" merece elogios de todos. Afinal, a aldeia foi poupada, os animais de criação que ficaram para trás salvaram-se. "Foram uns heróis", reconhece Maria Amélia, uma das moradoras da aldeia, à agência Lusa.


Moita
Floresta, pessoas, carros. O fogo não teve piedade, nem com os empregos. Cerca de cem empregos são destruídos na região centro. Na povoação de Moita, em Castanheira de Pêra, uma serração fica completamente destruída. Perdem-se o edifício, as máquinas, os equipamentos e cinquenta postos de trabalho.

A serração “Progresso” fazia parte da paisagem da Moita há mais de duas décadas, empregando 50 pessoas de 36 famílias. O futuro é agora incerto para a empresa que exportava toda a produção para Espanha. A autarquia promete ajudar, os trabalhadores também. Mas Manuela Tomás sabe que não será fácil.

“Mas eles também não têm para comer. É tudo gente pobre. Agora nem com uma batata ficaram para comer, nem uma couve nem nada. Ardeu tudo nos quintais, morreu muito animal por aí. Que é que as pessoas vão comer?”, questiona-se a proprietária do negócio familiar. Na serração trabalhava também o filho e a nora de Manuela.


Campelo
Ardeu tudo à volta. Mas não ardeu uma única casa em Campelo. O retrato é feito à RTP por Paulo. A aldeia do concelho de Pedrógão Grande sobrevive às chamas e torna-se uma ilha verde no meio de uma floresta negra.

Paulo é um dos responsáveis pela resistência de Campelo às chamas. Ele e o irmão estão de visita à mãe nos dias da tragédia de Pedrógão Grande. Combatem o fogo durante toda a noite.

Estão sozinhos a defender a aldeia, sem a ajuda de bombeiros ou das autoridades. O fogo “passou por detrás desta garagem. Consegui arrombar esta porta, retirei umas mangueiras que o meu amigo tem. Consegui apagar o fogo mesmo à entrada do muro”, explica Paulo.

Os dois irmãos retiraram da aldeia os 16 habitantes, quase todos idosos. Ajudaram Manuela que, em 79 anos de vida, nunca tinha vivido nada assim. “Não tivemos ninguém. Telefonei para os bombeiros de Figueiró por três vezes e ninguém me atendeu. As ajudas que tivemos foram estas. Fomos só nós. Mais nada”, recorda.


Balsa
Da tragédia de Pedrógão Grande saltam histórias de desolação e dor. Vê-se também o melhor de um povo, de quem ajudou e da onda solidária que atravessa o país. O homem mostra também a outra face.

Assim foi em Balsa, no concelho de Castanheira de Pera. Às casas queimadas e vidas destruídas, seguem-se os assaltos. “Fiquei sem nada. Na segunda-feira de manhã, quando cheguei aqui, encontro a casa assaltada. O pouco ouro que a minha mulher lá tinha levaram-no”, explica Germano.

“Que é que eu de fazer? Tenho que me calar”, suspira, antes de repetir: “tenho de me calar”. O caso de Germano não é único, confirma a autarquia. “Achamos de uma falta de sensibilidade, de calor, de humanidade, depois de uma tragédia destas, haver malandros, indivíduos que são piores que animais, a aproveitarem-se de uma tragédia destas”, constata Filipe, um dos funcionários municipais de Castanheira de Pera.