Portugal soma condenações no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. O que dizem os juristas?

Em dez anos, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) condenou o Estado português 18 vezes por violação da liberdade de expressão, o triplo da média dos 28 Estados-membros. E o Estado teve de pagar mais de 300 mil euros em indemnizações. Há juízes que consideram que a leitura do TEDH não vincula os tribunais portugueses. Uma situação que, para alguns dos juristas ouvidos pela RTP, acaba por "colidir com princípios constitucionais fundamentais".

Portugal é dos países que mais condenações sofrem por parte do TEDH por violação da liberdade de expressão, na sequência de processos em que a justiça condenou jornalistas ou outros cidadãos por difamação.

De acordo com dados oficiais do TEDH, citados no relatório Criminalização da Difamação em Portugal, elaborado pelo International Press Institute (IPI), entre janeiro de 2005 e janeiro de 2015 Portugal tinha sido condenado 18 vezes.

Os últimos dados, disponibilizados à RTP pelo Ministério da Justiça, dizem respeito apenas ao período de 1 de janeiro de 2006 a 31 de dezembro de 2016 e mostram que, entretanto, Portugal já foi condenado mais cinco vezes, sendo o Estado obrigado a pagar 303.277,52 euros. Ficam por esclarecer os valores relativos ao período compreendido entre 1978 a 2005.

Num acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 26 de janeiro, o deputado madeirense do PTP José Manuel Coelho foi condenado a um ano de prisão efetiva, cumprível ao fim de semana.

Em março do ano passado, o deputado madeirense tinha sido absolvido do crime de difamação pelo qual estava acusado devido a declarações proferidas em 2011 contra o advogado e antigo dirigente do PCTP/MRPP Garcia Pereira, processo no qual o antigo político pediu um euro de indemnização. A sentença foi então proferida pela Instância Local Criminal de Lisboa, no Campus da Justiça.José Manuel Coelho tinha classificado o advogado Garcia Pereira de ser um "agente da CIA" e de "fazer processos aos democratas da Madeira" a pedido de Alberto João Jardim, ex-presidente do Governo Regional.

O Tribunal da Relação de Lisboa considerou agora que as acusações feitas pelo deputado madeirense se mostravam "completamente desajustadas e desenquadradas do tema político a que supostamente visavam responder, apresentando-se como mera vindicta política, mas também pessoal".

"Não pode, pois, o direito à liberdade de expressão aniquilar ou esmagar direito à honra e consideração do ofendido, pois a isso se opõe, desde logo, a Constituição da República Portuguesa, que limita a restrição dos direitos, liberdades e garantias, as quais não podem 'diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais".

A decisão do tribunal de fazer com que José Manuel Coelho cumpra pena de prisão efetiva já mereceu a reação do líder do PTP na Madeira, que prometeu recorrer.
Em conflito com o direito interno
Nos últimos anos o Estado português tem perdido boa parte de casos que dão entrada no TEDH, sendo obrigado a indemnizar os queixosos, com base no artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Sobre esta matéria, os juízes do Tribunal da Relação justificam, no mesmo acórdão, que “a interpretação dominante que o TEDH tem vindo a fazer do artigo 10.º da CEDH - no sentido de que, no exercício do direito à liberdade de expressão, é permitida uma ofensa quase ilimitada do direito à honra das figuras públicas e particularmente dos políticos – não vincula os tribunais portugueses”.

E acrescentam: “Esta leitura da CEDH por parte do TEDH conflitua, a nosso ver, com o direito interno português e a interpretação que a maioria da doutrina e da jurisprudência fazem da colisão de direitos constitucionais com igual dignidade abstrata. Porém, em nosso entender, tal jurisprudência comunitária não é vinculativa dos tribunais portugueses”.



Uma decisão que serviu para o próprio José Manuel Coelho reiterar as críticas ao sistema judicial português.

“Qualquer afirmação nos dias que correm pode ser criminalizada como atentado ao bom nome e até ofensa a Órgão de Soberania ou pessoa coletiva por exemplo. Com isto aplica-se a lei da mordaça à imprensa, a qualquer órgão de informação; assim como a qualquer cidadão que exerça o seu direito cívico de protestar contra a injustiça ou alguma arbitrariedade de que tenha sido vítima. O próprio Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem condenado sistematicamente o Estado Português por violação da liberdade de expressão. Se hoje temos ainda alguma liberdade de imprensa em Portugal, devemos ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem”, disse José Manuel Coelho ao Funchal Notícias.
"Tribunais devem respeitar jusrisprudência do TEDH"
Ouvido pela RTP, Pedro Tenreiro Biscaia, advogado e ex-vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, disse que, “no que concerne à liberdade de expressão, ela deve ser o mais ampla possível e qualquer decisão dos tribunais portugueses deve respeitar a jurisprudência que se encontra fixada pelo TEDH e qualquer decisão que seja contrária vai colidir com princípios constitucionais fundamentais”.


Sem se pronunciar sobre o caso concreto, o advogado disse ainda à RTP que, “embora não haja uma vinculação expressa, tem que haver um respeito do que é uma jurisprudência, que é quase que unânime sobre a matéria que está a discutir”.

Sobre o facto de o Estado português ter perdido boa parte de casos que dão entrada no TEDH, sendo obrigado a indemnizar os queixosos, Pedro Tenreiro Biscaia justifica que “algo vai mal na justiça portuguesa. Por vezes, existe uma falha no reconhecimento dos direitos dos cidadãos e nos direitos de cidadania, no sentido de uma cidadania efetiva”.

“Neste caso em concreto, a liberdade de expressão vai levar a um extremo quase de caricatura, excessiva, mas enfim é o respeito. Está dentro das liberdades de cada cidadão de criticar os diferentes atores políticos”.

“É uma questão de interpretação e não só. E de respeito de decisões de tribunais internacionais às quais Portugal está obrigado, por Tratado e por respeito. Há sempre diversas interpretações para diferentes assuntos. Sendo certo que, nesta matéria, não acatar o que vão sendo já decisões unânimes e decisões constantes sobre este campo, é evidente que tem depois consequências negativas para o próprio Estado português, que depois é condenado lá fora”.

“O que está a ser decidido em termos de TEDH tem que ser observado e deve ser observado porque faz parte das regras de relações internacionais que existem. Essas restrições internas também dependem um pouco da interpretação de quem vai aplicar a lei, do julgador. Entende aqui ser mais restritiva, o que vai ao arrepio do que está a ser decidido lá fora no TEDH”.
“É um problema de hierarquia das fontes”
Carlos Pinto Abreu, o atual presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, considera que a jurisprudência do TEDH não tem apenas uma função programática, podendo ter também uma função imperativa e coerciva do Estado português, consequência da legislação e da jurisprudência nacionais.

E explica porquê: “Uma convenção internacional, CEDH, pactos internacionais que são no fundo obrigações do Estado português e obrigações que se impõem a todos, aos cidadãos mas sobretudo aos entes públicos, todo o edifício jurisdicional. Portanto, nesse aspeto, o TEDH, embora não tenha relativamente aos processos concretos uma qualquer direta influência, pode ter indiretamente influência na condenação do Estado português por um lado, mas pode ter também uma influência mediata na alteração de determinadas decisões por via da revisão extraordinária, da sentença ou do acórdão proferida”.

“Estas são as dimensões em que o TEDH no fundo age, decide e influencia não apenas a nossa legislação, que se deve conformar com os princípios fundamentais do Direito universal, Direitos Humanos universais e Direitos Humanos consagrados no TEDH e nos vários instrumentos internacionais e também por via da influência que já referi”.

Apesar de não fazer nenhum comentário em relação ao caso concreto, Pinto Abreu diz que “os tribunais portugueses devem aplicar a lei internacional imperativa e a lei nacional imperativa. É isto que diz a Constituição e é isto que deverá ser dito por quem profere o direito no caso concreto”.

Quanto ao facto de as leis diferirem em diversos pontos, o advogado responde que “é um problema de interpretação, é um problema de hierarquia das fontes e isso é feito nos tribunais todos os dias”.

Pinto Abreu refere ainda que os tribunais podem decidir bem ou mal e, por isso, existem os vários instrumentos ou remédios possíveis para aquilo que cada um entende se foi bem ou mal decidido.

"Não é uma batalha campal. Não queiramos fazer disto uma espécie de fratura entre os tribunais internacionais e os tribunais nacionais. As decisões são proferidas e são suscetíveis de impugnação e, naquelas que não são, são suscetíveis de crítica. Eu como advogado referi-me apenas à generalidade porque não devo, não posso criticar decisões ou casos concretos que ainda se encontram pendentes".
"Lei é vinculativa mas prevê exceções"
Já Isabel Meirelles, advogada especialista em assuntos internacionais, considera que a lei portuguesa é vinculativa, mas também é verdade que o n.º 2 do artigo 10.º prevê exceções.

“Isto dá uma margem de manobra aos tribunais portugueses e à jurisprudência nacional para poder de forma sustentada, de forma fundamentada, nestas derrogações previstas no n.º 2 da Convenção, esta liberdade de expressão”.

Para esta especialista em assuntos internacionais, a liberdade de expressão não é ilimitada. "Sofre constrangimentos, exceções e derrogações. O tribunal não tem uma interpretação uniforme. Cada caso é um caso. Face às circunstâncias do caso concreto, estas normas embora sejam gerais e abstratas não podem ser desligadas de cada caso. O Estado português já foi condenado várias vezes por violação deste artigo 10.º da liberdade de expressão”.

Isabel Meirelles considera que o TEDH não pode ser uma instância de recurso. "Não pode revogar decisões dos tribunais nacionais. A única coisa que faz é determinar, arbitrar uma indemnização ao lesado, a pagar pelo Estado português, que é o que tem acontecido”.

A advogada diz ainda que, no âmbito de um direito de cooperação, "em que as normas são vinculativas mas não há meios coercivos para impor aos Estados o cumprimento destas normas, eu diria que é um direito mais frágil em que a autonomia dos estados prevalece. E a única coisa que pode acontecer é eles serem condenados a indemnizar os queixosos”.

Na opinião de Isabel Meirelles, apesar de ser difícil, devia aprofundar-se este direito e torná-lo mais vinculativo, para que haja uma interpretação e aplicação uniformes dos Direitos Humanos previstos na Convenção.

"É muito difícil porque requerendo a unanimidade dos Estados-membros, estes não vão querer intromissões na sua esfera jurídica interna. Portanto, com 47 Estados-membros dificilmente teremos um direito mais vinculativo, sobretudo nas normas previstas na Convenção para que as autoridades públicas, incluindo as do poder judicial, possam aceitar de bom grado e sem reservas".
Direitos difíceis de conciliar
Já o advogado Rogério Alves começou por distinguir dois direitos que são difíceis de conciliar e que têm, ambos, dignidade constitucional em Portugal.

“Há o direito ao bom nome, à honra, que são direitos previstos no artigo 26.º da Constituição, mas a Constituição também prevê a liberdade de expressão. Estes dois direitos têm de viver do mesmo universo. Eu tenho o direito de me exprimir, tenho liberdade de expressão, tenho o direito de dizer o que entenda. Porém, se ao dizer o que entendo difamar alguém, poderei ter de responder por isso”.

Para este advogado, a resposta não é unívoca porque as situações são múltiplas e podem ser ditas por muitas pessoas, com diversas motivações e em diferentes circunstâncias. "O que os tribunais têm de fazer em cada caso concreto é colocar a linha vermelha (...) onde é que o que alguém diz no exercício dessa liberdade de expressão já está a atropelar outro direito que é o direito ao bom nome e à honra".
"Esta tendência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, levada ao extremo, faria com que deixasse de haver difamação. Eu acho que o que esse acórdão diz é correto. Há dois interesses que são, por vezes, conflituantes e o tribunal português não deve obediência à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos".
Na disputa entre estes dois direitos, o Tribunal Europeu, a quem compete aplicar a Convenção Europeia, tem optado preferencialmente por dizer que prevalece a liberdade de expressão.

Rogério Alves considera que não tem de haver uma subordinação hierárquica, no sentido de que os tribunais portugueses tenham de passar a obedecer ao TEDH, antecipando as suas decisões. O que significa "desprezar outros valores constitucionais de igual dignidade àquela que tem a liberdade de expressão, que é o direito à honra e ao bom nome".

O advogado considera ainda que esta é uma tendência errada: "Dar uma grande prevalência à liberdade de expressão em detrimento do direito à honra e ao bom nome".

"É perfeitamente possível fazer coexistir a liberdade de expressão sem difamarem, sem ofenderem, sem achincalharem, porque o achincalhamento não é uma coisa só pontual, epidérmica, uma pequena ofensa da pessoa ficar aborrecida. A difamação também pode pôr em causa outros valores até de ordem financeira das pessoas ofendidas. É um sofrimento não patrimonial", disse Rogério Alves à RTP.
"Não é bom que o TEDH condene Portugal"
No relatório do International Press Institute considerou-se ainda que Portugal tinha um número “invulgarmente elevado” de condenações no TEDH por violação da liberdade de expressão, consagrada no artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Apenas três países da União Europeia tinham nesse período (2005/2015) mais condenações: França (22), Polónia (21) e Roménia (20). A média europeia é de 6,46. mas quatro países não tiveram qualquer condenação e dez deles ficaram-se por uma ou duas.

No mesmo relatório, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Henriques Gaspar, desvalorizou o nível de condenações: “Não é bom que o TEDH condene Portugal”, mas “o número de casos é muito baixo”.

No mesmo relatório, o instituto diz ter identificado algumas preocupações nas normas legais portuguesas em vigor. É o caso de o Código Penal punir com penas de prisão a difamação (até seis meses) e a injúria (até três meses), que são agravadas se forem consideradas calúnias (penas agravadas em 1/3) ou difundidas através da comunicação social (penas elevadas em até dois anos). O IPI salienta que há um "notório consenso internacional contra a possibilidade de prisão em casos de difamação".
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
O TEDH foi criado em 1959 pelos membros fundadores do Conselho da Europa e zela pela aplicação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Portugal subscreveu esta Convenção em 1978 e obrigou-se a aplicar desde então as decisões daquele tribunal.

Qualquer cidadão que esgote os meios judiciais ao seu dispor em Portugal pode recorrer àquele órgão para tentar reparar eventuais danos sofridos por conta da violação dos seus direitos.

Foi em 1978 que Portugal ratificou a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ficando desde então a fazer parte do sistema internacional considerado mais avançado na proteção dos direitos e liberdades fundamentais.

Consagrando um conjunto de direitos de diversa natureza (civis, políticos, económicos e culturais), a Convenção instituiu um mecanismo de garantia da aplicação desses direitos, através da criação de um órgão internacional independente: o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

As condenações judiciais ou a morosidade da justiça são a principal razão dos processos intentados contra Portugal.