Alguns dos protagonistas das lutas estudantis durante a ditadura em Portugal partilharam hoje as memórias de um tempo que mudou as suas vidas, alteraram os seus percursos e foram "o 25 de Abril antes do 25 de Abril".
Jorge Sampaio, que teve um papel determinante nestas lutas estudantis, esteve pela primeira vez ausente das comemorações do aniversário da crise estudantil de 1962, tendo sido recordado com saudade por alguns dos intervenientes no debate "A memória das crises académicas na primeira pessoa".
O evento decorreu no âmbito do colóquio sobre "Primaveras estudantis: da crise de 1962 ao 25 de Abril", que acontece na Reitoria da Universidade de Lisboa, palco da greve dos estudantes em 1962.
Artur Pinto, então aluno na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, começou por recordar Jorge Sampaio: "Como em 62, nunca nos abandonou".
Debilitado fisicamente, mas feliz por participar no evento, estendeu a homenagem a Eurico Figueiredo, um dos estudantes que protagonizaram o movimento estudantil de 1962, e que hoje comemora 84 anos, tendo sido aplaudido de pé pelos que assistiram ao debate.
Para Artur Pinto, as lutas estudantis mostraram-lhe o que era a "democracia participativa".
"Nunca perdemos o humor", disse, referindo que a luta era acompanhada de cantigas de escárnio e mal dizer, mas sobretudo de muita "alegria e irreverência".
E afirmou: "Com a crise académica de 1962 perdemos muita da nossa inocência, mas mantivemos a nossa utopia. Não derrubámos o regime, mas a nossa luta abalou fortemente o regime de Salazar, despertou muitas consciências e deixou uma marca em todos".
"A ditadura nunca calou a voz dos estudantes. Fomos nós que vencemos, não eles".
A médica Isabel do Carmo, cuja fotografia a discursar durante a greve dos estudantes, em 1962, é um dos símbolos do movimento, nomeadamente da participação feminina no mesmo, referiu-se a esse período como uns "dias extraordinários".
"Fomos felizes, apesar da repressão. Aquilo que me transformou foi eu ser protagonista autónoma na luta pela liberdade contra a ditadura fascista", indicou.
E sobre a famosa fotografia, disse: "Espero que represente as mulheres nas várias faculdades. Éramos poucas, mas tivemos imensos protagonismo nas assembleias das faculdades, nas lutas contra a polícia. No entanto, o protagonismo era dos rapazes. O homem era o chefe da família, a mulher subordinada a este, que até podia repudiá-la se ela não fosse virgem".
Ainda assim, estas mulheres eram "a nata das natas", pois apenas 20% andava nas faculdades e 60% das mulheres eram analfabetas.
Seguiu-se o testemunho de Alberto Martins, um dos protagonistas da crise académica de Coimbra em 1969, e que reconheceu que o movimento mudou para sempre a sua vida.
Em 1969, durante a inauguração do edifício das matemáticas, Alberto Martins era presidente da Direção Geral da Associação Académica, e pediu a palavra, tendo sido impedido de o fazer, seguindo-se protestos nos dias seguintes.
"Tudo o que se passou em 1969 mudou completamente a minha vida, a vida de uma geração de estudantes. A intervenção cívica mudou completamente a minha vida", disse.
Manuela Juncal, que durante a crise era aluna na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, recordou os vários focos de protestos que se registavam então.
Estudante do Instituto Técnico, João Cravinho trouxe ao debate a singularidade dos protestos, nomeadamente o facto de unir a Juventude Universitária Católica (JUC) e o movimento estudantil.
Cravinho destacou o vasto trabalho que as associações estudantis realizaram, principalmente quando esteve suspensa uma polémica legislação com que a ditadura pretendia controlar os estudantes (decreto 40.900).
"Durante cinco anos não houve lei, o que permitiu as associações estudantis fazer muita coisa. Foi decisivo para o futuro", disse.
No final do debate, um dos espetadores pediu para intervir, afirmando que é da mesma geração que os oradores, e solicitou uma salva de palmas para o povo ucraniano: "Estão a lutar pelos mesmos valores, pelos quais nós lutámos".
A crise académica de 1962, que se prolongou por vários meses, teve o seu ponto alto a 24 de março, há 60 anos, quando forças policiais, a mando do governo de Salazar, carregaram sobre milhares de estudantes na zona da Cidade Universitária em Lisboa, à revelia do então reitor da Universidade Marcelo Caetano.
Vários estudantes foram feridos e muitos outros detidos, de imediato ou ao longo dos dias seguintes, essencialmente dirigentes das associações de estudantes.
O protesto incluiu uma greve de fome e estendeu-se durante meses.