Praxe: a quem cabe a responsabilidade? Associações académicas ou comissões de praxe?

Nos últimos anos, a praxe académica tem sido notícia pelos piores motivos. O objetivo é integrar os caloiros na vida académica, na instituição de ensino superior ou numa nova cidade, à qual acabam de chegar. Se muitos estudantes consideram a praxe uma boa ocasião para integrar os novos alunos, outros criticam o facto de esses rituais estarem marcados pela hierarquia da praxe. Para o presidente da Associação Académica de Lisboa, a solução para evitar abusos é que as atividades passem “mais pelas associações académicas e não pelas comissões de praxe”. Uma opinião que, para o presidente do Conselho de Veteranos da Universidade de Coimbra, demonstra que não sabe o que é a praxe e a tradição académica.

Sandra Salvado - RTP /
Fotografia: ISCSP

Criar uma praxe solidária é o objetivo da Associação Académica de Lisboa, “de forma a podermos fazer algo útil, como pintar escolas, ajudar a fazer uma recolha de roupa e mostrar que a praxe não é assim tão má como se pinta”.

Entrevistado pelo online da RTP, Francisco Duarte considera que as associações de estudantes também têm uma palavra a dizer sobre as atividades da praxe académica, no sentido de acautelar abusos.

Na opinião deste dirigente estudantil, a semana de praxe deveria “começar a passar mais pelas associações académicas e não pelas comissões de praxe. Nós não conseguimos acabar com isso. A comissão de praxe legalmente não existe. É um grupo de estudantes (…) mas as atividades todas deveriam passar pelas associações de estudantes, que garantem que tudo funciona bem e, se houver casos de abusos, têm todos os meios para conseguir resolver o problema com a reitoria ou com os seus diretores. Isto podia ser uma solução, não estou a dizer que podia acabar com o problema de vez mas poderia ser uma boa ajuda”, sustentou o presidente da Associação Académica de Lisboa, que representa 40 associações de estudantes.

Uma opinião que, para o presidente do Conselho de Veteranos da Universidade de Coimbra, demonstra que “não sabe o que é a praxe e o que é a tradição académica”.

O Dux João Luís Jesus disse ao online da RTP que as tradições dos estudantes são criadas pelos próprios, sem interferência seja de quem for. E acrescenta: “Uma associação de estudantes tem como função defender o interesse dos estudantes perante a sua instituição. Aquilo que estudantes decidem fazer, como é que decidem divertir-se, relacionar-se entre si, não tem nada a ver com as associações de estudantes”.

De acordo com este presidente do Conselho de Veteranos, na Universidade de Coimbra é generalizada a adesão às tradições e às regras da praxe por parte dos estudantes.

“A grande maioria adere e segue as regras. Depois existe a mediatização da praxe por vários motivos, infelizmente alguns muito maus. Aqui em Coimbra tenta-se manter as tradições e fazer com que a praxe respeite as pessoas, tanto mais que o código da praxe está em fase de reestruturação e tem sido sempre revisto, ao longo dos tempos, de modo a proibir todo e qualquer comportamento que viole a integridade física e psicológica das pessoas. Não está perfeito mas andamos a trabalhar nisso”.

O Dux João Luís Jesus considerou ainda que falta consciencializar a população de que estar numa situação de tradição ou de praxe não é diferente de estar numa mesa de café a conversar com os amigos.
Já esta semana, o presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) e também reitor da Universidade do Minho disse que os “comportamentos inadequados” nas praxes académicas só terão fim "quando os estudantes perceberem que não fazem sentido".


“Há regras sociais que devem ser respeitadas (…) Infelizmente foi criado ao longo dos tempos, não sei porquê, a mentalidade de que quando se está em praxe se pode fazer tudo o que se quer. É mentira! É uma situação em que existem regras mas acima de tudo está o respeito pelos outros, e isso foi completamente deturpado, não sei porquê e as pessoas estão convencidas que podem fazer o que querem, quando é exatamente o contrário. Devem é ter mais autocontrole daquilo que fazem socialmente”, concluiu o presidente do Conselho de Veteranos da Universidade de Coimbra.

Em entrevista à agência Lusa, António Cunha disse estar "genericamente de acordo" com a posição do ministro do Ensino Superior, contra as praxes. "Penso que não há justificação possível, seja em nome da integração, seja em nome de qualquer outra coisa, para atos de humilhação e de prepotência de estudantes sobre outros. É algo que não faz sentido na nossa universidade".

O responsável pelo Conselho de Reitores disse ainda que é fundamental "garantir que nenhum estudante é obrigado a fazer aquilo que não quer", e que as instituições de ensino superior têm de agir em conformidade, sempre que os limites sejam ultrapassados.
Carta de apelo ao ensino superior
Estas declarações foram feitas depois de o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior ter enviado aos reitores de universidades, presidentes de politécnicos, responsáveis estudantis e dirigentes de unidades de investigação, uma carta onde apela à mobilização de todos para a integração dos novos estudantes do ensino superior.

Na missiva, Manuel Heitor esclarece que deu “instruções à Fundação para a Ciência e Tecnologia para que apoie a realização de ações de índole científico-cultural destinadas à integração dos novos estudantes de ensino superior através da autorização de despesas pelas Unidades de Investigação, a desenvolver em parceria com as associações de estudantes e a incluir no contexto de atividades de divulgação científica, as quais devem representar até cerca de 5% dos seus orçamentos plurianuais”.

Manuel Heitor recomendou que as praxes académicas sejam substituídas por práticas de integração que respeitem os ideais de liberdade, crítica e emancipação dos jovens. E acrescentou que as praxes académicas são “manifestações de abuso, humilhação e subserviência”, contrárias à missão e propósito das instituições de ensino superior, manifestando, por isso, “o total repúdio a estas práticas”.

O ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior dirigiu outra carta aos portugueses onde solicita “a todos que se posicionem como parceiros na dignificação do ensino superior” e onde se compromete “a ser parte ativa na transformação que se exige, incentivando práticas e iniciativas que fomentem a participação ativa dos novos estudantes nas diversas dimensões do contexto académico, científico e cultural”.
Praxe não restrita a um grupo
Já Teresa Almeida, da Comissão de Praxe do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), considera que as atividades da praxe académica não devem ser restritas apenas a um grupo de pessoas, considerando que é boa ideia as associações de estudantes estarem envolvidas, tal como a restante comunidade escolar.

“Não vejo isso como uma má ideia. Se o objetivo geral é integrar os alunos, quanto mais instituições fizerem parte disso, melhor é. Não deve ser dirigida só a um grupo porque o objetivo é fazer com que as pessoas se sintam em casa e que se conheçam. É um dever de toda a gente, seja da Associação de Estudantes ou da Comissão de Praxe. Acho que devemos todos fazer parte disso. Acho bem que haja um grupo de pessoas que se responsabilize e que esteja lá para controlar, a forma como as coisas são feitas, daí também existir uma Comissão [de Praxe], mas o trabalho devia ser de todos os alunos que estão naquela Faculdade”, disse Teresa Almeida.

“Se as pessoas tiverem bom senso e respeito umas pelas outras, a praxe não traz qualquer problema. Portanto, se calhar o trabalho que tem que ser feito é de casa, não é na Faculdade nem nas instituições”, concluiu a presidente da Comissão de Praxe do ISCSP.

Nos últimos anos tem vindo a aumentar o recurso aos tribunais e as denúncias oficiais sobre práticas de praxes violentas, com danos físicos e até com várias mortes registadas.
Relatório de 2008 não produziu medidas efetivas
O último relatório publicado sobre esta matéria “As praxes académicas em Portugal”, foi encomendado em 2008 pela Comissão de Educação e Ciência, na altura presidida por António José Seguro. Mariano Gago era o ministro da Ciência e Tecnologia e Ensino Superior.

Foi enviado um apelo a todas as instituições de ensino superior para que se prenunciassem sobre as praxes nas suas próprias escolas e enviassem à comissão os seus contributos sobre a matéria.
Na altura, foram recebidos 38 contributos, vários deles relatando apenas o sentido das praxes naquelas instituições, outras relevando as medidas já tomadas, e outras sugerindo a intervenção do ministério para por cobro aos abusos e excessos.
Em jeito de conclusão, o relatório apresentou quatro medidas que deveriam ser tomadas pelo governo e três propostas concretas. Quanto às medidas salienta-se a realização de um estudo nacional sobre a realidade da praxe em Portugal; a criação de instrumentos que promovam a divulgação de informação sobre a questão da praxe nos meios estudantis; a criação de uma rede de apoio aos estudantes do ensino superior, que deverá disponibiliza recursos de acompanhamento psicológico e jurídico; e a sistematização e divulgação ativa de boas práticas.

Aquela comissão propôs ainda a criação de uma linha telefónica nacional gratuita para alerta, denúncia e atendimento dos estudantes; a criação de equipas de apoio aos estudantes que deverão disponibilizar recursos de acompanhamento psicológico e jurídico aos estudantes e a recomendação aos órgãos diretivos das escolas que devem assumir uma postura que não legitime as práticas de praxes violentas.

Na altura, o relatório foi aprovado e enviado ao governo, mas nunca foram tomadas medidas efetivas sobre as suas recomendações, embora várias instituições do ensino superior tenham elaborado regulamentos internos.
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