Quando o corpo é uma prisão

Jovens trans reuniram-se no Porto para partilhar experiências e sonhos. Alguns tinham 15 e 16 anos, mas as certezas vêm desde criança. Os pais quiseram fazer parte. Reportagem em exclusivo da RTP.


Fala-se na barba e Mikael leva a mão à cara. Passa os dedos levemente no lado esquerdo, levemente no lado direito, e concentra-os depois uns bons segundos no queixo. "Começou com uns pêlos mais loiros, depois vão ficando mais escuros e depois mais grossos. Eu no queixo tenho muita barba, mas de lado ainda está a crescer", nota. Deixou-a crescer largos meses até destruir, pela primeira vez, aquele sinal da masculinidade. A experiência não foi a melhor. "Não gostei muito da primeira vez que fiz a barba porque fiquei com cara de bebé", ri-se. "Na altura não se percebia bem se eu era homem ou mulher, então foi um bocadinho violento, porque era aquela experiência do 'nem-nem'". 

Hoje, não há dúvidas. Mikael é Mikael: um rapaz de 24 anos, há três anos a receber injeções de testosterona e já com o género certo inscrito nos documentos. Foi-lhe atribuído o género feminino à nascença mas sempre se sentiu rapaz. Mikael foi um dos 18 participantes do 4º Encontro Nacional de Jovens Trans. Encontraram-se rapazes e raparigas transgénero e transexuais de norte a sul do país: Braga, Leiria, Faro, Coimbra e Lisboa. Juntaram-se no Porto para um fim de semana de partilha de experiências, alegrias, medos e conquistas. 
"Eu nunca me imaginei como mulher"
"Todas as noites imaginava o dia seguinte como se fosse um rapaz"

Em bebé chamaram-lhe Bruna. Um nome de "menina", como ditava a biologia à vista de equipa médica e familiares. Mas a falta de química entre o que estava entre as pernas e o que estava entre as orelhas revelou-se desde cedo. "Lembro-me de ter uns seis anos e achar que me ia crescer um pénis... Cheguei a dizer isso à minha família mas a reação foi rir e não dar importância. Também não se pode levar a sério tudo o que uma criança de seis anos diz, não é", aponta Daniel. No caso daquela criança, a brincadeira tornou-se um caso de identidade de género. 

Seguiu-se o "estereótipo da maria-rapaz" mas "sempre com questões mais profundas" dentro dele até que, um dia, decidiu desabafar. "Para aí com uns 7 ou 8 anos, disse a uma colega de escola que queria ser rapaz. Lembro-me de a minha colega ingenuamente ter comentado com a mãe, que depois teve uma conversa muito castradora comigo. De como eu não podia ter esse tipo de pensamentos, que aquilo era errado..." Foi o suficiente para Daniel se fechar sobre si próprio. "A partir desse momento deixei de me expressar. Digamos que todos os problemas que eu tinha, questões relacionadas com a identidade de género, ficaram anexadas no meu subconsciente. Guardava só para mim". 

Daniel controlava o que dizia aos outros, mas os pensamentos não se controlam. "Eu tinha uma espécie de ritual todas as noites que era imaginar o dia seguinte como se eu fosse um rapaz. A fazer as tarefas do dia a dia, fazia o plano todo no papel de um rapaz... Conseguia contrabalançar a tristeza com a felicidade daquele momento de fantasia. Dava-me prazer. E acabava por lidar muito apaticamente o resto do tempo com a situação. Quase como se não existisse", conta. "Nesse momento de fantasia, que rapaz eras?", perguntamos. "Era um rapaz perfeito. Cabelo castanho, olhos azuis, com namoradas... Estava na fantasia, tinha que aproveitá-la ao máximo, não é?", ri-se. 
Ouça aqui a reportagem em áudio, transmitida na Antena 1

O desconforto começou a ser cada vez maior e a dificuldade em escondê-lo também. Daniel sempre tinha sido bom aluno, conta, e no final do 11º ano começou a baixar as notas abruptamente. "Comecei a sentir-me cada vez mais depressivo, apático, com falta de concentração, dificuldade em acompanhar a escola", conta. Começou a ser acompanhado por um psicólogo da escola e foi-lhe diagnosticada depressão. Foi a conclusão das reações descritas e, da parte do aluno, nem uma palavra sobre identidade de género ou desconforto interior. O psicólogo não podia conjecturar sobre aquilo que desconhecia, admite. "Tinha muito medo da reação das pessoas, tendo em conta a primeira reação que tive... Se calhar como adulto já devia desdramatizar mas são aquelas cicatrizes que quando ficam, ficam."

Só aos 18 anos é que Daniel decidiu dar real valor à fantasia de todas as noites. "Disse para mim: 'Não Daniel, tu tens algum problema, está na altura de ser adulto e enfrentá-lo'", recorda. E assim foi. Começou por procurar na internet e encontrou referências a transexualidade. O YouTube ajudou muitos jovens a saberem mais sobre o tema -- di-lo Daniel e dizem outros jovens com quem a RTP falou. "Ajudou-me muito seguir muito os transexuais no Youtube e ver as histórias deles. Acabei por crescer com eles e perceber que era possível ser-se trans e ter uma vida boa", esclarece Daniel. 

Vítor Silva explica a diferença entre sexo, género e expressão de género 
"Tivemos pais a avisarem os filhos que isto ia acontecer"

O número de rapazes trans (de Feminino para Masculino) presentes foi bastante superior ao número de raparigas trans (de Masculino para Feminino). Aparentemente é mais fácil ser os primeiros do que as segundas: "Não quer dizer que existam mais casos de rapazes trans, mas é mais fácil passerem despercebidos e não darem tanto nas vistas do que o contrário. Isso faz com que as raparigas trans possam estar a esconder-se um pouco ainda, com menos vontade de participar em eventos sociais onde sabem que vão ter de viver uma série de experiências que vão ser negativas. Se elas puderem evitar isso e ficar em casa, talvez optem por fazê-lo. Um rapaz trans pode perfeitamente fazer o caminho do comboio até aqui sem ser notado. Vai passar completamente despercebido, igual a todas as outras pessoas, e dificilmente será reconhecido como homem trans ou rapaz trans", explica Vítor Silva, presidente da rede ex aequo, associação de jovens LGBTI e simpatizantes, que organizou o encontro. 

A ideia do encontro é criar um espaço exclusivo e descontraído de partilha entre jovens trans. Para alguns foi a primeira vez que verbalizaram o que sentem, o que temem, com que sonham. "Há participantes que só hoje é que se vestiram de acordo com o género com que se identificam. Sentiram-se confortáveis e seguros neste ambiente. Apesar de termos dormido num hostel, de termos andado pela rua... Este grupo, esta coesão, torna possível que as pessoas saiam assim de casa e confiantes em si e em serem quem são", sublinha Vítor Silva. 

Muitos dos jovens eram menores e.. houve que justificar em casa o fim de semana fora. Sem problema. "Penso que a maior parte dos pais sabia. Tivemos pais a vir trazer e a vir buscar os filhos. Tivemos casos dos próprios pais a avisarem os filhos que isto ia acontecer, para os filhos virem participar, portanto penso que as famílias estavam no geral informadas", adianta o responsável. "Tivemos o pai e a mãe de uma rapariga a vieram cá trazê-la. Era a participante mais nova -- tinha 15 anos. Ela quis vir e eles disseram: 'Ok, então se queres participar nós vamos contigo, ver o que é que se vai fazer, como é que as pessoas são, como é que são as outras pessoas que passaram ou estão a passar pelo mesmo. E isto é muito positivo", destaca. 

O que diz a lei. E o que poderá dizer

Atualmente, só se pode mudar o género e o nome no Registo Civil a partir dos 18 anos. Também só a partir dessa idade se poderá proceder a operações ou cirurgias de mudança de sexo. Desde a mais recente lei de Identidade de Género, de 2011, mudaram o género no Registo Civil quase 400 pessoas. Para o fazer é preciso ter um relatório médico, com a participação de especialistas de várias áreas, que ateste uma "disforia de género" ou "perturbação de identidade de género". 

Agora, há três propostas para alterar a lei: uma é do Bloco de Esquerda, outra é do PAN (Pessoas-Animais-Natureza). A mais recente é do Governo e será discutida em breve no Parlamento. A secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Catarina Marcelino, reuniu várias vezes com associações e organizações LGBTI e de Direitos Humanos para ajudar na redação da proposta do Governo, que se centra na questão da auto-determinação da identidade de género. O documento tem três pontos essenciais

  • Deixar de exigir um relatório médico para se alterar o género e o nome no Registo Civil 
  • Baixar a idade para efetuar essas alterações para os 16 anos, desde que com a autorização dos pais
  • Permitir que os alunos e alunas usem o nome que está de acordo com a sua identidade de género nas pautas escolares, ainda antes dos 16 anos. Aqui, se assim for, o Ministério de Educação terá de definir mecanismos e prazos para essa possibilidade entrar em ação
Na prática, bastará a vontade do próprio ou da própria para alterar o nome e género nos documentos. Exceção feita para os casos em que o requerente apresente sinais de anomalia psíquica. A questão das operações de mudança de sexo está fora do diploma. 

Há ainda uma referência às crianças e bebés intersexo, ou seja, que nascem com características sexuais dos dois sexos ou cuja genitália é ambígua. Aqui, o Governo pretende proibir as chamadas "cirurgias corretivas" e/ou tratamentos para direcionar a criança para um ou outro género. Os médicos e os pais não devem tomar essa decisão de forma arbitrária, por si, mas deverão deixar que a criança manifeste a sua identidade de género ao longo do tempo e, depois, efetuar (ou não) as alterações que sentir necessárias.   

Marcha do Orgulho LGBT de 2013, em Lisboa. 
"Quando era mulher tinha medo de andar à noite sozinho na rua. Agora não"

Dois corpos, duas formas de se ser olhado pela sociedade. Quando era percecionado pelos outros como rapariga, Alexandre vivia uma série de medos que não vieram incluídos no corpo masculino: "Quando as pessoas me viam como mulher, inibia-me muito mais de andar sozinho na rua, principalmente durante a noite. É um bocado aquele estereótipo do trolha que manda piropos mas é um facto. Aquilo inibia-me. Atravessava a rua, ou ia por outro caminho, ou passava na mesma mas ficava com medo. Nem era bem medo, era aquele desconforto... Hoje em dia, não. Passo na boa", destaca. 

Alexandre ainda foi visto em sociedade, pelos outros, como uma adolescente e mulher adulta. "Eu só iniciei a minha transição aos 22 anos, portanto são 22 anos a ter de lidar com isto. Na verdade, eu ainda não me livrei completamente da coisa mas sinto-me muito mais relaxado quando ando na rua, sim", confessa.

O rapaz tem 25 anos, três deles de transição. Admite que passou "a maior parte da vida" sem ter a certeza. Sabia que se passava alguma coisa, mas "nem sabia que ser trans era uma coisa que existia". "Não tinha esse conceito na minha cabeça". 

Na verdade, Alexandre até tinha conceitos na cabeça, mas nenhum que se aproximasse do que sentia. "A ideia que eu tinha de pessoas trans era aqueles estereótipos dos travestis que se prostituem na rua. E não me identificava com isso, claramente. Eu só me apercebi que ser trans era uma coisa que efetivamente existia quando conheci uma pessoa trans ao vivo. Foi na marcha do orgulho LGBT de Braga. E aí foi tipo 'ahh', isto é uma coisa, isto existe", conta, com os olhos azuis muito vivos. 

O investigador faz visitas regulares ao centro de saúde para receber as injeções de testosterona e, por vezes, as idas ficam agendadas para horário de trabalho. É o único contexto em que Alexandre não fala abertamente sobre o assunto "porque aí é aquele medo do patrão...". Antes de começar naquele emprego, o nome já estava mudado, as hormonas já tinham surtido efeito, tinha uma mastectomia feita. Por isso, ninguém faz ideia do passado -- mas também não é um "segredo" que o aterrorize. 

"Eu tento não pensar porque, se me ponho a pensar nisso (na possibilidade de descoberta e reação), inibo-me de andar para a frente e isso é mau... Antes de iniciar a transição pensava que ia perder os meus amigos todos, ia perder a namorada, que se calhar ia ter de largar o curso, de mudar de casa, todo um drama na minha cabeça. Mas depois quase nada disso se concretizou. Portanto agora é tipo: 'Ya, vou ter de abdicar de coisas, há coisas que vão mudar, mas eu não sei o que é que é, portanto deixa andar e vamos ver. Houve uma altura em que tentava esconder só que isso dava trabalho. Dava trabalho inventar histórias alternativas. É sempre aquela pressão: 'Ai, se aquela pessoa descobre'". 

O mais importante está feito: Alexandre está hoje mais confortável consigo próprio. Mas não há duas pessoas -- há apenas uma, que é hoje mais feliz. Perguntamos: "Quando se faz a transição, corta-se com o passado, como se a outra pessoa não tivesse existido, ou vê-se a vida como um todo?" Resposta: "Eu não cortei. Tenho o meu passado, que vivi como mulher, como rapariga, e não pretendo deixar isso de lado. É parte de mim, tudo o que aconteceu nessa altura moldou a pessoa que eu sou hoje, e eu era efetivamente essa pessoa, vivi essa vida, portanto não consigo largar tudo e dizer 'ah não, não era eu'. Não, foi válido. Aconteceu e moldou-me. Se tiver de falar de mim no passado, como mulher ou como pessoa que era percecionada como mulher, não tenho problemas. Não me mete confusão". 

Mas há sempre algo que se tem de deixar para trás. "Acho que há sempre qualquer coisa que uma pessoa abdica, mas isso não é uma coisa específica desta transição, é uma coisa específica de qualquer mudança que uma pessoa faça na vida, não é. Quando há uma mudança, há sempre alguma coisa que uma pessoa vai ter de deixar para trás".